O País – A verdade como notícia

“Gostaria que a CPLP criasse uma consequência prática para circulação de livros”

Não se sente um escritor integrado na CPLP como gostaria. Para Valter Hugo Mãe, a CPLP é uma instituição que se faz ouvir, sobretudo, a 5 de Maio, em torno das celebrações do Dia da Língua Portuguesa. Por isso, como forma de a instituição cumprir a sua missão, avança o Prémio José Saramago 2007, seria muito interessante que a própria CPLP pudesse suportar edições de livros, criar uma consequência prática para circulação de livros e bens culturais, pois a mobilidade é o que resta para aproximação dos países falantes de português. Esta entrevista foi feita à margem da 3ª edição do Festival de Literatura Resiliência, realizada na cidade de Maputo.

 

Participou na 3ª edição do Festival de Literatura Resiliência. Por que se uniu a esta causa?

Tenho uma certa avidez para ler coisas que não conheço. Às vezes, até os clássicos de determinados países que não retumbam no nosso ou que não atravessam determinadas fronteiras. Costumo pensar que a literatura, e a arte em geral, é uma espécie de medicamento que uso para me curar ou para melhorar alguma coisa na minha vida. Por exemplo, nesta passagem por Maputo, levo comigo livros que são medicamentos que alguém inventou para me curar de algo que vinha padecendo. Além disso, tenho esta necessidade de viver experiências de como a mesma língua espalha-se pelo mundo fora e matura ritmos e sentidos destintos. É incrível podermos atravessar o oceano ou um continente inteiro e encontrarmos a mesma língua sendo trabalhada, estudada e pensada com nuances e variações. É como se visse em Moçambique um pouco da semente que também tem lá em casa. Há uma semente incrível que foi plantada no mundo inteiro e cujo fruto vai variando. Tenho para mim que a língua é uma forma profunda de identidade e que nós saberemos quem somos tanto mais saibamos que língua falamos. Vir a Moçambique, ao Resiliência, não é só conhecer os moçambicanos, mas é conhecer-me a mim também. Eu sou esta língua.

 

Neste trajecto rumo à cura, por via da literatura, consegue alcançar esse estado de imunidade?

Não tem satisfação porque a doença, neste caso boa, é contínua. Tem instantes de pura redenção, nos quais nos sentimos profundamente saudáveis, devido a um poema, a uma narrativa e, muitas vezes, devido a um ensaio que nos ilumina e ajuda-nos a compreendermo-nos. A academia é muito fundamental nisso.

 

O lema da 3ª dição do Resiliência foi Mobilidade e criação artística. Na sua percepção, como a mobilidade deve favorecer os autores e as literaturas de língua portuguesa?

O ponto fundamental para haver uma circulação é a vontade política. Tem de haver uma vontade política nos diversos Estados onde se fala ou pode-se entender a língua portuguesa. Tem de haver uma vontade de abater a fronteira tanto quanto possível. Nós não vamos conseguir aproximar os países fisicamente, a única forma que temos é aproximá-los através de iniciativas e autorizações que facilitem a circulação das pessoas e dos livros. Efectivamente, durante o Resiliência 3, a professora Ana Mafalda Leite disse, claramente, que os estudantes, os professores e os autores deviam circular nos países com vistos especiais, eventualmente, com acesso a viagens com preços especiais, e isso nem significa, necessariamente, que os governos tenham de patrocinar ou suportar todas as iniciativas. O que eles não podem, e acho que isso é obsceno, é que se coloquem como entraves dessa circulação. Então, é preciso haver um reconhecimento à importância da circulação dos bens culturais e das pessoas para o desenvolvimento dos povos e, assim, aprendermos alguma coisa. No fundo voltamos à importância dos professores e das escolas (que é uma das minhas batalhas, gostaria de ter sido professor. Foi um dos meus maiores projectos de infância que não aconteceu). Portanto, o que estou a querer dizer é que aquilo que nos educa é que, realmente, oferece-nos um futuro. A circulação dos livros tem de começar por uma exigência aos governos para que os livros entrem e saiam sem impostos, que as companhias e transportadoras possam ter maior acesso aos bens artísticos de tal forma que, por exemplo, os livros do Brasil possam chegar a Moçambique ao mesmo preço que lá custam. Muitas vezes o que encarece o preço dos livros é também o facto de não haver uma consciência de que o comércio deve ser livre com sentido de missão. As empresas que têm monopólio, como as grandes transportadoras ou os correios, por exemplo, têm de ter um sentido de missão que deve contribuir para todos nós. Não há mais nada bonito do que contribuir para o fortalecimento dos povos através da educação. Um dia, nós, todos os educados, com outro conhecimento, poderemos fazer dos nossos países melhores.

 

Sente-se um autor integrado na CPLP como gostaria?

Devo admitir que não. A CPLP é uma instituição que, normalmente, ouvimos falar em redor do dia 5 de Maio, quando se comemora o Dia da Língua Portuguesa, mas que não se materializa em muito coisa. Em torno da efeméride acontecem alguns eventos e, muitas vezes, parece-me que os esforços vêm sobretudo de Portugal, através dos Instituo Camões. Por isso, a CPLP é algo que se espera que o Instituto Camões tenha responsabilidade, digamos assim. Por exemplo, aqui o Resiliência foi francamente suportado pelo Camões, através de João Pignatelli. Exterior ao que o Camões tem feito, há pouca evidência prática do que se tem produzido com os autores. Seria muito interessante que a própria CPLP pudesse suportar edições. Gostaria de ver a CPLP a criar uma consequência prática para circulação de livros ou que tivesse uma colecção de clássicos. Seria fabuloso se pudesse fazer um levantamento de 10, 15 livros fundamentais de cada país e fossem editados em edições de preços reduzidos e colocados em toda CPLP. Isso seria uma evidência e valorização do que é a CPLP.

 

No Resiliência discutiu “O futuro da língua portuguesa”. O que antevê?

O presente é tão obsoleto e, em curto prazo, vira tão outra coisa que se conseguirmos uma solução para o presente será quase um milagre. Agora, falar de futuro parece que nos estamos a referir a infinidades de outros futuros. O presente é tão irresolúvel que fico pensando na ideia de que o que eu gostaria mesmo é ver as contaminações da língua portuguesa mais efectivas, mútuas. Gostava que a globalização, neste caso, significasse todos emitindo. O Brasil adicionou à língua vocábulos que são de toda sua profunda origem, e eu gostava que os vocábulos de Moçambique, Angola e outros países chegassem à língua portuguesa e fizessem sentido onde o português é falado. Isso, de alguma forma, seria também uma prova de integração.

 

É autor de A desumanização, um livro sobre a morte e sobre a condição de se estar vivo. Quis aqui retratar o drama da existência?

Sim. Esse livro é muito sobre o embate do indivíduo consigo mesmo. Uso uma narradora, uma menina de 11 anos (não é inocente que uso uma menina, que escolho a Islândia, para mim um espaço feminino, um espaço menstrual porque é vulcânico, de geração muito recente, por isso infantil geologicamente). O que acontece é que esta personagem que perde a sua irmã gémea vê-se confrontada com um vazio num lugar de gelo, digamos assim. Para mim, isso simboliza o encontro com a solidão profunda, em termos uma figura humana a olhar-se ao espelho. A Islândia significa esse espelho, um espaço cristalino. É uma auscultação à capacidade de nos tornarmos humanos onde não existe mais ninguém. A partir deste livro apareceu-me um outro livro, que chamo O paraíso são os outros, que vai cruzar Jean-Paul Sartre e que é uma manifestação daquilo que acredito ser o sentido da vida: o encontro com o outro, que justifica a minha existência. Neste romance, o pai da menina narradora diz-lhe, a certa altura: “a humanidade não começa em ti, começa no outro”.

 

O seu outro livro, o remorso de baltazar serapião, tem a particularidade de retratar um tema que diz muito a Portugal e a Moçambique: a violência doméstica contra a mulher. Onde quis chegar?

Espero que esse seja um bom livro, mas é horroroso, no sentido de que retrata uma realidade lamentável e repulsiva. Era muito bom trabalhar uma questão de um certo sexismo, de uma menorização das mulheres. Sei que na minha vida, nem sempre os autores justificam os seus livros com experiências íntimas e pessoais, esta ocupação vem do facto de eu ser o filho mais novo de uma família onde existem a minha mãe e as minhas duas irmãs mais velhas que funcionaram como a minha segunda e terceira mãe. Portanto, tenho três mães. A questão feminina foi-me sempre muito presente. Das minhas irmãs, sobretudo, fui assistindo ao desenvolvimento dos seus sonhos, aos seus primeiros namoros, aos seus casamentos, nascimentos dos seus filhos, mas também pude perceber como é que se erguem e abatem os sonhos das mulheres. E como sou homem, tive acesso aos círculos fechados dos homens e ouvir o que eles dizem das mulheres ou das moças das idades das minhas irmãs.

 

Homens imprudentemente poéticos?

Homens profundamente imprudentes. Sempre me chocou essa forma de a mulher ser colocada como que convidada no mundo, como se o mundo fosse uma propriedade do homem ou um padrão masculino. Muitas mulheres têm de se tornar ultra sedutoras para que os homens legitimem a sua presença. Para mim, isso é profundamente ascoroso e o meu livro é uma ostentação do asco, de quanto o homem pode ser horroroso.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro a obra de Gemuce e de Vergílio Ferreira.

 

Perfil

O escritor português Valter Hugo Mãe nasceu em Angola. É licenciado em Direito e fez uma pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Em 2007, foi distinguido Prémio Literário José Saramago, com o remorso de baltazar serapião.

 

 

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos