O País – A verdade como notícia

Marcas d’uma guerra civil

MoÇambique estava a ser dilacerado por uma sangrenta guerra civil que rebentou dois anos após a independência do país: a guerra dos 16 anos. De todos os cantos ouvia-se o barulho das armas na província da Zambézia. Milhares de pessoas deslocavam-se de uma região para outra a procura de lugares seguros para habitarem. Durante essas andanças, os braços do jovem Sebastião foram atingidos por uma chuva de balas que não soube de onde é que vinham.

Sebastião começou a sangrar fortemente. O chão todo ficou irrigado de sangue. Os seus amigos, que outrora se desfizeram do grupo almejando escapar duma chuva caindo do céu das armas, encontraram-no, horas depois, estatelado no chão com os braços a jorrarem o sangue. Era como se de uma torneira, saindo águas turvas, se tratasse. Levaram-no, de imediato, para um centro de saúde onde receberia os primeiros socorros. Quando lá chegaram, os médicos procuraram, rapidamente, estancar o sangue. De seguida, realizaram alguns exames médicos e radiografia onde constatou-se que os seus membros superiores foram alvejados gravemente. Os tiros atingiram as suas veias principais e fraturam os ossos. A única solução era amputa-los.

A situação de Sebastião era de difícil encarar. Ninguém daqueles médicos tinha coragem de lhe anunciar àquela triste notícia, mas não havia mais nada a se fazer, para além de se amputar os dois braços. De repente, um dos profissionais ganhou a coragem, aproximou-se do paciente que chorava de tanta dor que sentia nas suas entranhas.

– «Jovem, teremos que lhe amputar os seus braços, pois sofreram bastante com as balas…» – Disse um dos agentes que se mostrou corajoso, com a sua cara possuída de dor e tristeza por ver um homem a sofrer tanto.

– «Não. Não vão fazer isso com os meus braços. Sem eles como é que vou comer, vestir-me… Como farei os meus afazeres?» – Questionou o alvejado, enquanto soltava uns gritos de choro, com os seus olhos inundados de lágrimas.

– «Não é nosso desejo que você fique sem os braços, mas sim, é para o seu bem-estar, pois, depois de muitos exames que fizemos, esta é a última e única opção que temos. As balas causaram danos graves nos seus braços. Se deixarmos assim, você corre o risco de passar mal por toda vida…» – Explicou o profissional de saúde.

As dores que o Sebastião sentia, iam aumentando cada vez mais. Ele estava desesperado e sem saber o que fazer.

– «Será que não há qualquer medicamento que posso tomar para tudo voltar ao normal, sem que precisem de executar este acto?» – Perguntou Sebastião.

– «Infelizmente não temos outra saída. As balas atingiram gravemente as veias e os ossos dos seus braços» – Respondeu o médico.

– «Então, se amputarem os meus braços não terei mais estas fortes dores que estou a sentir?» – Questionou Sebastião, com a voz trémula.

– «Sim, não sentirá mais dores depois de as feridas sararem. Fica calmo, vai dar tudo certo.» – Confortou-o o médico.

– «Está bem, aceito. Então vamos fazer isso rapidamente, pois já não suporto mais estas malditas dores.» – Prontificou-se.

Os médicos levaram-no para a sala de cirurgia onde se prosseguiu com o acto. Ele estava decidido a enfrentar esse segundo momento muito doloroso da sua vida. De seguida foi amputado os seus membros superiores. Ele ficou de baixa no hospital por cerca de quatro meses onde recebia os cuidados médicos. A guerra estava cada vez mais violenta. Passados os quatro meses, o jovem teve alta.

Ansioso para encontrar a sua família, Sebastião dirigiu-se para sua casa rapidamente. Para a sua surpresa, ninguém mais estava lá. Dúvidas começaram a flutuar na sua mente: “Estive internado no hospital por muito tempo e ninguém da família procurou saber de mim. Agora esta casa está totalmente abandonada. Será que toda a minha família tombou nesta maldita guerra? Ou refugiaram-se para um outro lugar seguro? A partir de hoje quem vai passar a cuidar de mim neste estado em que me encontro? A verdade é que já sou inútil na vida… Se aparecerem esses guerreiros malandros vão acabar comigo e nem tenho como me defender. Sou um morto vivo”.

