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History in a frame (2021), o mais recente álbum de Jimmy Dludlu Uma homenagem às mulheres da África Austral

 

 

Por Nataniel Ngomane

 

Minha mãe:

Trago a resina das velhas árvores

da floresta nas minhas veias…

(José Craveirinha, “Mãe”, em Karingana ua Karingana)

 

Embora lançado no ano passado, não poderia haver melhor altura para rabiscar algo sobre History in a frame (2021), o mais recente álbum duplo de Jimmy Dludlu. Como sugere o título, trata-se de um conjunto de imagens sonoras que, reconstituindo uma longa e profunda História, a partir de diversos ângulos, apresenta-se sob a forma total de dezoito faixas musicais – nove em cada disco – inspiradas em grandes personalidades femininas. Essas faixas desfiam histórias sobre e dedicadas à mulher de um modo geral, mas não só, e à mulher moçambicana em especial. Daí a ideia de esta poder ser a melhor ocasião para aqui se reunirem alguns traços desse álbum e partilhá-los.

Talvez não fosse preciso lembrar que o mês de Março, que há pouco terminou, acolhe o Dia Internacional da Mulher. Mas já está lembrado. Abril, mês agora em curso, é especialmente marcado pelo Dia da Mulher Moçambicana. A culminar essa sequência, o folheto da capa do álbum mais recente de Jimmy apresenta vinte e uma dedicatórias a igual número de mulheres, sobre as quais se faz uma brevíssima abordagem, além da variedade temática que esse álbum oferece, incidindo de modo singular sobre a figura materna – no sentido mais amplo. Dessa óptica, de facto, não poderia haver melhor momento para dizer algo sobre esse álbum, que não fosse este.

 

As dedicatórias

A primeira dedicatória no folheto do álbum vai para a Rainha Abibi Achivandjela. Bibi Acivaangila I ou Aluusi Apitingombe, de nome próprio – de acordo com Manuel Vene (2018: 11) –, nasceu no actual território de Moçambique, na província do Niassa. De prisioneira de guerra, escrava e serva, chegou à grande figura histórica que reinou na região do hoje distrito de Majuuni, no Niassa. Isso, entre os finais do século XIX e princípios do XX. Já elevada a Rainha, Acivaangila I contribuiu para o engrandecimento do Estado de Mataaka em termos políticos, geográficos, económicos e demográficos, e resistiu grandemente à penetração colonial portuguesa na região sob seu reinado. Não por acaso, os seus feitos foram reconhecidos publicamente no X Festival Nacional de Cultura, em 2018, na cidade de Lichinga, festival a ela dedicado e em sua homenagem.

Janet Mondlane, Graça Machel e Lurdes Mutola são, entre outras, algumas das mulheres brilhantes para as quais este álbum é dedicado. Entre elas ainda se destacam Josina Machel, Noémia de Sousa, Bertina Lopes, entre outras. Winnie Mandela, Adelaide Tambo, Albertina Sisulu, Maria da Luz Guebuza e Isaura Nyusi não ficam de fora, sendo também contempladas. Nota particular, todavia, tal como no caso de Acivaangila I, vai para a dedicatória feita à escritora, ensaísta e música Paulina Chiziane, vencedora do Prémio Camões 2021, um dos mais prestigiados galardões atribuídos nas literaturas em língua portuguesa.

Com percurso literário sinuoso desde a publicação do seu primeiro romance, Balada de amor ao vento (1990), até à outorga daquela distinção – percurso, não poucas vezes, marcado por altibaixos em torno da qualidade da sua escrita, e não só, sobretudo no seu país –, ao ganhar esse prémio, Chiziane tornou-se na primeira mulher africana – e primeira negra – a ser laureada por tamanha distinção. Isso, num universo de trinta e três (33) premiações em que apenas sete (7) mulheres foram contempladas. Ela inclusa. Esse feito não contribuiu somente para colocar Chiziane ao lado dessas outras grandes mulheres batalhadoras da África Austral, mas também ao lado dos grandes nomes da literatura moçambicana e das literaturas em língua portuguesa. Em reconhecimento a esse trabalho, aos seus feitos, Jimmy faz essa dedicatória à Paulina Chiziane num álbum que, coincidentemente, veio a público no mesmo mês em que a autora moçambicana foi agraciada. É como se Jimmy tivesse previsto esse desfecho. Mas não, não previu: simplesmente, o seu olho artístico acompanhava atentamente as batalhas dessa outra grande mulher, Paulina Chiziane, tendo, por isso, decidido homenageá-la. A preparação e os acabamentos desse álbum recente de Jimmy, incluindo a inserção das dedicatórias, remontam, de facto, os anos 2019 e 2020.

