O País – A verdade como notícia

Montserrat Caballé, Freddie Mercury e Barcelona

A lendária paixão de Freddie Mercury pela voz e pelo belo canto de Montserrat Caballé está na origem de um dos mais fascinantes encontros no universo da música do século passado. Desde que a viu cantar Giuseppe Verdi, em 1981, na Royal Opera House, de Londres, que o cantor popularíssimo dos Queen alimentou o sonho obsessivo de cantar com a diva catalã. Ele fora ver Luciano Pavarotti, outra figura legendária, mas saíra dali obcecado pela cantora lírica. Anos depois, em 1987, para a convencer, depois de muitas investidas sem sucesso, através de emissários, instalou-se, com uma equipa de som e um piano, no Hotel Ritz de Barcelona, e cantou, quando ela assomou, “Exercises in Free Love”, fazendo os falsetes que haveriam de corresponder à prestação de Montserrat, caso ela assentisse. Nasceu assim a mais improvável das parelhas: ele diria, zombando dela, afectuosamente, que a tinha transformado numa espécie de “rock star”. Esta afirmação não deixa de ter algo de verdadeiro. Agora que Caballé viaja para o planeta onde está Mercury desde 1991, é, recorrentemente, lembrada por esta parceria. Não há nenhuma injustiça nisso. Ela já era a grande voz. Considerada por muitos a maior do século. Talvez, sim, com uma ressalva: Maria Callas seria a soprano de todos os tempos. José Carreras (na verdade Josep Carreras) diria que nunca havia visto ninguém cantar como Caballé. O facto de Freddie a considerar a mais bela voz do Mundo não era apenas uma estratégia de sedução. Isto num tempo anterior aos famosos duetos do próprio Pavarotti com outros tantos cantores.

Freddie Mercury e Mike Moran (e Tim Rice) compuseram as belíssimas músicas que constituem o disco “Barcelona”, que uniria para sempre a soprano catalã e o líder dos Queen. Esse encontro é um verdadeiro milagre. Acontece uma alquimia feliz e uma empatia irrepetível. A letra de “Barcelona” traduz esse sonho de Mercury. “I had this perfect dream/ This dream was me and you/ I want all the world to see/ A miracle sensation/ My guide and inspiration/ Now my dream is slowly coming true.” A faixa “Ensueño”, que corresponde ao originalíssimo “Exercises in Free Love”, é outra das epifanias. Ao ouvi-los a cantar esta música compreende-se o poder do sonho e a força persuasiva de Freddie, excessivo, exuberante e vibrante: “Tu voz penetra em mi/ Vibra en ti/ Vibra en mi”, cantam em castelhano, acompanhados de piano, como fizera o cantor inglês no Hotel Ritz de Barcelona, quando a arrebatou.

Eu tenho ouvido recorrentemente esta música e este belíssimo disco. Eu tenho uma paixão obstinada por Barcelona, pela cidade, por estes dois cantores. Antes de “Barcelona”, conhecia modestamente Montserrat Caballé, ouvira falar dela, via referências quando ia a Madrid, onde vivia a Ana Juliana. Eu ia amiúde a Madrid e os nomes de Montserrat Caballé, José Carreras e Plácido Domingo eram comuns. Ouvia-os com frequência, mas não tinha a mesma paixão, quase insana, que nutria por Freddie Mercury, que era e é o meu cantor de culto. (Na época também tinha um amor excludente pela Maria Callas. Ainda hoje a oiço. Sobretudo “Carmen”, de Georges Bizé – “Habanera”, como ficou conhecida a ária “L´amour est un oiseau rebelle”). A reunião dos dois sob o signo da cidade condal impõe-me, desde então, essa trilogia indisfarçável: Montserrat Caballé, Freddie Mercury e Barcelona. Quando o cantor inglês morreu, em Novembro de 1991, o primeiro pensamento que tive foi de que ele não cantaria mais com a Caballé nos Jogos Olímpicos de Barcelona, no ano seguinte. Inadvertidamente fizera o hino da cidade a partir do seu génio e da sua fixação pela voz e pelo canto de Montserrat. Ela já era um mito, mas esta parceria fê-la muito mais conhecida no Planeta.

Agora oiço-os de novo. Impossível falar deles sem falar da “cidade dos prodígios” e do meu amor literário, também obsessivo e implacável pela cidade. Levei muitos anos antes de ler o notável romance de Eduardo Mendoza – A Cidade dos Prodígios. É um dos livros que mais me enlevou na vida. Um belíssimo romance. Lera antes um livro que concitara leitores e que me parecera, também, de algum modo, prodigioso: A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón. Tenho os livros de Juan Marsé para ler. Tenho, no entanto, lido e relido o poeta Jaime Gil de Biedma, de quem sou um incondicional admirador.

O escritor irlandês Colm Tóibín escreveu um dos livros mais belos sobre a cidade – Homenagem a Barcelona. O título acena para um título mítico – Homenagem a Catalunha -, de George Orwell, que relata a experiência do escritor inglês sobre a guerra civil espanhola. Aliás, as páginas do próprio Tóibín sobre esse tempo sombrio da guerra são brilhantes. Para além disso, as páginas sobre o tempo da República ou as que falam do Bairro Gótico, de Picasso, de Miró, de Gaudí e ainda da geração de 1992, para resumir, são igualmente excitantes.

Cheguei a Barcelona de comboio, numa viagem remota.  Sonhara durante anos com a cidade na voz de Caballé e Mercury, que oiço esta noite, que oiço repetidamente, que oiço obsessivamente, num incessável arroubo. “Barcelona”, na voz deles, tem um efeito mobilizador para mim, dá-me ânimo, é uma espécie de tónico. Quando exulto, grito: “Barcelona!” ou procuro pelo vídeo desta música na Internet. Seja por que razão for. É o efeito catártico da voz poderosa do Freddie cantando com a imensa Montserrat. É como se o apelo que está contido na letra e na voz de Mercury me transportasse para outra galáxia.

A cidade de Antoni Gaudí colheu-me de espanto desde o primeiro momento. Tenho um poema algures, publicado primeiro no livro A Cidade Lúbrica, dado à estampa em Bolonha, em Itália, em 1998, nunca publicado aqui, onde falo da minha fuga perante o espanto daquela monumental obra. Retomei esse poema no livro A Viagem Profana, de 2003, que resgatou alguns poemas daquele livro anterior. O poema termina dizendo: “Saí da Catalunha a fugir/ não sei se de mim ou de Barcelona.”

A Sagrada Família é incontornável. Talvez seja o monumento de Barcelona, sendo que a cidade não está desprovida de monumentais obras. De Gaudí e não só. Aliás, esta igreja representa aquilo que a criação se permite a um espírito completamente desvairado. É a loucura genial de Gaudí. O arquitecto morreu atropelado em 1926 e a obra ainda hoje prossegue com desassombro. Já a visitei diversas vezes e sempre me empolgo ali. O génio humano e o toque divino encontram-se naquele projecto. Não o sei descrever. O meu vocabulário é, por certo, incompetente para o fazer.

Já que temos o Gaudí à mão: falemos de La Pedrera e Casa Batló, dois marcos arquitectónicos da cidade, em pleno Passeig de Gràcia. Eu gosto do Passeig de Gràcia. Gosto de ali estar. A beleza, a beleza, a beleza. O esplendor do Bairro L´Eixample. Há quem goste mais do Bairro Gótico. Aliás, Colm Tóibín, na sua Homenagem a Barcelona, traça páginas belíssimas sobre o Bairro Gótico. Gosto de passear pelo Gótigo, mas o Passeig de Gràcia é o Passeig de Gràcia e está tudo dito. É como estar na Quinta Avenida em Nova Iorque, no La Spiga em Milão, na calle Serrano, em Madrid.

O Bairro Gótico testemunha a cidade como um dos guardiões do gótico na Europa. Os modernistas, como Gaudí, revêem-se no gótico e nele se inspiraram para as suas arrojadas criações arquitectónicas. Este bairro é o repositório de uma época do florescimento da cidade. A Catedral ou mesmo o Palau de La Generalitat são imperdíveis.  Também gosto de andarilhar por La Ribera. Esta cidade tem mar e isso faz toda a diferença. O templo de Santa Maria del Mar ou o Mercat del Born. O Museu Picasso e o incrível Palácio da Música Catalã são igualmente imperdíveis.

Ainda não me referi a Rambla e isso parece indesculpável. La Rambla deriva do árabe “areia”. Esta ampla avenida era um ribeiro que se estendia até ao mar. Quando secava transformava-se num extenso areal. A Rambla tem cafés, tem artistas, tem vendedores ambulantes, tem charlatães, tem vendedores de todas as ilusões, tem encantadores da noite. É a movida catalã, de manhã, à tarde e à noite. A Praça da Catalunha, no alto da Rambla, e o monumento a Cristóvão Colombo no final da mesma.

A primeira vez que ali cheguei, saí da boca do metro e fui, literalmente, tolhido pelos sons apátridas de músicos oriundos da América Latina. Foi uma chegada exuberante a esta praça e ainda hoje aqueles sons reverberam em mim. O mercado de São José, conhecido por La Boqueria, é o mais antigo dos mercados de Barcelona e está na Rambla. Não se perdoa a quem não o visite. Porto Velho e Barceloneta. A zona do mar, do porto, o antigo bairro de pescadores, Barceloneta, conserva o charme e o encanto dos tempos. Um antigo armazém alberga o Museu de História da Catalunha. O ambiente popular da Barceloneta prossegue até à praia onde se pode admirar uma obra peculiar – a estrela ferida, de Rebecca Horn, a modelar a paisagem. Ainda na zona de mar, o Port Olimpic, El Poblenou e El Forun, fazem o fascínio da cidade.

Ver a cidade de Montjuic, “colina dos judeus”, a colina mágica, dizem muitos e o mito reitera-o, é uma experiência única. Vale também visitar a Fundação Joan Miró. Miró é um dos meus pintores electivos. Tóibín faz um retrato fabuloso de Miró e conta a história desta fundação. Vale ainda a pena desfrutar dos parques e jardins, olhar o Mediterrâneo dali, admirar as piscinas olímpicas, o anel olímpico, a torre de comunicação do Calatrava, outros ex-libris da cidade. Há uma escadaria que nos leva para a Praça de Espanha. Descê-la é uma experiência ímpar.

Quem é louco por futebol e, sobretudo, pela equipa do Barça, tem, no Camp Nou, o museu do clube para visitar e viver a magia de um grande clube. A fábula da equipa do argentino Lionel Messi. Mas eu prefiro atardar-me no Parc Guell. Em 1900, Eusebi Guell sonhou implantar uma “cidade jardim”, em 20 hectares debruçados sobre o mar. Desafiou a imaginação de Antoni Gaudí. Este, porém, desistiu do projecto inicial quatro anos depois, o que não impediu que as suas criações imaginosas estivessem na origem de um dos parques-emblema da cidade.

Barcelona é uma cidade que nos convida a caminhar, a andar de bicicleta ou a sentar num dos seus belos bancos, num café e admirar quem passa; cidade para quem gosta de ir às compras; para se comprazer com a excelente e diversa culinária; cidade de artistas, de pintores, de escritores, de músicos; de homens-estátuas, de quiosques; cidade dos chineses no bairro Raval; onde avultam prostitutas ou dos gays no L´Eixample; cidade de todos.

A cidade nos esquissos de Antoní Gaudí, nos livros de Eduardo Mendoza, Manuel Vásquez Montalban, Montserrat Roig, Juan Marsé, Carlos Ruiz Zafón, nos poemas de Jaime Gil de Biedma, nas pinturas de Pablo Picasso ou Joan Miró, a minha cidade literária, a cidade dos meus sonhos, onde sempre sonhei um dia viver, escrever e amar, a cidade das cidades, minha cidade também. Sonho postergado o meu: Barcelona está exaurida pelo extenuante turismo de massas. Hoje também é uma cidade atormentada. Por vezes, vejo as imagens lancinantes de Barcelona na televisão.

A Catalunha está na origem desta escrita. Foi um texto, que eu fazia circular entre amigos, no qual discernia sobre a velha e irresolúvel questão da República Catalã, que me empurrou para estas páginas. Nunca deixei de pensar Barcelona sem estas duas vozes: Montserrat Caballé e Freddie Mercury. “Barcelona! / It was the first time that we met/ Barcelona! / How can I Forget?/ The moment that you stepped in the room/ You took my breath away.” Sempre senti esta mesma pulsação de Freddie Mercuy. Comigo nasceu também um amor incessante e obsessivo, num momento de vibração e de celebração, numa empatia inesperada e, provavelmente, num dolorido e incompreendido amor, como o são os amores exultados e exultantes. Freddie canta para Caballé e é profético: a música e Barcelona os uniu para sempre: “And if God is willing/ We will meet again/ Someday”. Neste sábado, 6 de Outubro, cumpriu-se a profecia. Freddie Mercury (1946-1991) e Montserrat Caballé (1933-2018) encontraram-se de novo e cantaram, indubitavelmente, entre outras músicas, “Barcelona”.

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos