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Eu bebeu suruma dos teus ólho Ana Maria

O Rui Nogar morreu há 25 anos. Foi a 11 de Março de 1993. Hoje já ninguém fala dele. Deram-lhe o nome de uma rua, mas esqueceram-no. Este país cultiva o silêncio e o esquecimento, a ignorância e o despeito em relação a muitos dos seus melhores. O Rui foi um dos nossos melhores. Não só como poeta, mas como cidadão. O Rui foi das pessoas que mais estimei no universo literário moçambicano e não só. Eu viera de Nacala, quando um meu amigo de infância, Luís Guevane, hoje colunista do semanário Savana, com quem partilhava inquietações literárias na juventude, me levou, em 1984, à Associação dos Escritores Moçambicanos. Tinha 17 anos e o então secretário-geral da AEMO recebeu-me com uma disponibilidade e um afecto invulgares. Afinal, ele era um escritor consagrado e eu um pretenso candidato a escritor. Um miúdo que tinha essa veleidade, no entanto ele abraçou-me como par. Tenho-lhe essa dívida de gratidão impagável e uma imensa amizade.

Armando Artur: “(Ao Rui Nogar) – Escrevo-te, melancólico, / estas palavras reverberadas/ nas folhas das palmeiras. / A tua ausência ganha, / em mim, a forma de um poema/ subitamente inacabado. / O nojo e o frio do teu silêncio/ apaga a lógica poética/ em que me fundo. / A bordo do teu nome vazio/ escrevo-te estes versos/ com o azul absurdo deste dia”.

Neste lancinante poema do Armando, publicado no seu livro Estrangeiros de Nós Próprios, de 1996, está a subsunção de um sentimento geracional. Pessoalmente, sinto-me aqui sub-rogado e ainda bem. O Rui merece de nós memória persistente e um afecto sem tréguas.

Francisco Rui Moniz Barreto nascera a 2 de Fevereiro de 1932 e tinha no curriculum o mito de um grande declamador, de um intelectual preso, de um activista e militante, com poemas que publicara em O Brado Africano, e um título na sua estante de autor – Silêncio Escancarado. Com o convívio na AEMO, primeiro, em viagens ou em Portugal, onde viveu parte final da sua vida, depois, conheci-o melhor e admirei-o ainda mais. Tive o privilégio de o ter como amigo e tenho deste meu camarada de ofício uma saudosa memória.

Para além de frequentar a Associação Africana, ele teve uma assídua convivência com José Craveirinha – aliás a edição do Karingana ua Karingana dos finais dos anos 70 e a dos anos 80 trazia um texto do Rui Nogar -, conviveu com Raúl Peres da Silva, Máximo Viana Fernandes ou os irmãos Primavera. Faziam tertúlias, trocavam livros, divertiam-se. O Rui, oriundo da burguesia colonial, penetrava no universo suburbano sem dificuldades nem hesitações – “Nove Hora”, poema que será dramatizado pelo Mutumbela Gogo, nos anos 90, é disso apanágio! Pertencia aos “Marechais de Areia”, grupo em que se mesclavam todos: intelectuais ou mecânicos – todos! -, unidos pelas amigas que partilhavam no subúrbio. Já citei “Nove Hora”, parece incontornável citar “Xicuembo”, um outro notável poema do Rui Nogar, testamental dessa época:

Rui Nogar: “eu bebeu suruma/ dos teus ólho Ana Maria/ eu bebeu suruma/ e ficou maluco// agora eu quere dormir quere comer/ mas não pode mais dormir/ mas não pode mais comer// suruma dos teus ólho Ana Maria/ matou socego no meu coração// eu bebeu suruma oh suruma suruma/ dos teus ólho Ana Maria/ com meu todo vontade/ com meu todo coração// e agora Ana Maria minhamor/ eu não pode mais viver/ eu não pode mais saber/ que meu Ana Maria minhamor/ é mulher de todo gente/ é mulher de todo gente/ todo gente todo gente// menos meu minhamor”