A fechar o espaço das dedicatórias – e, diga-se, com chave de ouro -, o folheto apresenta-nos um poema de Malaika Dludlu, filha de Jimmy. Em muito poucas palavras, o poema traz-nos à memória o longo percurso histórico dos povos africanos, das origens à actualidade, passando pelas desumanas práticas da escravatura e violência colonial. Felizmente, superadas. Enquanto nos lembra de onde viemos, numa quase perspectiva materna, deixa no ar a ideia de que a nossa história deveria (ou deverá?) dar forma ao futuro, para o qual temos força para criá-lo. Afinal, a nossa história, o nosso futuro e a nossa esperança, afirma Malaika, estão dentro de nós! Habitam-nos. E é precisamente por aí que somos conduzidos no interior deste mais recente álbum de Jimmy Dludlu.

 

As temáticas

Essa breve incursão pelas dedicatórias à mulher, associadas à lavra feminina dos dezoito (18) versos do poema ora referenciado, explicam em parte porque a presença da mulher é retomada amiúde nas diversas faixas do álbum, directa ou indirectamente. É um álbum que não celebra apenas a mulher; mas, através dela, também os seus feitos, as suas realizações. Suas inspirações e aspirações. Assim se explica a evocação premente – logo na primeira faixa, “Tara Tara”, original da moçambicana Marllen Preta Negra – de se dever cuidar devidamente do homem e da mulher. Não apenas do homem, como se soe ouvir por aí. Aliás, o enfoque da letra de Marllen, mais completa, é apenas a mulher, sinal do quão tem sido ignorada, posta de lado. Já na composição de Jimmy, subjacente, está a ideia de que tanto o homem quanto a mulher têm o seu papel a desempenhar na sociedade. Na longa estrada da vida – transmite a faixa de Jimmy –, o homem e a mulher se complementam, assim se revalorizando alegremente o papel da mulher, socialmente.

Associado a essa perspectiva, está o segundo tema, “Matue Tue”, pinçado das profundezas das práticas socioculturais dos bairros suburbanos de Lourenço Marques, agora Maputo, entre as inúmeras brincadeiras de crianças, em particular meninas. Em roda, e cadenciadamente, elas batem as palmas, repetindo o refrão, tal como nessa segunda faixa. Enquanto isso, duas delas – também cadenciadamente – vão circulando no interior da roda, como se de adversárias se tratassem para, de seguida, ao som do refrão, estancarem e, frente a frente, balançarem freneticamente o corpo, com as mãos sobre os ombros, executando uma ligeira dança e olhando-se frontalmente. Sempre ao som do refrão. Por fim, dando-se a mão direita – ou a esquerda –, executam uma veloz dança circular, rodopiando rápida e em correria sobre si mesmas, ao ritmo compassado e cada vez mais forte do refrão e das palmas, com cada uma puxando pela outra para o seu lado, sem se largarem! Pesem embora os movimentos em sentidos opostos, a união forte das mãos, bem apertadas uma na outra – muitas vezes, até, presas nos antebraços –, não quebra a unidade das intervenientes. Tal é a imagem da união transmitida por essa brincadeira de meninas e recuperada nessa segunda faixa, apesar da adversidade dos movimentos secundados pelas execuções instrumentais, no álbum, com solos vários de guitarra, palmas e vozes, solos de piano, mas sem nenhuma quebra da harmonia.

Por se tratar de uma brincadeira de meninas, entre meninas, e apenas entre elas, fica no ar a ideia de essa brincadeira se tratar de uma herança de outras pessoas do sexo feminino, de outras mulheres: as mães. Metaforicamente, desde logo, aí também se capta, no essencial, a ideia da transmissão e recepção de valores de ordem sociocultural, e não só, de mães para filhas e destas – também um dia feitas mães – para os filhos, e assim sucessivamente, aspectos que se configuram na herança aí representada por uma simples brincadeira de há muitos anos. Tal é o caminho, de um outro ângulo, que aponta para a necessária relevância do resgate da ancestralidade como tópico merecedor de profunda reflexão, desafio que nos impõe o álbum de Jimmy. E, como se não bastasse, essa reflexão volta a ser tema na sexta faixa, “Mamana Wanga”, composição do saudoso Maestro Justino Chemane (1923-2004).

