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“Geração Charrua”*

Foto: O País

Começo por agradecer a todos os presentes neste lançamento, pela simpatia que demonstram. Incluo neste modesto gesto, todos os meus companheiros das letras, particularmente, os que calcorrearam os caminhos um tanto inóspitos, mas nem por isso, a pouco-e-pouco, desbravados pelo Movimento Charrua através da revista do mesmo nome. Uma alfaia intelectual que ocasionou a germinação literária dos primeiros escritores e poetas da era pós-proclamação da Independência de Moçambique.

Passavam já cerca de 8 anos depois deste marco histórico importante, quando tudo começou. Foi a 23 de Junho de 1984, uma data que faz hoje 38 anos. Brotavam, então, os escritores e poetas que mais tarde se viram continuados por outros mais jovens ainda, que, actualmente habitam o nosso universo literário.

A odisseia foi, em parte, apoiada, ainda que em surdina, pela Embaixada de Portugal em Moçambique, através do então seu Conselheiro Cultural, Doutor Soares Martins, o célebre escritor José Capela, já falecido, que desembolsou os valores necessários à 1ª. Edição da Charrua, graças à lúcida e convincente intervenção do nosso companheiro Eduardo White, também já falecido.

Foi muito duro que nem podem imaginar, mas a nossa vontade vingou, agarrados à certeza de que o triunfo sempre reside na coesão do colectivo. Esta a razão fundamental de eu ter escolhido o Centro Cultural Português para o lançamento deste livro. Algumas figuras representativas da época ora evocada, estão nesta sala. Não vou poder citar os nomes de todos, mas o conteúdo do livro os contempla, pela importância da sua contribuição na construção da utopia transformacional dos paradigmas da nossa literatura. Há, porém, uma pessoa que gostaria de apresentá-la de um modo muito especial. Penso que não se opõe a este gesto de reconhecimento: a Professora Olga Horácio Pires, então esposa do nosso saudoso confrade Eduardo White, falecido a 24 de Agosto de 2014. Ela aceitou fazer, em lugar deste poeta, um depoimento constante neste livro. Obrigado Olga.

De entre os nomes que o livro contempla, há, porém, os que por razões óbvias não posso, neste momento, omitir, por terem sido os pilares da odisseia ou a Pedra Angular do grande sonho transformacional. São eles: Hélder Muteia, juvenal Bucuane, Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White, Pedro Chissano, Ídasse Tembe, e, à terceira edição, Tomás Vieira Mário. Estes constituíam o Conselho Coordenador.

Um papel fundamental teve Elias Cossa como maquetista da revista.

Ídasse Tembe, não sendo escritor, nem poeta no sentido rigoroso, aceitou ilustrar a revista, com a sua poesia plástica, expressa a tinta-da-china, ao longo das suas páginas, durante o tempo em que ela vigorou, tendo-se-lhe juntado, ao longo do percurso, outros artistas da sua área. Aliás, o desenho da capa deste livro é uma das suas ilustrações.

Consequentemente, outros escritores e não só, e não menos importantes, juntaram-se a este grupo, como Colaboradores Permanentes: Marcelo Panguana, Armando Artur, Afonso Santos, Júlio Navarro, Fernando Couto, Aníbal Aleluia, Filimone Meigos e Guilherme Afonso. Quero aqui assegurar que os que se empenharam na vida da Charrua, e não mencionados nesta intervenção, cada um, à medida da sua contribuição, estão referenciados nas páginas do livro. Para todos estes “kotas”, alguns, jovens de ontem, que sustentaram a utopia que hoje é a realidade literária do nossa pais, peço uma merecida salva de palmas!

Este livro traz memórias de um tempo marcante para o desenvolvimento literário de Moçambique, o tempo da inversão profunda do paradigma literário nacional, ou seja, a mudança do cânone. De acordo com o escritor e crítico literário Francisco Noa, citado pela Professora e estudiosa Fátima Mendonça: “… a Charrua, de certa forma, protagonizou uma rebeldia em relação ao que se tinha canónico, em relação ao curso da nossa literatura pós-independência.”

Não se tratava de uma rotura definitiva com o que se tinha escrito até aquele momento. Exemplo disso é a prevalência do valor da obra dos escritores e poetas que nos antecederam, resumidos em José Craveirinha, nosso expoente máximo, nosso Poeta-mor, que manteve o seu traço premonitório e o seu tom de denúncia das arbitrariedades, não importando quem as praticasse, nem em que tempo, até à sua passagem a outra dimensão existencial.

Tratava-se de acrescer um marco que considero histórico, um legado às gerações posteriores à Charrua, para que tivessem pontos de referência que ajudassem a reflectir sobre a nossa literatura.

Narro factos reais, porém rebatíveis, conforme o ângulo de visão em que cada um esteve a observá-los. Encontro hoje uma ocasião excepcional para explicar aos que às vezes oiço falar, movidos por dúvidas e aos que, simplesmente desvalorizam, sem conhecerem a história real desta aventura.

As páginas deste livro contam a verdadeira história da Charrua, podendo, contudo, não terem sido exaustivas o quanto seria de desejar. As razões que me levaram a escrevê-lo são diversas, mas quase todas andam à volta do conhecimento ou desconhecimento, se quisermos, do papel primordial da Charrua em relação à juventude daquela época, e à força titánica de massajar as mentes dos então já consagrados, no sentido de encararem positivamente, as mudanças que se impunham, na forma de representar culturalmente Moçambique no mundo.

