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Malangatana

Malangatana:

– Tens gin em casa?

Eu disse-lhe que sim.

– Então vou aí!

Não passou muito tempo, o velho Mercedes do Mestre estacionava no baldio que tínhamos à frente do prédio. O dia dessa visita está anotadíssimo: 22 de Março de 2003. O Irati acabara de fazer sete anos e a Mayisha, que nascera enquanto vivíamos naquele apartamento da Coop, tinha dois anos. Já passava das 19 horas quando ele chegou, presumo que a Mayisha dormia já. O Irati foi um dos entusiasmados anfitriões.

Fui buscá-lo lá abaixo e subimos aqueles dois andares ao seu ritmo. Não sei como explicar o júbilo de o receber em casa, de partilhar com ele aquele momento incrivelmente único, de me atardar na conversa com o Mestre. Servimo-nos do gin e água tónica. Fui, a meio da conversa, à estante apanhar o exemplar do álbum Malangatana, edição da Ndjira, para ele o autografar.

O Mestre pegou no livro e, com o Irati no colo e, diante do meu deslumbrado espanto, em vez de mo assinar, começou a desenhar na página direita do livro. Depois, acto contínuo, escreveu um poema (“Contradição”), que encimara com um “Para ti Nelson”. Entre os versos, outros desenhos na página esquerda do livro. Escusado será dizer que ele andava sempre com os seus materiais. Fiquei chocado. Eu esperava uma dedicatória e ganhei uma obra de arte. Inédita. Uma grande láurea. Isso é impagável. O Mestre praticava, amiúde, essa generosidade com os amigos.

A primeira vez que fui visitá-lo à casa do aeroporto era noite, passava das 10 da noite e tínhamos saído de um jantar e lá fomos, como se estivéssemos em procissão, à casa do Mestre. Visitar aquele mundo mágico, num momento em que o bairro adormecera, num silêncio que ampliava a sensação daqueles duendes, daquelas figuras, daqueles demónios, daqueles sathanas, daqueles xipócuès, não me parece que seja possível dizê-lo em palavras. É uma magia indescritível, mesmo para quem passa a vida a discretear palavras. O mundo prodigioso do grande pintor moçambicano, do grande pintor africano, do grande pintor universal. Outras tantas vezes fui com ele ou fui vê-lo a Matalana. Outro lugar mágico.

Estive com ele inúmeras vezes. Recordo-me da vez em que viajámos juntos para os Estados Unidos e da voz do Mestre, em Rhode Island, numa cerimónia da Brown University, que comoveu a reitora, uma afro-americana, que desabou em lágrimas, e a todos os que lá estavam. Recordo-me dele em Lisboa em diversas ocasiões. Recordo-me dele em exposições e vernissages, aqui em Maputo. Recordo-me, sobretudo, quando um grupo de dez amigos, à volta dele, fundou a Kulungwana, no seu 70º aniversário. A galeria está na estação dos Caminhos de Ferro e a Henny Matos, que a dirige, tem feito um trabalho extraordinário. Com ela partilho, muitas vezes, as histórias do gin tónico, o pretexto que Malangatana arranjava, ao fim do dia, para visitar os amigos. Todos os dias espreito a sala da galeria quando me dirijo para o meu posto de trabalho no fundo da estação. O nome foi ele quem o sugeriu e o desenho que o identifica é dele.

Malangatana, nascido a 6 de Junho de 1936, em Matalana, Marracuene, morreu em Matosinhos, a 5 de Janeiro de 2011, aos 74 anos, faz esta semana 7 anos. Em 2005, o José Luís Cabaço marcou um café no Piri-Piri comigo. Estivera em Lisboa e soubera que havia uma iniciativa dos portugueses para celebrar os 70 anos do Mestre no ano seguinte. Sugeriu-me que eu juntasse CEO e administradores de empresas moçambicanas e constituíssemos um fundo e avançássemos com uma iniciativa em Moçambique. Ele estava em São Paulo e não teria como participar activamente. Queria que eu fosse uma espécie de director executivo da iniciativa. Nomeou-me ali mesmo, como quem diz: se não o fizeres, ninguém mais o fará. E será uma vergonha os portugueses celebrarem Malangatana e nós não! Eu assumi a incumbência e avançámos com a iniciativa, que agregou não só empresários, mas actores da vida cultural e intelectual moçambicana.

Rui Fonseca, dos CFM, anuiu que a empresa hospedasse a organização e os encontros. Magid Osman, Arnaldo Lopes Pereira, Rui Fernandes, Joaquim de Carvalho, Lourenço do Rosário, entre outros, foram os mais entusiasmados e participaram activamente no estabelecimento da homenagem. Pensámos, para além de uma exposição, realizada na Mediateca do BCI, num conjunto de iniciativas. Para que a gestão de fundos fosse credível, elegemos a FDC e pedimos que ela acolhesse e gerisse o fundo e teríamos uma empresa de auditoria que iria auditar as contas. Partimos para acção. Muitos meses depois da homenagem, o Narciso Matos, que era director executivo da FDC, ligou-me a dizer que tínhamos ainda dinheiro que sobrara das comemorações. Articulei com o Lourenço do Rosário e falei com o Mestre. Ele sugeriu aquele valor fosse para jovens artistas. Atribuímos a dois deles para um estágio no estrangeiro. Tocou-me este exemplo. Esta generosidade.

O Mestre deveria merecer do Estado a mais alta condecoração a um civil. Lourenço do Rosário, que presidia à comissão na companhia de Lindo Lhongo – que desapareceu do reino dos vivos em 2017 -, amigo de sempre do Mestre, e eu próprio, fomos falar com o Presidente. No dia 6 de Junho de 2006, Matalana estava em júbilo com a festa de um dos seus filhos ilustres, senão mesmo o seu mais ilustre filho. A festa que os familiares e amigos tinham preparado transfigurou-se com o furacão da delegação e da visita presidencial. O Mestre recebeu a medalha que queríamos que ele tivesse. 

Mas queríamos e deveríamos fazer outras coisas como sociedade civil. Outras competiriam ao Estado fazer.  Iríamos constituir um fundo que permitisse que o Mestre e a família não precisassem de vender ou malbaratar a obra para sobreviver, íamos dinamizar a construção de uma galeria ou um museu Malangatana, queríamos que o Estado adquirisse a obra para fundeá-lo. Para tal, seria necessário que o Estado declarasse a sua obra de utilidade pública. Também queríamos que o governo lhe concedesse uma pensão. O Magid Osman fez um jantar em sua casa, com a presença do Primeiro-ministro. Objetivo: conseguir do governo um compromisso com aquela iniciativa e os seus objectivos. Nós iríamos mobilizar os recursos, no país e no estrangeiro. Tínhamos amigos lá fora que iriam aderir, estavam disponíveis. O ministro da cultura não compareceu ao jantar, fez-se representar pela directora do museu de arte.

Encontrei no dia seguinte o Ministro da Cultura e falei-lhe dessa intenção, do jantar a que ele gazetara, e da esperança que tínhamos de que ele levasse ao Conselho de Ministros aquela iniciativa, como tinha sugerido o Primeiro-ministro. A resposta do Ministro revela tudo o que somos e que não somos e, sobretudo, o quão somos ingratos em relação aos nossos génios: a iniciativa era bem-vinda, mas deveria ser para todos os artistas. Disse-mo. Malangatana não merecia um estatuto de excepção – palavras minhas.  Como assim? – não quis acreditar. O princípio de que o Estado deve criar um ambiente de defesa e promoção de todos os artistas de igual modo, é um princípio correcto. Mas não se perceber que um génio merece uma excepção e um tratamento excepcional parece-me uma perfeita inadimplência.  Escusado será dizer que a ideia morreu ali. Todos os artistas têm o génio do Malangatana? – perguntei-me. O ministro à época, que é poeta, pelos vistos acreditava que sim. Mais: como se verificaria, não fez nada nem por Malangatana nem por nenhum outro de todos os outros artistas.

Moçambique tem um escol extraordinário de artistas plásticos: Bertina Lopes, Mankew, Chissano, Shikhani, Noel Langa, Samate, Chichorro, Reinata, Victor Sousa, Ídasse, Naguib, Bata, Tomo, Gemuce,  Sitoe, Ndlozy, Simões, Pekiwa, Pinto Zulu, entre outros. Poderia citá-los continuadamente. Muitos deles de grande e indubitável talento. Cada um deles representando um universo criativo singular. Mas Malangatana pertence a outra galáxia. Malangatana habitava e habita outro universo. Tinha e tem outra dimensão. Malangatana foi, provavelmente, o maior artista plástico do século XX africano. É certo de que esta afirmação ufana, flagrantemente ufana, é peremptória – eu sei. E assumo. Nós, na nossa pequenez, por vezes, não temos noção daquilo que é grande em nós. Malangatana é um artista, provavelmente o único entre nós, com a projecção, a importância, a relevância e a percussão universal, que obteve em vida e que mantém.

Malangatana: “Os meus temas principais são: ódio, feitiço, crime, angústia, paixão pela vida e amor. Estes temas não estão só na pintura mas também na poesia. Tudo isto sinto no coração e quando faço qualquer trabalho sem sentir, nunca sou eu o autor desse trabalho, o que me leva então a estar a fazer outra coisa quando o sentimento me falta (…)”

O universo pictórico dele é brutal, fantasmagórico, assombroso, medonho, dilacerante. As suas esculturas e os seus murais são uma presença singular na paisagem. Trazem a mesma carga metafórica dos seus desenhos e pinturas. As canções que canta são profundas. O seu corpo caudaloso transporta o universo do seu povo. Matalana é o seu mundo e com ele rasga fronteiras. A sensibilidade, a composição, a explosão das cores, a sua exuberância. O bestiário de Malangatana é único, os seus duendes, os seus espíritos, as suas vozes, o seu imaginário inesgotável e fascinante. Os seus monstros. Ninguém sai incólume desse universo. Ninguém sai o mesmo depois de mergulhar naquele mundo encantado de Malangatana. Malangatana é um fabuloso contador de histórias. É um encantador encantado. Um ser humano impressionante. Um gigante. Um homem soberbo. A sua arte revela isso mesmo. O seu génio incrível. Incomparável.

Não conheço outro caso, no que se refere a Moçambique, de um talento tão brutal e ingente como o de Malangatana, convergindo para uma panóplia de expressões e encantamentos. Pintor, escultor, poeta, cantor, dançarino. Antes foi tudo: pastor de gado, aprendiz de nyamussoro, criado, apanhador de bolas. Desde os anos 60, a sua arte irrompe para além do seu universo particular. Com José Craveirinha, Rui Nogar e Luís Bernardo Honwana é preso político. No pós-independência cumprirá o opróbrio da expiação revolucionária, em Nampula, com o Rui Nogar. É preciso não deslembrar os excessos que se cometeram. A amnésia por vezes assalta-nos, principalmente nos dias de hoje em que vivemos nos antípodas daquele tempo de todas as exabundâncias.

Nunca o vi ressabiado, nunca o vi amargurado, nunca o vi alvitrando em desfavor de ninguém. Lembro a sua imensa generosidade. Lembro a sua bondade. Lembro a sua alegria de viver e, sobretudo, a sua disponibilidade. Lembro-o inquieto com tantos projectos. Os sonhos gigantescos que tinha. Como a sua casa de Matalana, que lembra o sonho de Antoní Gaudí – a Sagrada Família, em Barcelona. Obra impossível de ser concluída pelo autor. Obra para o futuro de todas as incumbências. Falava-me, sempre que me encontrava, do que estava a fazer. Partilhava o seu mundo. Era um ser único. Na sua companhia sentíamo-nos iguais a ele e, só depois, apartados daquela presença exuberante e colossal, poderíamos realizar que estivéramos perante um verdadeiro gigante. Precisávamos de distância para perceber isso.

Creio que o que perdura daquele ano de 2006, no qual celebrámos, jubilosamente o Mestre em vida, é a associação Kulungwana, que ele tanto acarinhou. Ali, muitas vezes, na estação, à porta da galeria, revendo aquelas imagens do tempo, dos últimos dez anos, reencontro aquela figura possante, aquele homem extraordinário, aquele artista generoso, com a saudade de um grande amigo, provavelmente esquecido e sem merecer o cuidado e o carinho que deveriam merecer os nossos maiores – os intérpretes da moçambicanidade. A Pátria tem disto. Já não me queixo. Assinalo apenas. A Pátria pratica a disjuntiva quando se trata dos seus melhores, é displicente, quando não disfarça o incómodo, pratica o dissenso em relação a eles. A Pátria apela à mediania. Revê-se nela. Com um júbilo escancarado. Gosta de disjungir quando se trata dos seus génios. Como se o facto de os possuir fosse uma dádiva de que dispuséssemos sempre.

Os portugueses, entre outras coisas, baptizaram um avião com o nome de Malangatana. Quando vejo a aeronave que rasga os céus com o nome do nosso mais importante pintor, assalta-me um misto de alegria e tristeza. Alegria por o ver reconhecido, tristeza por sê-lo longe da Pátria. Mas não me resigno perante os dislates. É preciso cauterizá-los. Sem proselitismos, nem maniqueísmos. Acho que, sete anos depois da sua morte, lembrá-lo aqui é importante. Lembro-o não só como o amigo com quem tive o privilégio de conviver, de falar e de ouvir, de admirar a sua soberba arte, mas sobretudo como o maior pintor moçambicano – quiçá o maior pintor africano – do século XX.

Aquele dia 22 de Março de 2003 em que ele desenhou duas amplas páginas do meu álbum Malangatana, com o meu filho vigilante e maravilhado, no seu colo, sorvendo, ele e eu, vagarosamente, aquele inesquecível gin tónico, terminou tardíssimo. Já passava das 22 horas quando fui escoltá-lo até à sua casa. Já era tarde demais para deixar o Mestre Malangatana Valente Ngwenya, depois de um belo gin tónico, andar, sozinho pela estrada fora, ainda que no seu belo e velho Mercedes Benz.

 

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