Sufocado pela ausência da mãe, o Maestro pergunta por ela, projectando, dessa forma, não somente a ideia da grande falta que faz o amor de mãe, como também a sua importância no amparo afectivo, aconchego dos filhos e filhas, sobretudo em momentos difíceis, para sossegar inquietações e saudades.

No álbum de Jimmy, o início dessa faixa é marcado por uma doce e suave melodia nostálgica, com arrastados acordes de piano. Representação apropriada para a saudade, essa breve introdução é depois subitamente quebrada pela força com que a saudade se abate sobre o indivíduo, aí já representada por uma regular e crescente irrupção rítmica da bateria e de precisos acordes da guitarra baixo – como se estes quisessem mostrar o quão grave é esse sentimento. E, por via da voz feminina de Edna Mondlane, aí se clama pela figura materna para sossegar as inquietações que assolam a alma… À vista disso, a composição e a letra do Maestro Chemane – e todas as outras vozes que imploram pela presença ausente da figura materna –, ecoam nos ouvidos e nas memórias dos mais velhos, assim se retomando a ideia da transmissão e recepção de valores socioculturais próprios, sobretudo quando ausentes ou sinalizam essa ausência:

 

Mamana wanga akwine (Onde está a minha mãe?)

A ta teka mbilu yanga (Para tomar o meu coração)

Mamana wanga akwine (Onde está a minha mãe?)

A ta teka mbilu yanga (Para tomar o meu coração)

 

A ta susa a mazengu (Para extrair as inquietações)

Lawa mangani mbilu yanga (Que afligem o meu coração)

A ta susa a mazengu (Para extrair as inquietações)

Lawa mangani mbilu yanga (Que afligem o meu coração)

 

Pode-se imaginar, a partir daí, o desespero e as trevas que invadem, se apossam e revolvem o íntimo das crianças abandonadas, que crescem sem mãe; das adolescentes que caem nas malhas da maternidade precoce e suas implicações, sem o amparo e a orientação das mães; e muito mais. Embora nessa faixa de Jimmy se apresentem apenas quatro versos, por questões, certamente, ligadas ao plano de produção, a letra original, do Maestro, apresenta mais dois versos que evocam os antepassados, esses de quem se descende, em clara alusão às origens e conhecimento dos mais velhos. A estes atribuem,  esses outros versos do Maestro, a afirmação segundo a qual o coração de uma pessoa é um mundo. Dessa outra perspectiva, somos reenviados ao conteúdo daqueles outros versos, de Malaika Dludlu, sobre “a nossa história, o nosso futuro e a nossa esperança [que] estão dentro de nós”. E ainda se poderia acrescentar: desde as origens!

 

A va khali va hlayile (Os mais velhos já disseram)

Mbilu ya mhunu i tiku (O coração de uma pessoa é um mundo)

 

E quem melhor que as mães – afinal, de onde viemos – para limpar do nosso coração, e não só, as malezas da nossa história, do nosso futuro e da nossa esperança?

E os cruzamentos temáticos

Como sugerido, esse álbum aborda outros temas além desse central, em torno da mulher. Ainda assim, esta permanece à volta, como se de sombra fresca e revigorante se tratasse – quer do ponto de vista metafórico quanto metonímico –, como o fazem na vida real as mães, atentas ao que se passa com e ao redor dos(as) filhos(as).

A humanidade, por exemplo, cujas origens são atribuídas ao continente africano, enquanto seu berço, é outro dos temas abordados nesse álbum. É sabido que, por cá, abundam crenças religiosas diversas, umbilicais; todavia, muitas delas estão sufocadas – e quase desaparecidas – por religiões outras e suas gentes, estranhas às realidades locais, mas dominantes. Donde a importância do resgate da africanidade aí sugerida, das suas raízes, ainda que cruzada com outras realidades culturais, como a busca e o resgate da insubstituível figura materna que nos traz ao mundo e, junto com outras, nos mostra os caminhos a seguir, com indisfarçável orgulho.

Exemplo dessa linha de pensamento é-nos parcialmente oferecida em “Lulama”, a oitava faixa. Na base de um cântico zione, essa faixa reivindica, de certa forma, crenças de base autóctone, pesem embora as suas origens americanas, que nos reenviam para o cristianismo. Donde a sua parcialidade. Abstraindo-se, contudo, dessas outras origens, percebe-se a ênfase profunda do olhar para trás – isto é, para dentro –, para as origens próprias, moçambicanas, que têm tido, em particular, um peso considerável na cura de inúmeras doenças com base na medicina tradicional local, um dos principais eixos das práticas ziones, além da crença cristã. As origens externas estão lá, sim. Sobretudo a cristandade. Mas o que reverbera é o brado pelo resgate da ancestralidade africana, suas raízes. Curiosamente, em tradução livre, “Lulama” significa “endireite-se”.