A vida, o quotidiano, as injustiças sociais, as desigualdades sociais, que ele abominava e contra as quais lutava, estão no lastro da sua escrita. Sobretudo, a sua passagem pela cadeia da Machava, que está na origem de poemas pungentes, belos, doloridos e dolorosos.  Alguns versos: “tratávamos o silêncio por tu/dormíamos na mesma cama/acordávamos do mesmo sono”. Este poema, “Da fruição do silêncio”, escrito em 1967, tem versos notáveis: “ninguém pressentia/ no gume acerado/da quase indiferença/ que o silêncio aparentava/ o perfeito sincronismo” ou: “nada sabíamos de nós próprios/ além da angústia lacerante/ coagulando-nos um a um/ nos limites da expectativa”. Ou ainda: “era o silêncio devorando o silêncio/ era o silêncio copulando o silêncio/ era o silêncio assassinando o silêncio/ era o silêncio ressuscitando o silêncio”.

Há um episódio que fica para os armoriais da resistência. O Rui, sabendo da presença dos agentes da polícia na primeira fila, numa Associação Africana apinhada, declama um poema de Carlos Maria (“Balada dos homens da caça”), que tinha um estribilho: “Venham todos os homens da caça/ Venham todos/ Tragam as azagaias”. Fazia-o com gestos provocatórios, apontando para a primeira fila. Seriam presos nessa mesma madrugada: ele, o José Craveirinha, o Luís Polanah e a Cacilda Reis. Interrogando-o, o torcionário Roquete, de triste memória, seria assertivo na indagação: “Porque é que você anda com pretos?”

Foi o amigo Raúl Peres da Silva, que, em 1964, estando na Argélia, o convidaria a juntar-se à UDENAMO, um dos movimentos que estão na origem da FRELIMO. Estando de férias na Rennies, onde então trabalhava, vai a Paris para iniciar esse percurso libertário. Marcelino dos Santos, com quem se encontra na capital francesa, aconselha-o a regressar, era necessário organizar a luta no interior. Joel Madunaxinana procura-o por incumbência de Marcelino. Numa reunião em casa de Armando Pedro Muiuana, em 1964, são arrastados pela polícia. Presos o próprio Armando Pedro, Rui Nogar, José Craveirinha e outros. Adrião Rodrigues, Almeida Santos e Santa Rita advogam a favor destes presos. Rui Baltazar, identificado com um dos presos, Albino Maeche, que viera da Tanzânia, é impedido de o fazer. São ilibados. Pouco tempo depois, o julgamento é repetido. A ordem, vinda de Portugal, era clara: cadeia. Assim, Malangatana, Craveirinha, Luís Bernardo Honwana serão companheiros de prisão – companheiros de sempre. Os escritos da cadeia saíam disfarçados nas marmitas que levavam comida e eram entregues a Rui Baltazar.

Depois da Independência, passará pelo opróbrio de uma penitência em Nampula, ironia e contradição da revolução: ele e o Malangatana. O Craveirinha foi poupado à purga graças a Samora Machel. Rui Nogar seria Director Nacional de Cultura, Director do Museu da Revolução, deputado da Assembleia Popular e, quando o conheci, era secretário-geral da AEMO, o primeiro a dirigir a casa dos escritores. Conheci-o aos 52 anos. Tinha sempre os cabelos penteadíssimos, a barba aparada, um tique quase nervoso, uma inquietude permanente, uma intranquilidade em relação à condição humana. Tivemos muitas conversas, discordávamos muito, mas sempre fraternalmente. A AEMO era o lugar da democracia.

Minhas prematuras conversas com Mário Pinto de Andrade, ali nos bancos da AEMO, ou na casa da Julius Nyerere, nas quais me dizia ter chegado a hora da mudança: os partidos únicos, sucedâneos dos movimentos de libertação, não representavam mais o lastro social e a realidade política e económica e social dos nossos países, faziam-me ansiar, naqueles anos 80 ainda, pela democracia, pela mudança. O Rui, embora concordasse com a democracia – é preciso dizê-lo – achava que não chegara ainda o momento. Mas era aberto à discussão.