Os dias seguintes foram de grandes desafios para o Sebastião, pois há coisas que já eram difícil de executar por si só. Neste momento em que ele precisava de ajuda de terceiros, alguns zombavam muito dele, mas os outros sensibilizavam-se bastante com o estado em que ele se encontrava e o apoiavam. Em Outubro de 1992, passou-se alguns dias em que, no seu distrito, não se ouviu mais o barulho das armas. Tudo estava estranho para os que não andavam informados. Através de uma rádio, Sebastião acompanhou a notícia que anunciava a assinatura dos Acordos Gerais de Paz, no dia 4 de Outubro de 1992, em Roma, capital da Itália. O calar das armas foi um grande suspiro dos sobreviventes daquela sangrenta guerra que dizimou milhares de pessoas.

O país começou a respirar a paz, mas a guerra levou consigo os braços do Sebastião e deixou-o com marcas indeléveis daquele dramático dia que foi banhado pela chuva mortífera de AKM’s. Num belo dia, Sebastião decidiu sair de casa e apreciar o seu bairro, que já não o via há bastante tempo devido ao isolamento que se submetia por ser deficiente. Enquanto caminhava pelo bairro, viu uns meninos que jogavam futebol. De repente sentiu chichi e, pediu um dos meninos para que lhe ajudasse a tirar as calças para urinar, mas este não aceitou, apenas limitou-se em ri-lo e depois foi-se embora. A pressão da urina aumentava cada vez mais. Enquanto ele ainda tentava tirar as calças para urinar, deu-se conta de que a urina já estava a sair.

Sebastião decidiu encarar a vida de forma diferente. Aprendeu a conviver com a sua deficiência. Aprendeu a fazer muitas coisas sem que precisasse de ajuda de terceiros. Aprendeu a escrever com os pés e depois com as partes dos braços que lhe haviam sobrado.

Um grande fotojornalista circulava pelas várias artérias da província da Zambézia, procurando registar os momentos que lhe serviriam de notícias. Durante estas suas andanças, encontrou o jovem Sebastião e ficou impressionado com o que ele conseguia fazer no estado em que ele se encontrava. O fotojornalista decidiu escrever uma reportagem sobre ele, falando dos desafios que enfrentava na vida por ser deficiente. A reportagem, com uma fotografia grande do Sebastião a escrever com a parte dos braços que lhe sobraram, foi publicada num dos jornais da praça e, na altura, a ministra da educação leu a reportagem e ficou sensibilizada com a história. Mandou chamar o jovem para a cidade de Maputo para que pudesse prosseguir com os seus estudos na capital, recebendo apoio do Ministério. Na capital, Sebastião fez o seu ensino primário e secundário.

Anos depois, com diversas dificuldades, concluiu os seus estudos superiores em psicologia, escolha motivada pelo sofrimento “mental” que tivera durante a guerra civil. Na altura da procura do emprego, nenhuma instituição quis contratá-lo, pois achavam-no inútil. As pessoas zombavam dele por ser deficiente. Ele era desprezado por quase todos. Cansado de ser humilhado, Sebastião tentou perpetrar um suicídio sem sucesso. Depois de escapar do suicídio, ele decidiu continuar a enfrentar os preconceitos que a sociedade tinha contra pessoas portadoras de algum tipo de deficiência.

Passaram-se muitos anos, mas todos aqueles acontecimentos que Sebastião viveu durante a guerra estão gravados na sua mente. Sempre que os moçambicanos comemoram o dia da paz, a 04 de Outubro de cada ano, ele recorda com dor e consternação todos os episódios dolosos que viveu durante a guerra civil. A todo momento que ele olha para os seus braços amputados, a sua mente recua para o passado, trazendo-lhe memórias daquele dramático dia em que os seus braços receberam uma enxurrada de balas. Ele não acredita no assunto da paz, pois todos os dias são de luta contra pessoas que o descriminam.

 

 

 

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