O País – A verdade como notícia

Febre africana

Ryszard Kapuscinski: “Em pleno centro, a meio da Independence Avenue, há um edifício de quatro pisos, com varandas com balaustradas destruídas a toda a volta – o New Africa Hotel. No último piso, há um enorme terraço, onde existe um bar com algumas mesas. É aí que conspira a África dos nossos dias. É aí que se encontram os refugiados, exilados e emigrados de todos os cantos do continente. Geralmente, numa mesa sentam-se Mondlane de Moçambique, Kaunda da Zâmbia, Mugabe do Zimbabwe. Noutra, Karume de Zanzibar, Chisiza do Malawi, Nujoma da Namíbia, etc. O Tanganica é o primeiro Estado independente nesta zona, daí que sejam para ali atraídas pessoas de todas as colónias. À noite, quando o tempo arrefece e a brisa vinda do mar se começa a fazer sentir, o terraço enche-se de pessoas, que discutem, decidem sobre planos de ação, medem forças e calculam as possibilidades de sucesso. O terraço então num centro de decisão, numa ponte de comando. Nós, os correspondentes, somos, obviamente, frequentadores deste espaço, para obtermos informações. Como já conhecemos os líderes, sabemos quais as mesas a que vale a pena sentarmo-nos. Sabemos que Mondlane, simpático e aberto, gosta de conversar, enquanto Chisiza, enigmático e reservado, não abre pura e simplesmente a boca.”

Leio este relato impressivo do jornalista polaco Ryszard Kapuscinski, considerado o maior repórter do século XX, no seu celebrado livro Ébano. Kapuscinski aterrou em 1957 pela primeira vez em África, como correspondente de um jornal de seu país, tendo como objectivo testemunhar o início do fim – parece uma contradição? – da era da colonização. Esteve no Gana nos primórdios da independência, que ocorreu em 1957 – a antiga Costa do Ouro foi a primeira nação africana que se tornou independente, no caso dos ingleses -, onde ouviu Kwame Nkrumah. A sua interacção com Kofi Baako, antigo desportista e professor, que se tornou um dos populares ministros, é paradigmática do tipo de governo e sonho que o Gana então projectava. Ao destino do seu líder carismático e dos seus desígnios aconteceu o que configuraria o destino de África cuja cartografia este livro traça notavelmente. Em 1962, Kapuscinski vivia em Dar es Salaam, altura em que cruzou com personagens como Eduardo Mondlane; viajou de lá para Kampala, no Uganda, para assistir à independência deste país que começa errático. Justamente nesse dia acordava atordoado num hospital recém-inaugurado, por causa de uma malária. Fez aquela viagem de carro sem mapas nem bússolas, o que em si era já uma grande aventura. Foi, mais tarde, dos primeiros jornalistas a aterrar em Zanzibar quando um golpe expulsou o sultão do poder. Conhecera no New Africa Hotel, de Dar es Salaam, Abeid Karume, que viria a ser o primeiro presidente da ilha. Lidou em Dar com os protagonistas das independências. Percorreu o continente ao longo de quatro décadas. Viveu a tragédia africana, testemunhou o genocídio étnico no Ruanda. Cruzou África e escreveu sobre as pessoas que encontrou, que eram pobres na generalidade – interessou-se mais por estas do que pelos poderosos líderes -, redigiu as suas histórias, muitas vezes, quase sempre, violentas, muito duras, duríssimas.

Leio Ébano e sinto-me sobressaltado pelo relato fascinante de um homem que foi testemunha privilegiada da história do meu continente. Estava ele em Zanzibar – a tentar escapar da situação ardilosa que se vivia na ilha – quando se dão golpes simultâneos no Quénia, Tanganica e Uganda. Em 1966 está em Lagos, na imensa Nigéria. Regista no seu diário o golpe de Estado que ocorre na altura. Fala de Abubakar Balewa (na época primeiro-ministro nigeriano), Ahmadu Belo, Samuel Akintola, entre outros, executados a 15 de Janeiro de 1966. O golpe é liderado pelo Major-General Johnson Thomas Aguiyi-Ironsi, que irá presidir à Nigéria, entre 16 de Janeiro de 1966 a 29 de Julho do mesmo ano, quando morre assassinado. Esta história, necessariamente violenta, necessariamente sangrenta, fascina-me. Parece um paradoxo? Leio-a empolgado. Conhecer o passado de África na pena de um jornalista que viveu um momento histórico irrepetível, isso não parece incongruente com uma perspectiva crítica dessa mesma história. Antes pelo contrário.

