O País – A verdade como notícia

O apagão

A vovó Zita vive num dos bairros suburbanos da cidade de Maputo. É uma viúva de 60 anos. A idosa vive com os seus dois netinhos, o Carlitos e o Paulo, gémeos com apenas 10 anos de idade. Os meninos perderam os seus pais ainda bebés.

Após a morte misteriosa dos pais dos meninos, a vovó Zita começou um negócio. Abriu uma banquinha no quintal da sua casa para garantir sustento aos seus netos. O negócio não estava a ser fácil. O coronavírus tornou o negócio insustentável. O custo de vida dispara assustadoramente a cada ano. Está tudo difícil para a velha Zita.

O dia nasceu debaixo de um calor intenso na cidade de Maputo. A vovó Zita levou o televisor para o quintal da sua casa. Queria assistir a repetição da telenovela enquanto controlava a sua banquinha. Vê as horas no relógio pendurado na parede. São pontualmente 12 horas.

Pega no remote e liga o televisor. É surpreendida por uma tremenda chuva. Nenhum canal saía se não a chuva cinzenta. Tentou arranjar a antena, não resultou. Tirou a antena e voltou a colocar. De novo, não surtiu nenhum efeito. Ficou totalmente confusa e sem compreender o que estava a acontecer. Estava tudo estranho.

– O que poderá estar a acontecer? – Questionou-se a vovó Zita mergulhada num total desespero. – Isto não é normal. Estou aqui a bom tempo a tentar arranjar a antena, mas não está a resultar. Será que os meus netinhos, que têm tido o hábito de ficar todas madrugadas a verem a televisão, terão estragado o televisor? – Questionou-se sem encontrar alguma resposta. – Isto só pode ter a mão dos meus netinhos. Bato muito neles, mas não ouvem. Estão sempre a estragar. – Acrescentou.

A vovó Zita chamou os seus dois netos. Os meninos vieram numa corrida.

– Vovó, estamos aqui. Porque é que nos chamou? – Questionaram os meninos bem ansiosos.

– O que é que vocês fizeram com o televisor? Um de vocês estragou o televisor. Já não sai nada se não a chuva. Sempre vos digo para não ficarem até às madrugadas a verem a televisão e muito menos a disputarem o remote controle, mas vocês não ouvem. – Acusou-os. – Agora estou sem dinheiro para mandar reparar o televisor. Onde vou apanhar dinheiro? – Questionou-os.

Os meninos ficaram surpresos com aquelas acusações graves da velha Zita. O silêncio tomou conta do Carlitos e Paulo por alguns segundos. Pelo silêncio dos meninos, a vovó Zita concluiu que foram eles que estragaram o televisor. A velha fixou o seu olhar acusador nos meninos que viram-se obrigados a quebrar o silêncio.

– Vovó Zita, não foi eu quem estragou o televisor. – Respondeu Carlitos distanciando-se da acusação. – Quando fui dormir o televisor estava a funcionar. – Acrescentou.

– Então foi você Paulo. – Acusou-o a vovó Zita.

– Não, vovó. Não fui eu quem estragou o televisor. Ontem a noite não cheguei de assistir. Era a vez do Carlitos. – Desmentiu Paulo a acusação da vovó Zita.

– Eu já sabia que não iam assumir o vosso erro. Vocês nunca assumem quando estragam algo. Vamos ter que morrer de fome para que eu possa juntar dinheiro para mandar reparar o televisor. Se eu conseguir mandar arranjar, aquelas vossas brigas pelo remote não quero ver mais e muito menos quero vos ver nas madrugadas a verem a televisão. – Sentenciou ela.

A idosa trancou a porta. Pegou no seu chinelo e começou a bater neles. Os meninos choraram até ficarem com as vozes roucas. As chineladas duraram dez minutos. A velha ficou triste ao saber que não teria como ver os programas que mais gosta. Sem perder mais tempo, dirigiu-se à casa da sua vizinha para desabafar.

– Vizinha, não sabes da máxima que aconteceu lá em casa. – Disse a vovó Zita.

– Yu! Assim a vizinha está a me assustar e me deixa mais curiosa. Vai, diga logo o que aconteceu. Não aguento mais esperar. – Respondeu a vizinha Artimiza, que estava ansiosa para saber da nova.

– Os meus netinhos estragaram o meu televisor. Agora somente assistimos uma chuva que não pára de cair. Vou ter que passar a vir à sua casa todos os dias para assistir a alguns programas que adoro. Pode ser? – Questionou a vovó Zita.

– Yu! Que coincidência, vizinha. Também só estamos a assistir à chuva desde o início da tarde de hoje. Talvez esta chuva seja geral. – Disse a vizinha Artimiza.

