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Leitor

“Mais importante que saber escrever é saber ler. Não persiga os sonhos! Constrói-os”. Leitor, pensei nisto agora, parece-te bem? As frases feitas estão cheias de más intenções ou de traduções mal-intencionadas, sabes que é mais fácil reter os “chavões” e nunca se permitir a uma experiência com o livro. Não é fácil ler, obriga-nos a explorar outros planetas mentais ou físicos e não estou certo de que o nosso veículo esteja disposto a levar-nos para lá, leia sobre tudo e sobre todos, porque o importante é nunca ter opinião sobre coisa algumas, são os limites da função, o ponto de descontinuidade.

O mundo é uma representação, os livros não fazem mais do que dar uma opinião sobre o mundo e não se preocupe leitor, não é vinculativo. Pegas aqui, pegas acolá e fazes um vestido, arte da costureira. Os filhos da Eva têm a particularidade de puder acrescentar ao mundo, chamam eles isso de imaginação, a liberdade de dizer que o mundo não chega, é insuficiente, insuficiente na medida que não entende muito bem cada angústia representada na luz acesa no edifício ao lado. Que estará fazendo acordado a essa hora? O vizinho, claro.

A serpente merecia um julgamento mais digno, pobre coitada, não pude defender-se. Resignou, deve ser por astucia, a insustentável condição da leveza do ser. Não nos acusa à espera que reconhecêssemos a nossa falta, a arbitrariedade daquele julgamento. Não entende nada da natureza humana, pobre serpente, a acusação é sempre de um único sentido, é de nós para eles, desculpa, não há cá dupla transmissão, os filhos da Eva acusam-se e acusam-se, falam e falam, mas eles escutam-se pouco, serpente. Eles trabalham muito, resta pouco tempo para essas coisas.

É para isso que lemos, para essas histórias de serpentes, deus, Eva e outras asneiras. Os movimentos caóticos são interessantes para a ciência; a teoria de incerteza de Heisenberg, match no tinder, trajectória do fumo do cigarrete, tudo que é caótico é interessante, guarda um mistério, é dissimulado, é uma dança delicada cujos movimentos dizem o inverso do estado da alma. Ler é aceitar o caos, ir até a boca do vulcão, aceitar as neuroses, olhar para o homem que cruzo as pernas e segura o jornal, e pensar, que personagem eu daria-lhe? O que ele tem para me contar? O que ele comeu ontem à noite? Me parece que o senhor é um corretor da bolsa, não, deve ser um corporativo, temos muitos deles hoje. Os rapazes lá sentado são os alunos estrangeiros que chegaram a universidade, eles sempre fazem aqueles jogos para facilitar a integração, é divertido, dão mais vida a este lugar e claro, mais opções no tinder.

Vi um artigo no jornal há dias atrás que dizia: esgotaram os recursos do planeta, que tragédia leitor! Agora vivemos de excedentes. Os nossos recursos esgotaram quando não conseguimos diferenciar a macro da má economia, o liberalismo nunca mais encontrou a riquezas das nações e o proteccionismo já não sabia o que era produto nacional, explodiu o racismo, a xenofobia e a culturofobia. A pouca leitura levou-me a ver estrangeiros em tudo na rua, o único estrangeiro era a falta de emprego, a falta de pão, a minha fome e do estrangeiro é a mesma, é a mesma.

A propósito não existe prémio para leitor? Não tenho muito apreço pelos prémios, nunca tive capacidade para ganhá-los, sou tímido, não consigo ver pessoas a olharem para mim. Fujo, escondo-me e escrevo estas asneiras porta adentro das sanitas, deixo as merdas que trazia no estômago e as que trazia na cabeça, tudo cheirando a mesma merda. Não se tente imortalizar, o rio leva tudo e o mar joga fora, quando morrer, morra. Eles também têm direito a suas asneiras, o nome da rua com o teu nome, a tua face na t-shirt não dizem nada, apenas angústia de algumas pessoas deprimidas que acham que viveste a vida que eles gostariam de ter vivido, tolice. Claro que depois da tua morte a tua vida parece um perfeito roteiro, talhado para a telona, não és mais que isso; um repositório de vidas que nunca existiram, dores reais e imaginarias. Não viveste para sempre, aquela rua não tem nada a ver contigo e os teus prémios não tinham nada a acrescentar, estátuas.

Quando fechaste o livro em que pensaste? No universo, na estupidez, na menina do café, no ruído provocado pelo frigorífico, em que pensaste? Esta doença que é disputar afectos, o vazio de uma vida muito cool, a insignificância de ser a presença mais agradável da sala. Achas que devia ter sido aquele o final? Não é uma questão de saber terminar leitor, o livro é que quis assim, não havia nada a fazer, a história seguiu o seu rumo assim como a sua vida, desculpa.

 

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