Desarmou da axila, o jornal. Inspirou o cheiro do papel recém impresso. Desabrochou as folhas e as páginas floriram. As notícias cheiravam a fresco. Deliciou-as.
– Sô Sansão, está a ler agora que o jogo vai começar?
Jogava Portugal. Passou a mão pela pera grisalha e fez aquele semblante de crítico de bar. Estalou os dedos para o servente, sem olhar. O servente, lento mas solícito, trouxe o copo a espumar. Os craques entraram em campo perfilados, como formigas adestradas. Sansão lembrou-se do tempo das bichas. não gostou:
– Aquilo é oprimir os jogadores. Deviam estar livres. Parece no tempo da repressão, em que tínhamos que nos sujeitar às bichas. Este futebol não é nada democrático.
Aproximou a boca e beijou o copo cheio, equilibrando a espuma. Sorveu com o lábio inferior o resto de espuma filtrado pelo bigode esparso. Os craques preparavam-se para o hino. Ajeitou o corpo magro na cadeira. Segurou o copo de cerveja com estilo de quem hasteia uma taça de vinho das castas mais cobiçadas, e acompanhou o “Heróis do mar” com ar nostálgico, antes de começar a referir-se à Eduardo Mondlane, a avenida, como Pinheiro Chagas, a chamar a Josina Machel, a Escola Secundária, de Liceu Salazar, e outras lembranças do tempo em que éramos portugueses.
O apito do árbitro salivou quando soprou com a força de toda a autoridade proclamando, determinando, consagrando, aclamando, decretando o início da partida.
– O futebol não é nada democrático.
O árbitro corria, de apito na boca, policiando se os jogadores não magoavam a bola, os fiscais de linha impunham as suas bandeirolas e o quarto árbitro parecia um agente secreto.
– Estes árbitros, parecem polícias do tempo repressão. Se os jogadores conhecessem a força da democracia, marchavam pelo campo…
Os jogadores atiravam as pernas com ginga de minhocas ansiosas. A bola bailava como as mulheres do bar entre homens, fingindo gostar de ser chutada. Sansão resmungava, crítico. De repente, um dos craques desenrolou o novelo das pernas numa finta inimitável. Soltou-se do emaranhado de jogadores. A bola foi com ele. Ultrapassou o vento e todos e, quando sentiu que a bola corria mais do que ele, que já não a alcançava, entornou-se para o chão e dramatizou todas as dores do mundo.
– É falta, kenharam!
– Não foi nada. Está a fingir.
O árbitro hesitou, disse “calma” com gestos e foi consultar o vídeo-árbitro.
– Mahupeiro! – gritou o Sansão.
As pessoas viraram-se para o Sansão com o sobrolho franzido e um ponto de interrogação pendurado no centro geométrico da testa. Foi como se naquele repente alguém baixasse o volume dos ruídos do bar e, como um controlo remoto, fizesse rodar a pesada maquinaria dos pescoços embriagados, descolando os olhares do écran e pousando-os onde parecia ter saído a voz.
Zé, um magwerre, virou-se para o Sansão:
– O que é um Mahupeiro?
– É um gajo sem vergonha, parasita – Sansão fez fussa de desdém–, que não recua para defender e fica a espera que lhe passem as bolas.
O barman suspendeu o gesto sobre a torneira e deixou os braços suspensos, com meio copo de espuma encostado à torneira.
– Mahupeiro por quê, se ele defende e ataca?
– Nao estou a falar disso – apontou para o futebol – estou a falar disto – apontou para o jornal. Os olhos voltaram-se, fez-se um comício à volta do jornal – digam lá se não é mahupe isto. Era notícia sobre os debandados de um partido para outro.
– Andaram o tempo todo num partido, participaram na má gestão do partido, e agora, véspera das eleições, em vez de recuarem para defender, ficam a espera do primeiro partido que lhes passa a bola… não é mahupe político, isto? Não são mahupeiros políticos, estes?
Depois do vídeo-árbitro, o árbitro apontou para penálti. Todo o mundo virou-se para a TV, esfregando ansiedade nas mãos. Quando o craque posicionou-se, em estilo, para marcar, uma frase cortou o silêncio:
– E se na política houvesse vídeo-árbitro?
Sansão estalou os dedos e chamou mais um copo.