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Literatura Moçambicana: Trajectórias de Leitura

Por Sandra Sousa

University of Central Florida, USA

 

 

Literatura Moçambicana: Trajectórias de Leitura, o novo livro de Almiro Lobo em conjunto com Teresa Manjate, publicado pela editora Alcance, reúne, como os próprios coordenadores indicam na “Nota Explicativa,” textos de diversa índole (prefácios, textos de apresentação em cerimónias de lançamento, comunicações em conferências, congressos, reflexões, etc.) sobre Literatura Moçambicana, seja ela considerada sob pontos de vista teóricos e mais abrangentes, seja centrando-se em autores e obras moçambicanos específicos. Estes textos de incursão pela narrativa, pela poesia (veja-se, por exemplo, os textos sobre Guita Jr, Luís Carlos Patraquim, Lica Sebastião, Craveirinha) e dramaturgia (veja-se o texto sobre Lindo Lhongo) literária moçambicana têm a virtude de serem escritos com uma perspectiva “de dentro,” ou seja, foram produzidos pela mão de professores de Literatura da Secção de Literatura e Cultura da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane. Virtude ainda porque na reunião destes textos se dá mais um passo no enriquecimento da crítica literária moçambicana em Moçambique. Explico-me melhor: para o olhar “de fora” este é um momento de extrema alegria, pois vê-se reconhecido um conjunto de professores que não descuram o seu papel de críticos literários e da importância que o seu contínuo trabalho tem para que um sistema literário nacional se consolide, sistematize e visibilize, tanto dentro como fora das suas fronteiras físicas.

A profusão de temas discutidos e analisados nas páginas destas “trajectórias” daria certamente pano para que mais um livro fosse escrito, tal é a riqueza do conteúdo que aqui encontramos. Restringir-me-ei a mencionar de leve alguns, na expectativa de aguçar o apetite para a sua leitura na totalidade que, posso desde já atestar, contribui para um aumento do conhecimento da ficção e intelectualidade moçambicanas, essencial e cada vez mais necessário para as mentes do século XXI demasiado dispersas em actividades superficiais.

Um desses temas aqui discutidos é o do cânone literário moçambicano ou do cânone literário em Moçambique, discussão com que a presente colectânea abre as suas páginas, decerto não sem um propósito intencional por parte dos coordenadores, através da inclusão de uma apresentação de Lucílio Manjate de três livros que sobre tal assunto se debruçam. Assunto controverso que passa pelo debate sobre a nacionalidade literária e se revela um “espaço de ambiguidades teóricas e práticas provavelmente insolúveis” (8) e no qual a crítica (e obviamente outros factores), que em Moçambique se tem revelado, de acordo com Lucílio Manjate e outros, perversamente silenciosa, tem um papel de peso. Daí a relevância e virtude de Literatura Moçambicana: Trajectórias de Leitura cujo objectivo é também um apelo revelado nas palavras de Teresa Manjate num outro texto incluído na colectânea, ou seja, “a necessidade de restaurar o papel da crítica literária que se pretende mais robusta, com espaços igualmente fortes que possam enobrecer o trabalho de muitos actores [escritores] que podem, em virtude deste marasmo, cair no esquecimento, sob pena de outras gerações, as futuras, obviamente, questionarem não sem razão esta apatia e, sentença de morte a objectos (obras) e sujeitos (autores) nossos contemporâneos” (89). Literatura Moçambicana: Trajectórias de Leitura tem, a meu ver, esse papel de extrema significância: contribuir para a consolidação do cânone literário moçambicano através da abertura desse espaço à crítica, quebrando o silêncio e abrindo voz a outras trajectórias. Seria de lamentar que a crítica literária moçambicana não aproveitasse esta ocasião para se expandir e revelar em toda a sua exuberância e qualidade como nos revelam os textos de mérito intelectual aqui reunidos.

A discussão em torno do cânone, e da crítica, leva-nos a outro tema de peso presente em diversos dos textos destas trajectórias de escrita e leitura, o da memória, ponto fulcral das obras de muitos, senão todos, os escritores moçambicanos de grande envergadura, tais como José Craveirinha, Paulina Chiziane, Mia Couto, Ungulani ba ka Khosa, João Paulo Borges Coelho, Aldino Muianga, para mencionar apenas alguns. De facto, a literatura moçambicana passa recorrentemente por essa “recomposição da memória do nosso passado” (43), citando as palavras de Almiro Lobo num dos textos incluídos na colectânea. Esse passado é recriado pelos escritores em obras ficcionais numa relação sedutora com a História do país que se invoca, relata, transforma e transfigura  através do acto criador da palavra, de forma a fazerem e transmitirem sentido sobre as diversas e, por vezes, contraditórias narrativas sobre a nação. É um processo indispensável para a identidade cultural de um país saído de trágicas guerras, para não mencionar, a situação de dependência colonial, em caminho da união, crescimento e entendimento de si mesmo. A recuperação e manutenção das memórias individual e colectiva surge aqui ainda discutida como oportunidade para dar liberdade a outras formas, marginalizadas estas, de se olhar para o passado, viabilizando, deste modo, um espaço de igualdade e formação de novas utopias.

Utopia, tema que igual e insistentemente perpassa as páginas deste livro é, de forma unânime, encarada como estando morta, tendo ficado enterrada nesse passado que se desamarrou das garras coloniais e apenas na memória de alguns que lhe sobreviveram e que por ela anseiam; assim como morta, ou adormecida, parecia estar, a certo momento, a literatura moçambicana. Mas, como sabemos, o povo moçambicano é um povo caracterizado pela resiliência e Literatura Moçambicana: Trajectórias de Leitura é prova disso mesmo: um livro sobre livros. Mais do que qualquer outra coisa, este é um livro de resistência. Resistência de um conjunto de críticos que não entregam as suas armas (canetas, teclados de computador, folhas de papel) em prol do futuro de uma nação que se vai costurando com “velhos” e “novos” escritores, em que uns e outros acreditam que sem literatura um povo jamais se pode imaginar e, portanto, recriar e seguir rumando a um futuro mais justo.

Os textos incluídos na colectânea demonstram tanto uma sensiblidade na escrita e na análise como uma acessibilidade de leitura a um público mais vasto.Trajectórias de Leitura é, deste modo, um livro de leitura indispensável, que terá certamente de fazer parte não apenas de estantes pessoais como integrar o currículo das humanidades nas universidades moçambicanas.

 

Literatura Moçambicana: Trajectórias de Leitura. Org. Almiro Lobo e Teresa Manjate. Maputo: Alcance Editores, 2022, 195 pp.

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