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Fátima Mendonça

Tínhamo-nos conhecido na Associação dos Escritores nos meados dos anos 80 e houve, desde logo, uma grande empatia entre nós. Fátima Mendonça era uma reputadíssima professora universitária e divulgadora incontornável da literatura moçambicana e eu um miúdo intrépido que queria saber e fazer tudo. Em finais de 1985 houve em Maputo um encontro que trouxe, entre outras personalidades, o professor Manuel Ferreira que, na altura, deu a conhecer a antologia de poesia No Reino de Caliban III, cujo volume era dedicado a Moçambique. Aquele volumoso livro verde inquietou-me. Apesar de trazer nomes como Luís Carlos Patraquim, Manuela de Sousa Lobo ou Brian Tio Ninguas, entre outros, escapava-lhe uma produção poética onde sobressaísse, sobretudo, a geração da Charrua, revista que tinha sido lançada em Junho de 1984. Pareceu-me, desde logo, que haveria lugar para apresentar uma antologia com a nova poesia moçambicana, a poesia que se produzia naqueles anos, os anos 80, que era o testemunho e o testamento de uma época única. A antologia de Manuel Ferreira cobria muito pouco da poesia que nós então produzíamos, sobretudo a vertente lírico-amorosa, que irá, de certo modo, caracterizar esta época, como a rebeldia e a afirmação de uma nova geração de poetas moçambicanos, que tiveram em Eduardo White, claramente, o seu expoente mais elevado. White, que publicara Amar sobre o Índico – um belíssimo livro de estreia -, em 1984, não constava na antologia. Numa das nossas conversas, ali na associação, interpelei a Professora Fátima Mendonça com essa e outras inquietações. Foi dessas conversas que ficou o repto de trabalharmos num livro conjunto. Combinámos que iríamos fazer uma antologia de poesia com o marco de 1975 para a frente, seria a poesia produzida no contexto do novo país, revelando, por conseguinte, novos poetas e novas propostas, estilísticas e temáticas, que esta então intentava subscrever. Começámos a recolha e sistematização da informação em 1986. A antologia cobrirá o lastro temporal que vai de 1975 a 1988, dado que terminámos o livro em Março de 1989, pese embora este ter sido publicado apenas em 1993.

A nossa ideia era que a associação fosse a editora do livro e nem cogitávamos uma ideia diversa desta. O trabalho de composição começou por ser feito, com o apoio do Ricardo Santos, no CEDIMO (Centro de documentação e informação de Moçambique), onde por acaso cheguei a trabalhar, antes de me decidir a fazer jornalismo. O Ricardo dirigia o CEDIMO e foi determinante o esforço que pôs neste trabalho para que um volume de fotocópias ou originais pudesse ter forma única na composição que se fez no início daquela empreitada. Importante e decisiva seria, também, a colaboração e o empenho de Júlio Navarro, que seria o autor do arranjo gráfico e acompanharia, depois, todo o processo de produção do livro.

A capa branca, com o título em magenta cobrindo-a inteiramente, encimada pelos nomes dos autores e com a chancela em baixo, vista hoje, como o próprio livro ou os acabamentos, parecem demasiado artesanais ou amadores, mas reflectem o melhor que se poderia fazer ou conseguir nas circunstâncias do país e das possibilidades que as gráficas poderiam oferecer. A impressão decorreu no CEGRAF. Vivíamos uma época em que conseguir papel para alimentar a edição de um simples livro era um acto que exigia muito – senão tudo! -, não só dos editores, mas também dos autores. Batíamos as portas das embaixadas pedindo apoio em papel ou computadores para fazer os nossos livros. Inclusive, chegámos a pedir ao Presidente da República apoio, numa visita que lhe fizemos. A sua resposta foi de antologia, mas não posso cometer aqui tal inconfidência. Quando os nossos livros eram então publicados, eram notícia de primeira página. Para os livros, para as revistas literárias, que então surgiram, para alimentar o nosso parco panorama editorial. Fazer um livro, nos anos 80, era um parto longo e dificílimo. Doloroso.