O Rui convivia muito bem com a geração da Charrua e todos os jovens rebeldes da época. Nunca o vi incomodado, antes pelo contrário. Creio que a nossa geração – disse-o algures – deve-lhe muito, deve-lhe tudo, principalmente os charrueiros, que albergou e acarinhou. Uma vez, disse-lhe que a nossa afirmação teria de ser pela poesia lírica. Ele contradisse-me dizendo que, entre a flor e a luta, escreveria sobre a luta. Mas aceitava a nossa deriva lírica, quando intentávamos um caminho novo para a poesia moçambicana. A despeito, devo dizer que lhe pertence um dos poemas mais belos da nossa lírica – “Xicuembo” – acima citado na íntegra. Parece contraditório? Não.

Na entrevista de vida que lhe fiz para Os Habitantes da Memória ele resumiu muito bem o ideário da sua vida: “Não me interessa que seja ou não considerado poeta. O que me interessa é que eu seja considerado homem que se preocupa com os outros homens da sua época.” Está tudo dito. Rui foi um grande poeta, sim. Um poeta extraordinário: as suas imagens, as suas metáforas, o seu domínio da língua e da linguagem, faziam-no exegeta. Era ainda um excelente tribuno, um belíssimo declamador, amigo do seu amigo, um homem bom. Um homem apaixonado pela vida.

Gostei de fazer uma viagem com ele a Sevilha, em 92, com o Craveirinha e o Rui Knopfli. Estavam também o Eugénio Lisboa, a Maria Velho da Costa, o Pedro Tamen, entre outros. Foi através do Rui Nogar que me tornei amigo do Egito Gonçalves. Ainda hoje me lembro dos rojões à moda do Porto, que comi em casa do Egito, e da cidade invicta, em vários ângulos, mostrada pelo grande poeta português. A última vez em que estivemos os três juntos foi a 25 de Novembro de 1991, saíramos de um congresso bocejante. Fomos para a casa do Rui no Areeiro, em Lisboa. Comemos umas costeletas que ele preparou e de sobremesa uma bebinca que ele tinha. Quando o Rui morreu, em Março de 1993, o Egito escreveu um poema evocativo – “Lembrança para Rui Nogar”:

Egito Gonçalves: “Imagens tuas ganharam alicerces, / fragmentando-se em gavetas diversas/ como amostras de minerais, receitas/ de comida moçambicana, fotografias ao lado de Rumiana I tiradas/ por Rumiana II (onde estarão?)/ na tarde em que a tempestade estiou/ e descemos para ver o velho molhe destruído/ e os fotógrafos da Sófia Press ao trabalho/ (Maria Bakalova cortava o vento/ com os olhos), as ondas incendiavam/ a nossa imaginação – e o passado / descia pelas falésias, trocávamos/ memória de um tempo de silêncio/ de telegramas cifrados. A espuma/ era um fumo de inverno. Depois/ houve um leão de bronze onde o sol/ escurecia – e anos mais tarde/ uma costeleta lisboeta com o Nelson/ entre duas comunicações repetitivas/ de um congresso que nos aborrecia. / E rimos com vontade. Para isso estávamos/ percorrendo pontos de referência/ das vidas que tínhamos lavrado/ arduamente – para que a morte/ não fosse apenas uma sombra inútil, / uma pedra rolando sem nome no abismo.”

Como me lembro daquela data remota que o Egito alude neste belíssimo poema? No meio da nossa galhofa, o Rui ligou a televisão para vermos as notícias. Foi justamente naquele momento em que anunciaram a morte do Freddy Mercury e eu sendo um indefectível daquele exuberante Queen jamais esqueceria aquela infausta data.

Aqui estou, vinte e cinco anos depois, impelido por esse sentimento de que a morte não seja, no caso do Rui Nogar, apenas uma “sombra inútil”, como escreveu o nosso amigo Egito Gonçalves, muito menos “uma pedra rolando sem nome no abismo”.

 

 

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