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Mr. Abdullah Ibrahim, District Six e as mãos de Deus

Cruzámo-nos no saguão do aeroporto de Joanesburgo, numa quarta-feira usual, era 29 de Junho, estávamos em 2016, pouco antes das 19 horas. Eu ia a sair a caminho da porta de embarque do meu voo para Londres e levava na mão a minha filha Mayisha. Ele ia no sentido contrário ao nosso. Quando o observei, com discreta admiração, ele acenou com a cabeça. Parei e recuei para o cumprimentar. Ele assentiria que a Mayisha tirasse uma fotografia do meu telemóvel e despedimo-nos de punho cerrado como velhos e bons amigos depois de me ter abraçado. Naquele instante fugaz, disse-lhe que era de Moçambique e que o admirava muito. Não houve ocasião para mais. A caminho do avião, expliquei à minha filha que acabávamos de ter estado com um dos vultos do jazz a nível mundial, indubitavelmente o mais proeminente e indeclinável em África. A bordo, rascunhei uns versos:

“Mr. Abdullah Ibrahim acena-me como se eu fosse/ um velho conhecido seu do District Six/ na Cidade do Cabo/ ou de algumas cidades que frequenta/ no seu longínquo exílio da África do Sul./ Digo à minha filha Mayisha que aquele homem/ é o maior pianista de jazz em toda a África/ e viro-me para ele: / – Mr. Ibrahim: sou moçambicano/ e um velho admirador seu. / Ele anui e trocamos um cumprimento de punho fechado / como se fôssemos velhos cúmplices. / Mayisha faz-nos uma fotografia com telemóvel. / Mr. Ibrahim abraça-me e eu faço-lhe depois uma vénia. / Levo pela mão a minha filha enquanto Mr. Ibrahim prossegue o seu destino. / Também a cumprimentara de punho cerrado. / Explico à Mayisha que aquele homem é um soberbo músico de jazz/ do District Six/ na Cidade do Cabo onde ela vive / e acodem-me à memória os sons de “Mannenberg”. / Era assim quando ele era Dollar Brand. / É assim agora que é Abdullah Ibrahim. / Partilho, no auricular, “Woza Mtwana”, “Tintinyana”, “The Wedding”, “African Sun”, “Mannenberg”, “District Six”. // Mais tarde, ao rememorar aquele encontro/ volto-me para a imagem das suas mãos/ o punho cerrado/ como nos saudamos/ e lembro-me delas magnificentes e enfeitiçadas. // Aquelas mãos do Mr. Abdullah Ibrahim/ meu vetusto Dollar Brand/ quando ele está sentado ao piano/ parecem-se demasiado/ com as mãos de Deus.”

Acho que o ouvi até adormecer na minha viagem a Londres. Vira-o pela primeira vez a tocar em Joanesburgo e ficara empolgado com a sua figura majestosa e os seus gestos soberanos. Abdullah Ibrahim ao piano é indescritível. Um Deus ao piano. Os sons que ele tira daquele instrumento são inexplicavelmente belos. Talvez seja o último dos grandes mitos planetários. Foi parceiro e admirador de outras grandes figras legendárias do jazz: Duke Ellington, Thelounious Monk,John Coltrane, eu sei l. Não deve haver hoje entre os vivos figura tão comensurável do jazz. Em África, pelo menos. Desde os 15 anos que comecei a ouvi-lo na Rádio Moçambique. A RM tocava reiteradamente, naqueles anos 80, “Mannenberg”, que se haveria de transformar num hino anti-apartheid. Manenberg (a capa do disco e a música estão grafados como “Mannenberg”, mas a zona é conhecida como Manenberg) é como se chama a township para onde foram levados os não-brancos residentes do District Six (mais de 60 mil), obrigados a abandonar a sua zona de origem por força de um ditame do apartheid, em 1966 (Group Areas Act, 11 de Fevereiro de 1966). A desumanidade do que ali aconteceu é uma das marcas distintivas da política de segregação racial. A geografia da separação e do confinamento. Construíram-se auto-estradas e linhas férreas para separar comunidades. Destruíram tudo à volta, apenas deixaram intactas algumas escolas e lugares de culto. District Six é lugar de origem de muitos nomes insignes da cultura sul-africana. Ibrahim é oriundo de lá, como o saxofonista Basil Coetzee, que com ele tocou este extraordinário libelo contra o apartheid que é “Mannenberg”, ou o escritor Alex La Guma, de que ninguém fala hoje em dia, mas que chegou a ser um dos nomes proeminentes da literatura sul-africana. Morreu no exílio, em Havana, em 1985.

Nascido Adolph Johannes Brand, a 9 de Outubro de 1934, no District Six, na Cidade do Cabo, Abdullah Ibrahim iniciou a sua carreira em 1955. Contudo sete anos depois estava exilado na Europa. Em 1965 casar-se-ia com Sathima Bea Benjamim, uma cantora de jazz, também da Cidade do Cabo. Foi ela quem haveria de convencer o mítico pianista Duke Ellington a ouvir, em Zurique, o “Dollar Brand Trio”, onde pontificava o seu futuro companheiro de uma vida. Sathima morreu em 2013 com 76 anos. Musa e companheira de Ibrahim. “Song for Sathima” é uma bela homenagem.

O encontro com Duke haveria de mudar a vida deste virtuoso pianista sul-africano e definir-lhe o rumo, que é hoje um dos mais consagrados nomes do jazz, não só ao nível do continente, mas no mundo.  “Ode to Duke Ellington”, de 1973, testemunha isso mesmo ou “In a sentimental mood”, de Ellington, também conhecida a extraordinária gravação do compositor e o saxofonista John Coltrane. O casal Brand seguiu para Nova Iorque onde emparceiraram com nomes luminosos do jazz, como Ornette Coleman, John Coltrane (que ele haveria de homenagear na músca “For Coltrane”), Archie Sheep, Max Roach, entre outros.

Nos anos 70 ensaiou um regresso à África do Sul. Entretanto, convertera-se ao islamismo em 1968, o que explicará a sua mudança de nome artístico de Dollar Brand para Abdullah Ibrahim, anos mais tarde. Foi nesse interregno do exílio, nos meados dos anos 70, que cria “Mannenberg”, em 1974. Participam nela: Dollar Brand (Abdulah Ibrahim) ao piano; Basil Coetzee, que toca saxofone tenor; Robbie Jansen, saxofone alto; Monty Weber na bateria e Morris Goldberg ao saxofone alto. Não sei quantas vezes ouvi este tema. É um grande momento na inventiva deste pianista genial. A música é gravada em Junho, ele está à beira de fazer 40 anos em Outubro desse ano.

Ali estão as influências todas que bebeu na infância, na juventude e na idade adulta: nos ritmos locais conhecidos como marabi, mbaqanga, ou kwela, que tem uma extraordinária influência no chamado jazz sul-africano. Não é desprezível a influência do jazz americano. Ali estava o jovem que tocara nos The Jazz Epistles, uma banda de bepop, onde pontificaram alguns dos mais insignes nomes do jazz sul-africano: Kippie Moeketsi (saxofone alto), Jonas Gwangwa (trombone), Hugh Masekela (trompete) Johnny Gertze (baixo) Makaya Nstholo (bateria). Esta experiência durou pouquíssimo. Iniciada em 1959 (a banda própria de Ibrahim é de 1958), a sua actividade seria coarctada após o massacre de Sharpeville, que está na origem de uma grande repressão cultural que atingiu estes músicos. Muitos deles emigram. Curiosamente, Basil Coetzee empurrado do District Six para Manenberg nunca irá emigrar.

Rui Knopfli: “Depois do turkish coffee meto-me/ até ao Cul de Sac e fico-me/ a ouvir o sax maravilhado / de Kippie Moeketse. O jazz, sim, é genuíno e tem um bite/ todo local.”

Dollar Brand, primeiro, Abdullah Ibrahim, depois, percorreu o mundo, tocou nos palcos mais importantes, compôs temas inesquecíveis e tornou-se um verdadeiro mito do jazz. Em 1982, Dollar Brand esteve em Moçambique. Em casa de Ricardo Rangel descobriu – já aqui contei – um disco seu que já não tinha. Há aliás uma fotografia desse encontro: Abdullah Ibrahim, Ricardo Rangel e Malangatana. Rangel, sabe-se, era um impenitente coleccionador de LP, o mais importante coleccionador moçambicano de jazz. Eu acompanhei essa visita pelos jornais e ouvi-o tocar na Rádio. Sempre quis ouvi-lo ao vivo. Desde aquela altura. Em Março de 1983, Mia Couto publica o seu livro de poesia de estreia, intitulado Raiz de Orvalho. Tem este poema com o título “Dollar Brand” escrito a 18 de Agosto de 1982.

