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“Escrever é um acto para exercer a minha liberdade”

A resistência e a liberdade são prioridades para a escritora brasileira Andréa del Fuego, que participou na edição 2017 da Feira do Livro de Maputo. Para a escritora, a literatura é um veículo que reflecte o seu mundo interior. Além disso, Del Fuego diz, nesta entrevista, que esta primeira visita ao país lhe fez sentir no colo da “mamãe”

 

Escrever é uma forma de sonhar e ser ave. Por que escreve?

Escrevo por uma necessidade narrativa. Eu preciso de narrar e, mais recentemente, descobri na escrita um acto de resistência, mas não só como uma militância num mundo que parece perder cada vez mais a liberdade; não é só um acto social para estimular a liberdade do outro, por exemplo, é um acto para exercer a minha própria liberdade, saber o que penso e sinto por via da escrita. É como se com a escrita eu traduzisse a fala íntima para o papel. Claro que isso é o primeiro registo, mais selvagem. Falando assim parece mais uma terapia, mas há também um lado de muito trabalho literário depois desse registo de reescrita. Há uns três ou quatro anos que reescrevo o mesmo livro, procurando encontrar uma técnica e uma fórmula que dê conta daquilo que quero dizer. E eu sempre fui adepta do realismo mágico, e estou tentando fazer uma coisa que não sei se vai dar certo, que é ir para o realismo extremo. Isso faz com que eu reescreva o tempo inteiro, porque sempre deixo escapar uma imagem.

 

Parece ser muita intransigência ir ao realismo extremo…

Eu preciso sair de um lugar que já foi confortável. No fundo, o que acho é que o realismo mágico é uma realidade expandida. Tentar deixar um livro com imagens mais naturais e realistas é tentar dar um tempo mais lento para as coisas possíveis. Enfim, a minha experimentação radical é ser neutra, deixar uma linguagem que fale por ela.

 

E acha que existe a neutralidade?

Não, claro que não. Quando me refiro a uma linguagem neutra é no sentido de que ela não fale pela forma. Não estou procurando qualquer inovação linguística para contar uma estória.

 

Escrever é uma forma de conhecer as suas personagens, a si própria e ao mundo. Qual das possibilidades excita-lhe mais: conhecer o seu mundo interior ou as experimentações reais que a escrita permite?

As duas possibilidades. Sou interessada por lugares e personagens porque na escrita as vivências misturam-se.

 

Como é que no seu caso os conflitos interiores contribuem para que escreva livros?

Recentemente vi uma pesquisa interessante, falando de que a escrita expressiva, essa que se trata de um trauma e de um conflito, aumenta a imunidade, chega a ajudar a cicatrizar um corte. Não é que você faz uma escrita expressiva e começa a ter uma imunidade dos conflitos, não, essa escrita ajuda a fazer com que as coisas se resolvam de algum jeito. É uma cicatrização que acontece por palavras, colocando sentimentos e conflitos sobre a legislação da linguagem e da gramática. Então, há o conflito em si e o de colocar tudo nas palavras também.

 

Ao gerir esses conflitos, preocupa-lhe ser escritora do seu tempo?

Não sei, porque eu acho que a contemporaneidade não tem a ver com uma linha de tempo. Podemos ser contemporâneos de um autor de outro século. Então não me preocupo em estar afinada com um espírito de tempo. Isso também é uma incapacidade, porque não saberia me alinhar e nem como fazer isso.

 

É uma autora apegada à família, do ponto de vista criativo. Como explica a relação entre a sua criatividade e conforto familiar? 

É, você me fez pensar agora. Pensei que havia escrito uma estória de família só no meu primeiro livro, “Os malaquias”, mas a família, de facto, está nos meus contos e nas minhas estórias juvenis. Até este que estou escrevendo sobre artes marciais tem relação com a família, com muita orfandade que vai acontecendo com intensidade. E o meu marido é praticante de Kung Fu, e como estou casada com ele há muito tempo eu faço uso campeão da imaginação e da estória dele. Então peguei… A minha família é minha memória e a minha memória está correndo nas minhas veias.

 

Uma vez disse que iria explodir, se não avançasse com um determinado projecto de livro. Para si, a literatura é uma viagem sem regresso?

Completamente. Primeiro, porque a angústia de não terminar um livro não tem regresso. O acto de criação é viciante. Cada livro tem seus próprios problemas e começar uma obra do zero é desafiante.

 

Há uma frase sua que gosto muito: “Para concluir um livro, as contas devem estar pagas, tem que ter cúmplices dentro da sua casa”. Por que isso importa tanto?

É preciso condições materiais para a produção de uma obra, que ela não é autónoma, genial para de repente aparecer. As contas precisam estar pagas e precisamos ter cúmplices para a decisão frágil de escrever. É decisão frágil porque ninguém nos pede para escrever e não há garantias de que um livro vai terminar. Cúmplices são aquelas pessoas que estão perto e que compreendem os processos, respeitam a nossa obsessão, a nossa solidão e a nossa repetição, que a escrita, às vezes, pode durar anos. Qualquer pessoa é um escritor em princípio, o que se precisa são condições para a escrita acontecer.

 

Escreveu “As miniaturas” com recurso a vários narradores. Foi para subverter alguma coisa?

Não necessariamente. A ideia precisou de três narradores. Mas sinto-me estranhamente confortável no terceiro narrador, omnisciente, ao invés do personagem que fala de si. Preciso de um olhar mais amplo para dar conta do personagem. E isso funcionou muito nos juvenis.

 

O que mais lhe marcou nesta visita a Moçambique para participar na Feira do Livro?

A ideia de retorno. Vim a Moçambique pela primeira vez e senti-me como se tivesse estado cá antes. É como se estivesse num colo da mamãe, numa presença intuitiva e nutritiva até.

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