A vovó Zita ficou surpresa ao saber que não era a única que estava a passar pelo mesmo problema. As duas velhas ficaram sem saber o que teria acontecido.

– Não acredito que isto também esteja a acontecer na sua casa. Mas vizinha, porque é que não vamos à casa da vizinha Celeste para vermos se é um problema geral ou não? – Sugeriu a velha Zita.

– É verdade vizinha. Vamos. – Concordou a velha Artimiza.

As duas velhas dirigiam-se à casa da vizinha Celeste, numa lentidão de passos forçados pela idade que já estava bem avançada. A porta de casa da velha Celeste estava aberta. De longe, as duas idosas ficaram surpresas ao verem que a televisão estava ligada e, lá não se assistia chuva como nas suas casas.

– Vizinha, bem que eu te disse que os meus netos é que estragaram o meu televisor. Veja em casa da Celeste, estão a assistir. Eles são mestres em estragar tudo em casa e depois desmentem quando são perguntados. – Gritou a vovó Zita.

– Mas vizinha, como é que se justifica que o mesmo aconteça também na minha casa? Olha que eu não tenho filhos que os possa culpar de terem estragado o televisor. Ontem deixei-o a funcionar devidamente. – Ripostou a vovó Artimiza.

A discussão entre as duas idosas ficava cada vez mais tensa. A velha Celeste, que se encontrava no interior da sua residência, ouviu-as atentamente do lado de fora. Saiu da casa. Foi ter com elas.

– Boa tarde, minhas vizinhas. Em que posso ajudar? – Questionou-as a velhota Celeste.

– Vizinha, é que nas nossas casas apenas estamos a assistir chuva ou apenas um azul. Agora vínhamos certificar se a chuva é geral ou não. Pelo que estamos a ver, só acontece em nossas casas, pois aqui na sua casa estão assistir. – Respondeu a vovó Artimiza.

– Pelos vistos vocês não sabem. Não andam informadas. Apenas usam a televisão para ver novelas. – Disse a vovó Celeste, que andava bem informada.

As duas idosas ficaram surpresas com aqueles pronunciamentos. Não percebiam o que a velha Celeste tentava dizer.

– O que é que você sabe e que nós não sabemos? – Questionou a vovó Zita.

– Deixem-me explicar. O país está num processo de transição do sistema analógico de televisão para o digital… – Explicou a vovó Celeste quando, de repente, foi interrompida de forma brusca.

– O que é essa coisa de transição do sistema analógico? Será que tem a ver com a chuva que está a sair nos nossos televisores? – Questionou a idosa Zita.

– É isso que eu estava a vos explicar quando me interrompeu. – Respondeu a vovó Celeste. – Continuando, isto significa que só assistirá a televisão quem tiver algum descodificador… – Interromperam-na mais uma vez.

– Vizinha, o que é essa coisa de descodificador? – Perguntou a vovó Artimiza, que estava a ficar cada vez mais confusa no lugar de estar esclarecida.

– Descodificadores são os aparelhos de diversos provedores que podem ser da ZAP, GO TV, TMT, STARTIMES, ou TV CABO, que vão nos permitir assistir a televisão a partir de agora. Na verdade isto já devia ter acontecido há cinco anos, todavia o nosso país atrasou. Quanto à chuva que sai nos vossos televisores é devido ao apagão do sinal analógico que começou hoje. A partir de hoje só assiste televisão quem tiver um descodificador. Há muito que o Conselho de Ministros vinha avisando sobre o apagão. Estão a ver aquela antena parabólica ali em cima da casa? – Questionou-lhes a vovó Celeste enquanto apontava para a antena.

– Sim, estamos a ver. Já agora, é essa tal coisa que se chama descodificador? – Questionou-a velha Artimiza.

– Aquilo é a antena de um descodificador. Aquela é da Go Tv. Eis a razão de eu estar a assistir aqui em casa. Mensalmente paga-se um certo valor que vai de acordo com os canais que o telespectador quer. – Explicou-lhes detalhadamente.

– Esse nosso governo não gosta de ver o seu povo feliz. Nunca pensa em nós os pobres. Onde é que havemos de conseguir o tal dinheiro para comprar essas coisas de descodificador? O negócio já não está a render muito com esta maldita pandemia que assola o país e o mundo. Esses nossos governantes querem que nós, os pobres, fiquemos sem assistir. Infelizmente é um adeus a televisão para nós. Agora, no nosso país ver televisão é apenas para os ricos. Nós estávamos bem antes disto tudo. Essa coisa de digital só trouxe exclusão digital para nós os pobres. – Desabafou a vovó Zita.

– Não é bem assim vizinha. Os que não têm dinheiro vão ter que fazer sacrifício para conseguir comprar um descodificador da TMT. Com este descodificador a pessoa pode não efectuar pagamentos mensais e apenas poderá assistir canais nacionais.

O dia já estava a anoitecer. As velhas Zita e Artimiza agradeceram a vizinha Celeste pelo esclarecimento. As duas despediram-se e regressaram às suas casas. Pelo caminho pensavam em como fazer para conseguir o valor para aquisição do dispositivo.

– Vizinha, tive uma ideia que pode nos ajudar a conseguir dinheiro para a compra dos descodificadores. – Disse a idosa Artimiza, bem animada.

– Que ideia é essa que vai nos ajudar a conseguir comprar os descodificadores? – Questionou a velha Zita. – Diga logo, pois eu já estou ansiosa para saber. Eu já tinha metido na minha cabeça que nunca mais iria ver televisão aqui na minha casa por falta de dinheiro. Por favor, diga logo. – Implorou a vovó Zita.

– A ideia é fazermos xitiki diário ou semanal e compramos um de cada vez. Nós fazemos negócios. Penso que se formos a poupar vai dar para adquirirmos. Com xitike pode ser mais rápido. Que tal a ideia, é boa? – Questionou-a.

– Sim, é boa. Podemos fazer. – Respondeu.

Minutos depois, a vovó Zita já estava em casa. Chamou os seus dois netinhos. Deram uma sentada na sala. Os meninos começaram a tremer e a ter medo. Questionavam-se sobre o que teriam aprontado desta vez e não conseguiam descobrir algo que teriam aprontado. Não viam motivos para serem chamados daquela forma.

– Já estamos aqui, vovó. Porque é que nos chamou dessa forma? O que é que aprontamos desta vez? – Questionou Carlitos.

– Meus netos, chamei-vos porque quero vos pedir desculpas. – Disse a vovó Zita, com o semblante triste.

– Desculpas? Será que ouvi bem? A vovó quer nos pedir desculpas? Desde quando a vovó pede-nos desculpas? Está muito estranho… Não devíamos ser nós a pedirmos desculpas por termos aprontado algo? – Perguntou o menino Paulo.

– É que joguei toda culpa em vocês de terem estragado o televisor de casa. Na verdade vocês não estragaram nada. O problema é geral. Fomos conferir em casa dos vizinhos… – Explicava a vovó Zita quando o Carlitos a interrompeu.

– Está a ver vovó, sempre anda a nos culpar de ter feito coisas antes de confirmar. Eu disse que não estraguei o televisor… já agora, o que é que aconteceu? – Questionou-a Carlitos.

– Dizem que é um apagão do sistema de televisão analógica… – Respondeu a velha Zita.

– Vovó, o que é isso de apagão? Quer dizer que desligaram os nossos televisores? – Questionou o menino Paulo.

– A partir de agora só vê televisão quem tiver um descodificador … Paga-se mensalmente. Temos que comprar os descodificadores. Infelizmente os dirigentes do nosso país não querem nos ver felizes. Onde é que vamos conseguir tanto dinheiro para essas coisas? Estamos entregues à sorte, meus netos. – Disse a vovó Zita em jeito de desabafo. – É por isso que vos peço desculpas. – Acrescentou.

As idosas apenas trabalham para comer. Dificilmente pensam em caprichos. As duas famílias ficaram dois meses sem ver televisão. A situação criou-lhes ódio para com os governantes.

Finalmente o dinheiro de xitiki tornou-se suficiente para se adquirir o descodificador da TMT para a primeira família. Dirigiram-se aos revendedores. Os locais andavam superlotados. Em noutros sítios os descodificadores começavam a escassear. A procura era maior. Foi necessário uma semana para que conseguissem adquirir o descodificador. Passado um mês, as idosas adquiriram o segundo descodificador. Porém não tinha sinal.

Centenas de munícipes amotinaram-se defronte da instituição que lidera o processo de migração digital no país. A agenda era única: reclamações por alguns descodificadores não transmitem sinal. Mais uma dor de cabeça instalou-se no seio da população. O director respondeu a preocupação dos munícipes. O erro de fabrico é o problema apontado pelo director. Trocou-se os descodificadores e os munícipes regressaram às suas casas. Já estava tudo controlado.

Num belo Domingo, a cidade foi assaltada pelo vento forte e chuva torrencial. O sinal da televisão apresentava falhas.

– Mil vezes se tivéssemos permanecido no tempo analógico. Não tínhamos todas essas dores de cabeça que estamos a ter hoje com esta coisa de digital. – Comentavam as idosas.

O sistema de televisão digital no qual o país está mergulhado empurrou centenas de famílias, as de baixa renda, para a dita exclusão digital. Há famílias que não sabem quando é que voltarão a ver televisão nas suas casas.

Enoque Daniel

Contador de histórias

Etdaniel21@gmail.com

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