Mia Couto: “Eu quero uma canção/ que se renda insubmissa/ mas não a peço/ porque sei que morre quem pede/ e eu sou fiel/ aos passageiros desconhecidos/ da minha fraternidade / Assim me chega/ o primeiro acorde/ a primeira lágrima sonora/ e os teus dedos vão esculpindo/ uma arca de fascínio/ do mundo dos sons/ tu retiras/ os sons do mundo/ e na sua suave febre/ da tua maneira/ ouvimos tudo/ de todos os lados/ porque em nós desagua/ a canção de todas as canções.”

“Mannenberg” atravessou a minha vida. É um dos temas que mais ouvi nas últimas quatro décadas. A história da África do Sul dizia-nos muito, dizia muito à minha geração, e nós, naquele tempo, empenhámo-nos no sonho de ver o país livre do apartheid. Provavelmente, hoje, isso não tenha significado ou expressão para os jovens deste tempo. Minha filha tem 18 anos e eu queria que ela tivesse um pouco desse legado. Queria, sobretudo, que ela entendesse um pouco daquilo que eu, na idade dela, vivia e sonhava numa cidade sitiada e acossada, sobretudo pelo facto de Moçambique ter apoiado aquela luta. O preço duríssimo que pagámos. A desmemória pode ser uma factura ainda mais elevada. Daí a minha obstinação pela memória. Comecei a falar-lhe dos anos 80 e fi-lo através da música dos Ghorwane: sobretudo “Akuhanha” e “Terehumba” de Roberto Chitsondzo. Ia a caminho de District Six, esta segunda-feira, e explicava à Mayisha estas duas músicas. Era o prelúdio para ela entender como era o nosso tempo, sendo que estas duas músicas não são datadas, antes pelo contrário. Permanecem actuais. Parece um paradoxo introduzir a conversa sobre a importância de Abdullah Ibrahim ouvindo antes os Ghorwane? Pode parecer, mas não o é. Foi naquela circunstância dos anos 80 que eu comecei a ouvi-lo e esse era o meu contexto. Queria transmitir-lhe isso.

Abdullah Ibrahim, “Water from an Ancient Well”, no The Fugard Theatre, no District Six, tem um significado incalculável. Já o vi tocar em Joanesburgo ou na Cidade do Cabo diversas vezes, e em nenhuma delas o vi tocar “Mannenberg”. Hoje sucedeu o mesmo. Por que razão Abdullah Ibrahim não toca “Mannenberg”? Ele esteve soberbamente durante hora e meia no palco solitário com o seu melancólico piano: “Woza Mtwana”, “Little Boy”, “Tintinyana”, “The Wedding”, “African Sun”, “District Six”, entre outras composições. Tinha uma pauta para o conduzir na intersecção das músicas e um rabisco onde estavam escritos os títulos das músicas. Eu estava na primeira fila e a dois metros do seu piano e consegui enxergar alguns dos títulos rascunhados no roteiro que começara com “Chisa”: vi redigido “Tintinyana”, “D-6”, entre outros títulos.

Acabo de regressar dessa missão exultante. Ali naquela sala encantadora, daquele teatro emblemático, do District Six, dei a conhecer Abdullah Ibrahim à minha filha Mayisha. Foi o mesmo que contar também a minha história dos últimos 35 anos. Nós somos aquilo que ouvimos, lemos ou admiramos. As obras magistrais de criadores como Ibrahim escrevem, de algum modo, a nossa biografia individual e até colectiva. O teatro chama-se Athol Fugard, um renomado dramaturgo sul-africano, de 86 anos, que escreveu peças que denunciavam o apartheid. Recordo-me de ouvir, na Rádio Moçambique, no “Cena Aberta”, uma peça dele, adaptada pelo Leite de Vasconcelos. Ao ver aquele nome ali estampado, também revi um pouco do meu percurso e sobressaltei.

Ao longo de hora e meia deixei-me empolgar, emocionar, arrepiar com o génio de Abdullah Ibrahim. Enquanto ouvia aquele piano devastador – a arte quando é tão bela e lancinante pode ser igualmente devastadora – eu olhava de vez em quando para a Mayisha e tentava transmitir-lhe, por caminhos ínvios, provavelmente, a emoção de estar ali e ver e ouvir aquele Deus africano ao piano: soberbo e generoso, genial e inultrapassável, hierático e sublime.  Não sei descrever mais o que senti naquela noite no District Six. A exultação de todos, com palmas intermináveis, que ele humildemente pediu para que cessassem, senão não poderia retirar-se, atestam o raro momento que ali vivemos e comungamos. Oiço-o agora, enquanto batuco esta prosa canhestra e volto a comover-me.

 

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