Na mesma linha de “Lulama”, encontramos, de certo modo, “Black & Proud”, a sétima faixa do primeiro disco. Inspirada, por um lado, na música de James Brown “Say It Loud ~ I’m Black & I’m Proud”, um dos cantores americanos mais influentes do século XX, e, por outro, no brutal assassinato de George Floyd e acontecimentos subsequentes em todo o mundo, essa outra faixa reivindica a valorização das origens e suas diferenças, sobretudo do humanismo assente na auto-confiança negra e capacidade de enfrentar o mundo: “I am black and proud”. Com todas as conotações e preconceitos que o preto carrega: sou preto e com orgulho. Apesar das adversidades. E aí se recupera a metáfora daquela brincadeira de infância, “Matue Tue”: a adversidade dos movimentos das meninas não quebra, de modo algum, a forte união das suas mãos. Tudo isso, quer em “Lulama” quanto em “Black & Proud”, sob o ritmo de uma mistura de sonoridades tradicionais moçambicanas, sul-africanas, solos afro-jazz e cânticos religiosos.

Mas mergulho profundo, mesmo, na tradição local, nesse álbum, ocorre – entre outras – em “Ngalanga Jazz”, a última faixa do primeiro disco. Aí é sugerido um olhar sobre a importância e necessidade da aquisição e absorção das práticas culturais locais. Com bases do blues soul, inspiradas de Aretha Franklin, a rainha do soul music, percebe-se nesse tema a forte presença do Ngalanga cruzado com a timbila, ambos das terras chopes de Inharrime, distrito da província de Inhambane, e com o jazz, supostamente herdado das Américas, mas cujas origens são de facto africanas, da Mãe África celebrada por poetas como José Craveirinha e Noémia de Sousa. Na mesma linha dessa fusão, está “Mr. Gove”, também numa mistura de Ngalanga e jazz – a sexta faixa do segundo disco –, numa merecida homenagem a Carlos Gove, uma das maiores referências dos baixistas moçambicanos que, não por acaso, tem como suporte de base a guitarra baixo.

O mesmo sucede com “Mediterranean Crossing”, a sétima faixa do mesmo disco, assente no M´ganda, ritmo de uma dança tradicional do Lago Niassa, na província com o mesmo nome, que critica as travessias fatais que acontecem no mar mediterrâneo, em busca de melhores condições de vida mas, resultando, não poucas vezes, em mortes. Essa música questiona se haverá alguma esperança de melhorar essas vidas. Alguma luz no fundo do túnel? A resposta é-nos dada, de certa maneira, por “In to the light”, a faixa seguinte, e a partir da qual se pode levantar a poeira – em “Levanta Poeira” –, conforme sugere a última faixa. Aí faz-se alusão à dança das crianças sobre a areia, levantando literalmente poeira e, simultaneamente, alegria. Tudo numa mistura de ritmos e estilos, desde o dominante afro-jazz, típico de Jimmy Dludlu, passando pelos ritmos tradicionais retrabalhados pela sua exímia guitarra, e não só, até aos tradicionais locais, como o Ngalanga e o M´ganda.

Nessas misturas não faltam travessias oceânicas, como a homenagem que se faz à Miriam Makheba, em “The Click Song”, uma das figuras com que Jimmy trabalhou e aprendeu bastante, ou Bob Marley, o rei do reggae, cuja composição, “Get up, Stand up”, abre o segundo disco do álbum para, precisamente, chamar atenção para a necessidade de nos erguermos e andarmos para a frente, com moral sã, coração limpo e verticalidade, por forma a darmos sentido à vida, à família, aos pais, à África. Sem medo, mas com verdade. Tal como nos ensinaram, nos ensinam e seguirão nos ensinando sempre as nossas mães, algumas das quais aqui homenageadas, neste mais recente álbum de Jimmy Dludlu. Como quem diz Africa, get up and stand up!

 

Notas bibliográfica:

 

Vene, Manuel. Liderança Feminina no Estado Mataaka: Mitos e Poderes da Rainha

           Acivaanjila de Majuuni (Séc. XIX-XX). Lichinga: 2018.

 

 

 

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