Para além de uma apresentação assinada pelos antologiadores, trazia um estudo da Fátima Mendonça que servia de prefácio. Os poetas apresentavam-se por ordem alfabética do primeiro nome, no final constava um apêndice biobliográfico – nome completo, pseudónimos usados, data e local de nascimento, formação académica, profissão e actividades, livros publicados e outras indicações, constituem este apêndice e, depois, um índice de autores, com referência de poemas e fontes bibliográficas, onde aparecia o autor e o poema, a fonte, a data da publicação e a respectiva página. Muito deste trabalho foi realizado no contacto pessoal com os autores. À distância destes anos, não deixo de verificar que este contacto (não só para confirmar dados, cruzar informação, mas sobretudo para obter textos, muitos inéditos seriam incluídos nesta antologia) foi das tarefas mais gratas que desempenhei na vida. Reuníamo-nos, amiúde, na casa da Fátima, num prédio da Julius Nyerere, com uma vista soberba sobre o Índico. Na varanda, ela tinha uma área de trabalho, onde guardava, sobretudo, fichas, com numerosa e importante informação que coligira na sua longa e distinta trajectória de investigadora, divulgadora e professora da literatura moçambicana. A Fátima Mendonça é uma pioneira estudiosa da nossa literatura. Há muito que merecia uma homenagem pelo extraordinário trabalho que realizou ao longo dos anos. Contudo, sabe-se: vivemos num tempo em que o desconhecimento, o descaso e a displicência imperam e ululam.

Para os incautos: Fátima Mendonça leccionou, na Universidade Eduardo Mondlane, entre 1977 e 2004, quando se reformou: Literatura Moçambicana, Literatura Comparada, Literaturas Africanas Comparadas, Retórica e Poética, Literatura da África Austral e Outras Artes. Foi examinadora externa nas Universidades do Zimbabwe e Durbanwestville e professora convidada nas universidades Patrice Lumumba (Moscovo), Rennies e Poiters (França), Salamanca e Santiago de Compostela (Espanha), Witwatersrand (África do Sul), Universidade de Coimbra e Universidade Nova de Lisboa (Portugal), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil). É autora de uma vasta obra ensaística: Literatura Moçambicana – as dobras da escrita (2012), Rui de Noronha: Meus versos (edição crítica da poesia de Rui de Noronha, 2006), Antologia da Nova Poesia Moçambicana (co-autoria, 1993), Literatura Moçambicana – a história e as escritas (1989). Co-organizou a edição da obra da Noémia de Sousa (Sangue Negro), organizou o livro póstumo Poemas Éróticos de José Craveirinha. É também co-autora de João Albasini e as luzes de Nwandzengele (2014).  Conferenciou sobre a nossa literatura em diversas cidades e universidades do mundo, em colóquios e congressos, redigiu ensaios críticos sobre a literatura nacional, é provavelmente a moçambicana com maior arcaboiço do percurso histórico da Literatura Moçambicana. Pretextos não faltam para a Universidade Eduardo Mondlane, o ministério da Cultura ou lá quem quer que seja fazer-lhe um reconhecimento público. Aqui fica o meu humílimo preito. 

Quando foi publicada a antologia, em 1993, António Pinto de Abreu, António Tomé, Brian Tio Ninguas, Celestino Jorge, Elton Rebelo, Fernando Manuel, Filimone Meigos, Gulamo Khan, Hilário Matusse, José Pastor, Julius Kazembe, Kalungano/Marcelino dos Santos, Leite de Vasconcelos, Luís Cardoso, Nelson Saúte, Noémia de Sousa e Simião Cachamba não tinham a sua obra publicada em livro. Destes autores, Brian Tio Ninguas e Gulamo Khan tinham morrido quando a antologia saiu. De Gulamo seria publicado postumamente Moçambicanto. Tio Ninguas permanece inédito em livro. Elton Rebelo (Júlio Bicá), Hilário Matusse, Leite de Vasconcelos e Noémia de Sousa faleceram muitos anos depois deste lançamento, mas viram antes serem publicados seus livros. Celestino Jorge e José Pastor morreram e continuam inéditos em livro. António Pinto de Abreu, Fernando Manuel, Filimone Meigos, Marcelino dos Santos (livro único), eu próprio, haveríamos de publicar diversos livros ao longo dos anos. Permanecem inéditos Julius Kazembe, Luís Cardoso (publicou um álbum de pintura) e Simeão Cachamba (tinha um livro pronto, mas não tenho notícia da sua publicação.).  Albino Magaia, Armando Artur, Calane da Silva, Carlos Cardoso (livro único), Clotilde Silva, Eduardo White, Hélder Muteia, Heliodoro Baptista, Jorge Viegas, José Craveirinha, Juvenal Bucuane, Luís Carlos Patraquim, Mia Couto, Mutimati Barnabé João, Orlando Mendes, Rui Nogar, Sebastião Alba, Sérgio Vieira, FRELIMO (autor coletivo), completam o escol dos poetas escolhidos.

No lapso de tempo em que decorreu este trabalho, a quatro mãos, eu concluí o secundário, colaborara como jornalista cultural na Rádio Moçambique e no Notícias, fizera um curso médio de jornalismo, entrara para os quadros da revista Tempo, onde me tornaria, em 1988, editor da “Gazeta de Artes e Letras”, colaborara abundantemente na imprensa moçambicana. Um sonho que começara a porfiar aos 18 anos vi apenas concretizar-se aos 26 anos, em 1993. Muitas foram as vicissitudes, mas este trabalho foi em si uma espécie de um curso superior de literatura moçambicana (de poesia, no caso), que me permitiu ter um amplo conhecimento das obras, dos autores e das circunstâncias em que muitas delas foram produzidas. Muito devo ao convívio e ao trabalho, minucioso, diligente e informado, que tive com a Fátima Mendonça. Aprendi muito. Aprendo tudo.

Este trabalho iluminou, por assim dizer, o meu trabalho como jornalista cultural. A inversa é válida: o meu labor jornalístico também deve e muito a esta tarefa como antologiador. Muito ou quase tudo o que fiz como jornalista cultural foi divulgar autores – ler as suas obras, recenseá-las, entrevistá-los, anotar, discutir, polemizar. Esta foi a minha tarefa. Aprendi muito com o antologiador e este imenso com o jornalista. Quando, menos de uma década depois, o Nelson de Matos, meu editor na D. Quixote, me desafiou a organizar, primeiro uma antologia de contos (As Mãos dos Pretos), título emprestado a um belíssimo conto de Luís Bernardo Honwana, talvez o mais belo conto jamais escrito na nossa literatura e de poesia, depois, (Nunca Mais é Sábado – título emprestado a um soberbo poema de Rui Knopfli no notável Mangas Verdes com Sal), a minha tarefa e a minha diligência foram facilitadas pelo trabalho, conhecimento que travara, rede que estabelecera, empatia que tivera com autores e obras, o que tornou aquela empreitada menos difícil do que seria se eu não beneficiasse do trabalho de sapa realizado anteriormente. 

Falei em tempos à Fátima Mendonça da necessidade de revermos e reeditarmos esta obra: Antologia da Nova Poesia Moçambicana. O pretexto dos seus 25 anos em 2018 – foi editada em 1993 – poderia ser uma justificação incontornável. Até porque, depois de 1988, não só surgiram novos e belíssimos poetas – há outras ausências que o tempo histórico e as suas circunstâncias não nos “permitiram” incluir e que hoje estariam lá representados indubitavelmente -, assim como muitos de nós publicámos o melhor que soubemos e pudemos, ulteriormente, e isto poderia ser resgatado numa antologia tão ampla quanto significativa, como foi a tentativa daquela, sem dúvida, a primeira que se fez em Moçambique no período ulterior à independência, com a ambição e a relevância que tinha e que tem.

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