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Nhinguitimo – a outra margem da História

Dizem que o mundo só anda/ tendo à frente um capataz.

in “Os índios da meia-praia”, Zeca Afonso

 

A História de Moçambique é um lugar onde flutua o poder criativo de Licínio Azevedo. Depois de a ter ficcionado de diversas formas, por exemplo, em Coração forte – relatos do povo armado (histórias, 1982), Virgem Margarida (filme, 2012) e Comboio de sal e açúcar (filme, 2016), com efeito, mais uma vez o realizador regressa ao passado para de lá retirar emoções de uma época que teima em emitir mensagens ao presente. A curta-metragem Nhinguitimo, adaptada do conto de Luís Bernardo Honwana, expressa essa vocação do cineasta olhar para trás como quem pensa o seu tempo no espaço onde habita.

Na versão da Ébano Multimédia e Mahla Filmes, Nhinguitimo é uma série de narrativas interligadas, curtas, mas profundas. No centro da história encontra-se Vírgula Oito (António Sitoi), uma personagem tão sonhadora quanto inconformada com as adversidades impostas a si e a sua gente. No seu futuro cabem N’teasse (Silvana Pombal) e os fartos campos verdejantes que vaticinam uma vida conjugal confortada. No entanto, no auge dos seus vaticínios falíveis, eis que a ambição de um comerciante ordinário, Rodrigues (António Cabrita), corrompe o Administrador do lugar (Luís Sarmento), convencendo-o a arrancar as terras aráveis do pobre camponês. Aí logo se forma uma ficção que coloca a justiça apenas ao benefício dos mais fortes (os colonos portugueses), fazendo com que, como afirma Pepel, personagem de Albergue nocturno, de Máximo Gorki, a honra e a consciência sejam coisas boas para quem tem autoridade.

Em termos da sinopse, Nhinguitimo não é uma história surpreendente. Logo se vê, as questões ligadas às excentricidades coloniais em Moçambique exploradas na curta-metragem já foram ficcionadas em livro, além de Luís Bernardo Honwana, por autores como Isaac Zita, João Dias, Guilherme de Melo, Orlando Mendes ou Lília Momplé. Ainda assim, interessa ver como as cenas do filme de Licínio Azevedo estão encadeadas e como através de diálogos (às vezes apaixonados) entre as personagens se projectam as relações de afinidade ou hostis. Nesses diálogos, claro está, facilmente se destaca Vírgula Oito, pela precisão e acutilância interpretativa. Aliás, Vírgula Oito é de longe a personagem mais interessante da história, graças à performance de um actor que soube interpretar o papel em todos os momentos da ficção. António Sitoi soube de todo se colocar ao nível da tão exigente personagem instável, quer ao nível da expressão corporal (a envolver tiques, gestos, movimentos), quer ao nível da expressão oral. Que dicção rhonga/changana! De facto, no uso da fala, Sitoi permite a Vírgula Oito concretizar o entendimento de Roman Jakobson sobre a palavra (enquanto signo verbal): a união do som e do sentido, no caso do filme, muito dependente da emoção que move a enunciação da personagem.

No capítulo das performances dos actores, vale ainda destacar as convincentes aparições de António Cabrita e Luís Sarmento. A espontaneidade do primeiro e austeridade do segundo contribuíram para a concretização de uma boa cena hilariante no interior do bar de Rodrigues, onde ficam clarificados os contrastes linguísticos de uma sociedade bem bipolarizada.

A curta-metragem de Licínio Azevedo pretende ser uma película na qual se reúnem a acuidade de recontar a História de Moçambique através de eventos marginais, ocorridos numa pequena aldeia algures em Lourenço Marques. Do mesmo modo, a ficção tem a particularidade de relançar esse debate sobre o racismo, afinal ainda actual. Todo a preto e branco, Nhinguitimo atravessa a época colonial de forma transversal, quando cristaliza as possíveis reacções de uma sociedade que se farta da arrogância dos que, para enriquecerem, não se importam de chupar os desfavorecidos até ao tutano. Rodrigues não é apenas um homem branco, igualmente, é o eufemismo de uma quizumba sem tonalidade de pele, que desterra gente, apropriando-se dos seus recursos na tentativa de expandir o seu império fel.

Não obstante as situações perniciosas à volta de um poder ilegítimo, a actuação de Vírgula Oito serve para protestar contra essa velha ideia que Zeca Afonso ironiza na música “Os índios da meia-praia”: “Dizem que o mundo só anda/ tendo à frente um capataz”. Apenas Vírgula Oito compreende a falsidade da afirmação. Os outros, casos de Maguiguane (Jorge Vaz) e Machumbutana (Ivan Barrama), cegos pelo medo, vacilam e lá abandonam o camponês contrariado.

Quem for a ver o filme, primeiro, deve aproveitar cada segundo. 22 minutos (com ficha técnica) passam num ápice e quando isso acontece até custa acreditar no final do filme. Segundo, quem for a ver o filme irá conectar-se com a outra margem da História de Moçambique (sem heróis nacionais), lá onde se cruzam a realidade e a delicada arte da representação. Seguramente, o telespectador irá deixar-se impressionar por uma excelente direcção de fotografia (Pipas Forjaz) e pela selecção/ misturas musicais protagonizadas por Joni Schalwbach. A trilha sonora cumpre no filme a função importantíssima na sedimentação de tudo o que não pode ser descrito através das falas das personagens. Nhinguitimo é tudo isso: um filme no qual Moçambique se reencontra, de alguma maneira.

 

Título: Nhinguitimo

Realizador: Licínio Azevedo

Produtoras: Ébano Multimédia e Mahla Filmes

Director de fotografia: Pipas Forjaz

Produtor-Executivo: Jorge Ferrão

Classificação: 15

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