Esta irresistível viagem ao passado explica muito do que rapidamente esquecemos ou desprezamos, a história recente, dos últimos 50 anos, de uma África devastada pela seca, pela fome, pela guerra, pelo saque, pela corrupção, por uma geração de ditadores e ineptos, uma África que substituiu poderes do ocidente que a dilapidaram por outros (africanos) sequiosos de o fazer, proclamando uma sangrenta legitimidade. Ler este livro é um leniente contra a amnésia. Cresci ouvindo dizer que a culpa do nosso atraso, a culpa da nossa inércia, a culpa do nosso subdesenvolvimento, a culpa da nossa pobreza, a culpa da ausência de futuro ou a culpa da desilusão que sentíamos em África advinha do colonialismo. Passam mais de cinco décadas e somos incapazes de dar, no geral, um sentido que não seja o anátema da desgraça. Entretanto gerações de líderes, entretanto as guerras, entretanto a fome e a seca, entretanto a incapacidade. Leio este livro e uma memória histórica acode-me. Muitas das origens das nossas desgraças estão aqui explicadas. O colonialismo, sem dúvida, mas também a liderança africana é responsável pelo que aconteceu ao continente. Da Nigéria ao Uganda, nos relatos deste grande repórter polaco, que viajou pelas intransitáveis estradas africanas, que enfrentou emboscadas, que se cruzou com ditadores, que foi interpelado por rebeldes insurrectos, que assistiu a golpes de Estado, que falou com muitos dos seus protagonistas, que relatou o quotidiano de miséria que a promessa das independências não conseguiu desfazer, estes testemunhos, repito, são de uma dureza, são de uma extraordinária virulência. O que ele relata de Idi Amin poderia parecer ficção de tão hediondo e inclemente; ou o seu lancinante quotidiano na Nigéria, um dos países mais desiguais de África, entre uma oligarquia rica e uma população paupérrima; a sua pungente descrição de Lalibela, na Etiópia, assolada por uma fome responsável por um verdadeiro genocídio, facto escondido primeiro por Hailé Selassie e depois por Mengistu, que o derrubou e matou; tudo isto é devastador, tudo isto é medonho e atroz. Ao ler os seus relatos do Uganda, no tempo de Idi Amin, precedido por Milton Obote e por Tito Okello, todos eles ditadores que acabaram fugidos para o estrangeiro, no tempo em que os sargentos e coronéis ou generais autoproclamados marechais, desde a República Centro Africana, do infelicíssimo Bokassa, a Uganda do próprio Amin, cobriam o continente de ignomínia e miséria, fica-se com uma cabal ideia do que aconteceu de excruciante em muitos países.

Este relato é fascinante porque é o primeiro esboço da história. A história a quente. Essa é a grande arte do jornalismo: fazer o rascunho da história. A história de África é vista aqui por alguém que a relata no momento em que ela acontece, e não me venham dizer que se trata de um olhar exógeno para desvalorizar este relato. Ler Ryszard Kapuscinski é um murro no estômago. Estes relatos parecem um mundo cruel, malvado, desumano, bárbaro, impiedoso, insensível. São-no, efectivamente, um mundo que existiu, um mundo que existe ainda no nosso tempo, mas sobretudo denunciam uma mentalidade que ainda existe. Por isso, a democracia, a liberdade de imprensa, os direitos humanos e outros avatares do mundo ocidental chocaram com as circunstâncias e os homens de poder em grande parte de África, mesmo quando estes os proclamavam. Por isso é que é tão agreste a paisagem africana, embora, tal como o autor no-lo diz, não exista uma entidade uniforme que seja África, que o conceito uniformizador e necessariamente enquistado não produz a imagem de uma realidade tremendamente diferenciada como é a dos países que constituem o vasto e por vezes implacável continente africano. As lutas fratricidas, as guerras étnicas e tribais, os ódios viscerais, a intolerância em relação ao outro, a brutal incapacidade de aceitar a alteridade, o poder, a corrupção, a ânsia pelo enriquecimento são alguns dos males que atravessaram transversalmente o continente. Esta leitura é também um exercício devastador, mas essencial para a compreensão da chamada crise africana.

O diagnóstico de África parece muito duro. Mas não reflecte a verdade? Ryszard Kapuscinski interpela os africanos. Babashoa Chinsman (da Serra Leoa): “não é verdade que África tenha estagnado. África está a desenvolver-se, não é apenas o continente da fome”. John Menru (da Tanzânia): “África precisa de uma nova geração de políticos, que aprendam novas formas de pensar. A geração actual tem de abdicar do poder. Em vez de pensarem no desenvolvimento, estas pessoas pensam apenas na melhor forma de se manterem no poder, uma saída para África? Tem de ser criado um novo clima político, a) no qual se aceite o princípio de que o diálogo é imprescindível, b) permita uma participação da sociedade na vida pública, c) que respeite os direitos fundamentais do Homem, d) que leve à democracia.” Sadig Rasheed (Sudão): “não há certeza de que as sociedades africanas sejam capazes de adoptar uma posição autocrítica, mas disso dependerá muita coisa”.

Ryszard Kapuscinski: “O espírito europeu reconhece as suas limitações, aceita a sua imperfeição, é céptico, duvida, põe tudo em causa. Há outras culturas às quais falta este espírito crítico. Mais ainda: têm tendência para a superioridade, para considerarem que tudo o que as distingue é perfeito; por outras palavras, não conseguem ser autocríticas. Estão constantemente a responsabilizar outras pessoas e outras forças (maldições, diversas formas de domínio estrangeiro) pelas desgraças. Os representantes destas culturas vêem na crítica uma ofensa pessoal, uma tentativa consciente de os humilhar, uma forma de os maltratar. Se se lhes disser que a sua cidade está suja, é como se se lhes dissesse que eles próprios estão sujos, ou têm as orelhas mal lavadas, o pescoço e as unhas carregados de sujidade. Em vez de estarem disponíveis para a crítica, arrastam atrás de si todo o tipo de traumas, complexos, sentimentos de ódio, indignação, insatisfação e manias. Isto leva a que cultural e estruturalmente eles não sejam capazes de desbravar o terreno do progresso, e sejam incapazes também de ter em si vontade para a mudança e o desenvolvimento.”

Tenho pensado muito neste ponto. O lugar da crítica e da reflexão nas sociedades africanas. Um tema muito difícil, muito complexo e contraditório. Ryszard Kapuscinski interroga-se: “Será que as culturas africanas (em África, há tantas como religiões) pertencem a estas culturas inatingíveis e sem poder de crítica? Africanos como Sadig Rasheed começam a refletir sobre isso, pois querem encontrar uma resposta para a pergunta: por que razão é que África está a ficar para trás na grande corrida dos continentes?”

Boa pergunta.

Tenho um amigo que insiste que a obtenção da liberdade material é indispensável para a afirmação intelectual dos africanos ou para a afirmação do espírito crítico dos mesmos. Estou parcialmente de acordo. Porque nenhuma liberdade material pode ser garantida numa anarquia, no meio de despotismo ou perante a arrogância de poder, em África ou onde quer que seja. Essa liberdade e essas garantias podem desaparecer de um dia para outro e deixar a pessoa literalmente indefesa. As garantias das liberdades são muito frágeis neste contexto. Os direitos de que fala Rasheed não estão, de todo, garantidos.

Ébano relata a cultura da violência no continente. O que aconteceu na Libéria e a descrição do assassinato de Samuel Doe são disso exemplo paradigmático. Lembro-me vagamente desta história. Foi presidente entre 1980 a 90, tendo derrubado William Tolbert, instaurando, pela primeira vez, um poder dominado por descendentes de nativos africanos, até então dominados por descendentes de escravos oriundos da América, que fundaram a Libéria em 1847. A tortura que antecede a morte de Doe às mãos de Prince Jonhson, que lutava contra ele e contra John Taylor para a tomada de poder, foi filmada e circulou na época. Jonhson aparece a beber cerveja enquanto ordena que se corte a orelha do presidente. Ryszard Kapuscinski relata com pormenores esses dias de opróbrio da Libéria. Dias lúgubres. Duros de se lerem. É claro que estão nos antípodas da Libéria de hoje. África, no geral, deixou há muito de ser o retábulo dos ditadores. O que Ryszard Kapuscinski descreve crua e cruelmente, essa realidade duríssima que nos dominou, responsável por guerras, de facções que se querem apoderar do poder por aquilo que este representa como captura dos bens e da riqueza dos seus países é uma advertência. Este livro é um alvitre esmagador. A sua leitura deixou-me exaurido. Estou exausto. É profundo e perturbador. Penetra na selva africana, interpela os demónios que atravessam a longa noite africana. Talvez por isso tenha sido tão fascinante mergulhar nessa densa e demoníaca noite. Leio uma edição recente intitulada Ébano. As anteriores edições levavam o título de Ébano – Febra Africana. Ryszard Kapuscinski, nascido em 1932, morreu aos 74 anos, em 2007. Deixou uma vastíssima e aclamada obra, o seu nome foi cogitado para o Prémio Nobel. Não foi apenas um repórter em África, que conheceu profundamente. Também andou pela América Latina. Tenho deste autor incomplacente para ler Mais Um Dia de Vida – Angola 1975. Preciso, no entanto, de respirar e ganhar um novo fôlego.

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos