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“Luíza da Cruz”: uma janela para o Zambeze

A vadiação é coisa santa, foi inventada por Deus no paraíso
Jorge Amado

Quem acredita que a compreensão do presente depende do passado, tem mais uma razão para ler Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz, novo livro de Adelino Timóteo. Não que esta obra seja feita de fundamentos, nem pensar, mas por encerrar um contexto deveras ignorado, no qual ainda vivem personagens de estórias sobre os prazos do Zambeze e as belas mulheres de uma época a imortalizar.

É verdade que um Borges Coelho, Ungulani e Paradona já foram passear a Tete, tendo retirado das profundezas do grande rio mil eventos de amor, ódio, apropriação cultural, terror e mistério. Mesmo assim, o Zambeze, sendo água, é terra por desbravar. Razões? Várias, não fosse aquele território electrizante ser o encontro e a separação das sociedades patrilineares e matrilineares.

É naquele território que, seguindo a pena de Timóteo, encontramos uma figura incrível, a qual a vida deu a escassa ventura de possuir maridos que conviviam em harmonia mais do que alguns casais monogâmicos de Goengue. Trata-se de dona Luíza Michaela da Cruz, aparentemente ninfomaníaca por não conseguir resistir a um falo cujo tamanho estivesse bem desenhado. Logo, a história desta senhora dos prazos, e deste livro consequentemente, é feita de amores, oficiais e clandestinos, pois no processo da personagem buscar a felicidade o êxito dependia desse carácter possessivo estender-se aos homens a quem se juntava por atracção ou por conveniência. Nada feio, afinal, acreditando no Vadinho, de Amado, “a vadiação é coisa santa, por ter sido inventada por Deus no paraíso”.

A fim de nos contar esta história recuperada do séc. XIX, Adelino Timóteo reconstrói com eficiência peripécias de um cenário constituído de rivalidades entre pretos (entre si) e brancos, na luta pelo poder. E porque “nenhuma fortuna possui o pano limpo” (p. 32), o livro abre alas à honra, que, quando necessário, é lavada com sangue. Por essa razão, a história de Luíza começa logo com lágrimas, causadas pelo irmão Bonga ao assassinar Inominado, seu filho, fruto da relação extraconjugal entre a protagonista e um escravo preto, Fazbem, traindo assim Belchior, um português.

Esta também é uma narrativa de disputas territoriais, bem à imagem dos eventos anteriores à colonização, contada por Livingstone, um missionário inglês cuja tarefa passa por evangelizar os pretos nas terras do Zambeze. Por via daquela personagem histórica, as vitórias e os dramas de Luíza da Cruz são contadas por um narrador homodiegético, essa entidade que nos conta a história na primeira pessoa sem que seja protagonista. Talvez, essa, não tenha sido a melhor opção. Um narrador heterodiegético, portanto, que não fizesse parte do enredo como personagem, seria mais interessante. Quando Livingstone é o centro dos eventos, configurando focalizações omniscientes, há um encanto que se perde em termos técnicos-literários, ainda que isso não comprometa o universo da história. Outra coisa, há demasiada coincidência entre o discurso do narrador – configurado por um missionário iluminado como é o inglês – e os diálogos das personagens, inclusive pretos. Uma clara diferenciação de estilos calhava bem nos relatos.

Os oito maridos de dona Luíza é uma história dos espaços e do que neles se gerou, com o tempo, quase na mesma proporção que Lueji: o nascimento de um império, romance de Pepetela, no qual também se encontra personagem feminina com poder de mandar e escolher o homem que lhe desse vontade de levar ao leito, como dona Luíza, confrontando a tudo e a todos.

Com este romance, constituído por narrativas paralelas, Timóteo vai contribuindo para a multiplicidade literária voltada a uma riqueza cultural que deve ser recontada, demonstrando uma paixão por mulheres poderosas. No livro anterior, foi Cleópatra, resgatada do Egipto. Eis que agora chegou o momento de Luíza da Cruz, do Zambeze, pretexto para veicular mensagens: “o pior na morte não são as lágrimas, mas a hipocrisia que elas contêm” (p. 145).
 
Título: Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz
Autor: Adelino Timóteo
Editora: Alcance
Classificação: 14.5

 

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