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Imprescindível doutrina contra: uma homenagem à literatura moçambicana

O poeta angolano, Lopito Feijóo, lançou, semana passada, Imprescindível doutrina contra, em Maputo. O livro inclui um texto inédito de José Craveirinha, à laia de um prefácio, e, de acordo com o autor, é uma homenagem à literatura moçambicana, feita com versos de intervenção social. Esta é a maneira que o poeta encontrou para manter intacto um estilo de escrita preocupada com o equilíbrio entre o ético e o estético.

Imprescindível doutrina contra é o título que acaba de lançar em Maputo. Como acontece esta obra?
Este é um livro com universos poéticos que me são muito caros e que, de alguma maneira, prestigia e homenageia a grande poesia moçambicana, por via da figura de José Craveirinha, que me fornece um texto inédito através dos seus herdeiros. Trata-se de um texto curtinho, que uso em forma de prefácio. Portanto, este é um livro com uma pérola laminar de Craveirinha, um desenho de capa de Luandino Vieira e um posfácio de um jovem professor de Literatura em Angola: Hélder Simbad. O livro ensina-nos que, em alguns momentos, devemos dizer NÃO, para contrariar aquela ideia de que está tudo bem, mesmo quando somos vítimas dos sistemas de poder, seja de que carácter for.

“Se os/ governantes fossem mais/ poetas e menos políticos,/ saberiam ser maiores no/ futuro sem se tornarem/ mais pequenos no presente./ Então falhariam menos”. São estes os versos de Craveirinha inseridos no seu livro. Que lhe ocorre dizer?
Isto, mais do que um texto poético, considero uma lâmina para o contexto actual das nossas sociedades: angolana, moçambicana e africana em geral. Este poema de Craveirinha cai no lugar certo, em razão do conteúdo do próprio livro. Por isso muita gente pensa que este é um livro político. Não. É um livro poético.

Os textos do livro surgem depois de ler o poema de Craveirinha, certo?
Sim. Entrei em contacto com o poema de Craveirinha num dia que fui fazer visita a Casa-Museu na Mafalala. A visita foi muito útil, e estava na companhia de uma pessoa muito querida: o Zeca. Encontrei o texto manuscrito num quadro com técnica mista, afixado numa parede. Marcou-me muito. Lembro-me que o li pela primeira vez há uns sete anos. Na altura, disse ao Zeca que um dia iria usar o poema para alguma coisa. A partir daí, fui escrevendo poemas que hoje são de intervenção social.  

A sua obra revela que é um autor apegado à sua terra… é um compromisso?
Sim, eu sou muito telúrico. Gosto muito de trabalhar a terra. Ainda há dias chamava atenção a alguns poetas moçambicanos sobre isso, porque sinto que eles ainda não beberam bem das fontes da poesia moçambicana, como Craveirinha, Noémia de Sousa e Glória de Sant’Ana. Quer dizer, há uma fonte tão rica em Moçambique, que não se percebe por que as novas gerações desprezam ou não dão a devida atenção.

Este é um livro que traduz sentimentos do autor ou os sentimentos aqui expressos traduzem o que absorve?
Na verdade, a questão aí é bicéfala. Transmito os meus sentimentos e, ao mesmo tempo, vou buscar outros, do mundo que me rodeia. Tudo que está no livro não parte do nada, a poesia também absorve fenómenos da realidade.

Imprescindível doutrina contra denuncia desigualdades e aberrações sociais nos países africanos, provocadas por dirigentes. Acha que a (sua) poesia pode alterar alguma coisa a este nível?
Sim. Se não acreditasse nisso não estaria a entregar-me de corpo e alma a esta prática. A minha poesia é muito sofrida, dolorosa, intensa e de muita maturação.

O subdesenvolvimento que o livro denuncia tem cabelos brancos. O que julga que deve ser feito para mudar o quadro?
Temos de continuar a fazer o nosso trabalho no sentido de amenizar os espíritos de irmãos desavindos. Isso é o que eu faço, chamando atenção aos problemas dos Congos, etc., mas poeticamente. Nossa tarefa é consciencializar, porque temos responsabilidades sociais, por isso não só temos de valorar aspectos estéticos, mas, acima de tudo, fazer o que os nossos mais velhos fizeram: dar importância às questões éticas. Ou seja, equilibrar aspectos éticos e estéticos na nossa produção literária.

Percebo que é defensor de uma poesia ligada “umbilicalmente” à realidade…
Ligada umbilicalmente à realidade e despertadora de consciências. Lembro-me de ter ouvido Agostinho Neto dizer que um poeta, mais do que um escritor, é autêntico despertador de consciências. Temos de tocar a alma das pessoas, porque sem alma não há sociedade no mundo. Há que termos mais espírito activo.

“Porque acima de tudo: A POESIA”. Estas palavras são suas. Como descreve esta manifestação literária?
Acima de tudo a poesia porque a poesia é uma causa. Acima de tudo a causa, e África é uma causa.

Outro título seu, bem fresquinho, é Pacatos & doutrinários recados, que dialoga muito com Imprescindível doutrina contra…
Na verdade, o meu editor, em Portugal, resolveu retirar de Imprescindível doutrina contra alguns recados que ele achou fundamentais e que mereciam ser passados à parte. Assim fizemos Pacatos & doutrinários recados, enquanto sumula do fundamental que há na Imprescindível doutrina contra. Não deixa de ser um livrinho Imprescindível. Mas, acima de tudo, é um livro de recados.

Quando se fala de Angola, artisticamente, muitas vezes a música aparece em primeiro lugar. Isto quer dizer que a literatura angolana está moribunda?
Jamais. A literatura angolana tem história e tradição. O primeiro livro de poesia publicado ao Sul de Sahara é de um angolano. José da Silva Ferreira, publicado em 1849. Há uma sequência no desenvolvimento da literatura em Angola, e não há grandes hiatos. Nos últimos 100 anos, por exemplo, temos classificações periódicas de 10 em 10 anos sobre a literatura. O que acontece é que a música é mais do imediato…

Como vislumbra o futuro da literatura angolana, mesmo pensando nos novos autores?
Vou ser honesto e não muito crítico. Já disse, noutras entrevistas, que, depois da geração de 80, aconteceu pouca coisa de relevância em Angola, salvo raras excepções. Hoje, quem dá as cartas na literatura angolana são autores da geração de 80, como também acontece em Moçambique. Aqueles são os mais representativos da literatura em Angola. Há uns dois nomes dos anos 90. Depois disso, há pouco a registar, por falta de domínio do instrumento de trabalho: a língua. Sem domínio da língua, é complicado trabalhar. Nós aprendemos na cultura económica do nosso país que “o nosso petróleo vai muito longe”. E, aparentemente, só o petróleo de Angola ia muito longe. O petróleo baixou de preço, estamos com dificuldades económicas, mas a nossa poesia pode ir até onde o nosso petróleo foi.

Qual é a possibilidade que mais lhe interessa: escrita como acto de coragem, sobrevivência ou liberdade?
Sobrevivência não. Liberdade e coragem, sim, porque, agora, já passei dos 50 anos, não estou na fase de escrever sobre o momento ou a paixão. Agora tenho de dizer as coisas porque, a cada ano que passa, comemoro menos um ano de vida. Então, tenho de dizer as coisas de forma clara, correcta e concisa. Sobrevivência não. A poesia está no íntimo, está no sangue. A liberdade e coragem de dizer as coisas que o nosso povo sofredor merece ouvir é que mais me importa.

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?  
Sugiro Sangue negro, de Noémia de Sousa; Cartas de Inhaminga, de Ungulani Ba Ka Khosa; e Sagrada esperança, de Agostinho Neto.

Perfil
Lopito Feijóo nasceu em Malanje, Angola, a 29 de Setembro de 1963. Estudou Direito na Universidade Agostinho Neto (UAN), em Luanda. Foi deputado da Assembleia Nacional da República de Angola. É membro correspondente da Academia Brasileira de Poesia “Casa Raul de Leoni”.
Tem livros traduzidos para francês, inglês e italiano. É autor de:
“Doutrina”; “Me ditando”; “Rosa Cor-de-Rosa”; “Cartas de Amor”; “Geração da Revolução”; “Ensaio e crítica literária: Meditando (Textos sobre Literatura)”; “Na Idade de Cristo”; “Reuni Versos Doutrinários”, entre outros.

 

 

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