É que a guerra colonial, no terreno das operações tinha acabado e o país devia-se curar das feridas que o evento deixara. Tinha que se encarar a reconstrução nacional de forma mais solta, embora, ainda, com as armas apenas ensarilhadas, não enterradas. Tinha que se cantar o país liberto, numa descrição aberta das suas potencialidades, usando uma linguagem nova que destacasse o amor, a beleza, a esperança e a certeza; a suavidade do rosto e a largueza do sorriso do homem, da mulher e da criança, sob o esplendor de um novo sol que começava a inundava todos os recantos do país!

Reitero, foi duro, primeiro, pela inexperiência dos novos escritores no traquejo dos instrumentos literários, aliada à teimosia dos que se julgavam detentores da autoridade literária, naquele tempo. Mas tínhamos que nos agarrar à fórmula do triunfo: Visão, Coragem e Perseverança.

Empedernimo-nos na ideia, no sonho e avançamos, porque sabíamos, apesar da nossa inexperiência, que o triunfo residia na coesão do grupo. As nossas diferentes cargas emocionais se atraíam. Pensamos juntos e derrubamos os obstáculos. Muitas pessoas, hoje falam da Charrua, pintando-a com as mais variadas cores, ao sabor da sua imaginação certamente influenciada. O que noto com alguma apreensão é que quando ela desbravava a árida terra da cultura do nosso país, na área literária, muitos não tinham ainda nascido ou estavam a nascer e, o que é mais grave, nunca, à posterior, viram um exemplar da revista ora em causa. Os seus pronunciamentos estão afectados eufórica ou disforicamente. Anda no ar uma interpretação difusa e confusa do que foi e representou para a literatura moçambicana o surgimento da Revista Literária Charrua e do Movimento do mesmo nome que a suportou. Estas são as razões fundamentais que me levaram a escrever este livro. Aliás, passe a publicidade, a Alcance Editores tem disponível, julgo, o livro Comemorativo dos 30 Anos da Charrua, que comporta todos os números da revista. Quem queira aferir o que digo poderá ter esse ensejo, folheando tal livro.

Felizmente, os fundadores da Charrua, exceptuando Eduardo White, estão ainda entre nós. Igualmente, um número considerável dos seus Colaboradores Permanentes. Isto significa que as fontes para o conhecimento real daquele movimento estão presentes. E porque não me arvoro detentor do conhecimento absoluto, deixo espaço para eventuais rebates ou complementos, pois a verdade mora dentro de cada um dos arautos da grande aventura que foi a Charrua.

Aproveito esta deixa, para encorajar os escritores mais antigos, consagrados ou não, a olharem para trás e se recordarem do seu penoso começo, para poderem facilitar, hoje, o surgimento de novos escritores, sobretudo os mais jovens. Ajudá-los a realizar os seus sonhos, nesta área! Isso não tirará o seu prestígio, pelo contrário, granjeará respeito e admiração. Temos que ser pilares e não obstáculos. Tem de haver uma espécie de osmose entre o velho e o novo para que a dialectica literária se vá cumprindo, suave e progressivamente.

Talvez seja uma mania minha, mas acho bonito e expressivo, um quadro em que escritores, antigos e novos se mesclem na construção de um conceito novo e coeso de literatura, capaz de espantar o mundo pela sua maturidade.

Dói muito ouvir interpretações erróneas, muitas vezes com intenção, sobre um projecto feito com convicção e sacrifício, tornado obra real e consistente, a ser arrastado na sargeta, quando tem frutos hoje palpáveis! Muitos dizem: “nós não somos produto da Charrua”… na verdade, aparentemente não são, mas a matriz que marca a sua introdução na literatura tem o condão pioneiro da Charrua. Têm essa incontornável origem, que marcou a transformação, o desvio do padrão da literatura moçambicana, baseado na resistência ao colonialismo e na luta armada de libertação nacional.

Chegado aqui, expresso o meu mais profundo sentimento de gratidão aos apresentadores da parte lúdica deste lançamento: (Roberto Chitsondzo, Iracema de Sousa e Mabjeca Tingana); ao Tomás Vieira Mário, pelo depoimento; aos professores de literatura: Aurélio Cuna e Lucílio Manjate. O primeiro por me ter ajudado na revisão inicial da obra, acto complementado, mais tarde, pelo poeta e confrade Ricardo Santos, e o segundo, também meu confrade Lucílio Manjate, pela sábia apresentação acabada de fazer. Aliás, Lucílio Manjate é, academicamente autoridade do assunto que por meio deste livro trago à reflexão. Ele, em algum momento estudou com profundidade esta matéria.

Reitero os meus agradecimentos a todos vós por estarem aqui, estendendo este reconhecimento ao Centro Cultural Português pela sua já acostumada hospitalidade, por me ter cedido este maravilhoso espaço; à AEMO, representada pelo Professor Luís Cezerilo, por ter sido a base do Movimento e da Revista Charrua e por ainda me considerar um dos seus destacados membros; à Alcance Editores, pela sua verticalidade e por, ao longo de 16 anos de actividade aceitar-me, ainda, como um dos seus autores de preferência, na senda do engrandecimento da literatura moçambicana.

E a fechar, como se estivesse a começar, agradeço à minha família alargada, especialmente, à minha mulher, Ana Maria e aos nossos filhos e netas.

 

Maputo, 23 de Junho de 2022

 

*Intervenção na cerimónia de lançamento do livro Geração Charrua: uma juventude literata ao ritmo do seu tempo, 1983 – 1986, no Camões – Centro Cultural Português em Maputo.

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