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Entre o Índico e Mariano Silva*

Eu vim/ para ser onda ao mesmo tempo que eu olho/ para o mar

Raquel Lanseros

 

A fotografia é a imortalidade do instante, se quisermos, a intercessão entre o efémero e a durabilidade das circunstâncias. Quem fotografa, na verdade, está a exercer o seu poder demiúrgico sobre as coisas e, sobretudo, sobre as emoções que os factos não elucidam. Então, a fotografia é a pós-revelação do que, tendo sucedido, não enxergamos na mesma proporção revelada pela imagem.

Do mesmo modo, o vigor do clique fotográfico é um veículo que nos transporta numa viagem ulterior em torno da essência… do que nos move e demove, afinal a fotografia tanto pode ser uma resposta quanto uma questão sem resposta nenhuma. Seja como for, é um lugar composto por universos (in)verosímeis, nos quais se entrelaçam histórias individuais e colectivas. Bem dito, este é o caso de Raízes de sal, quarta individual de fotografia de Mariano Silva, residente em Moçambique lá vão seis anos.

Nesta exposição constituída por 43 peças, com curadoria de Filipe Branquinho, Mariano Silva mostra-se sensível e atento às incríveis realidades a que os moçambicanos se sujeitam ao longo do litoral, concretamente, em Nacala-Porto, Ilha de Moçambique (Nampula) e Mocímboa da Praia (Cabo Delgado). De facto, aqui as fotografias cumprem a tarefa de registar o momento, e, paralelamente, vão tecendo os fios que o compõem.

Sempre alicerçado a um altruísmo explícito, eventualmente inconsciente, Mariano Silva reconstrói, nestas Raízes de sal, o quotidiano de gente abastada na sua humildade. Abastada e às vezes feliz, pois, paradoxalmente, da incerteza e dificuldade encontra no mar, esse espaço místico e poético, as respostas para a sobrevivência. Por isso, logo se vê, entre os semblantes captados pela câmara de Silva e o Índico, na invertida umbrela de tudo, está a cumplicidade de uma causa fácil de descobrir, a reciprocidade entre quem alimenta e é alimentado até ao limite das suas forças ou de geração em geração, já que aqui não morremos, transcendemos para outras vidas.

Ao mesmo tempo que o olhar de Mariano Silva se fixa nos homens, nas mulheres e nas crianças nessa tentativa de exprimir sereno o que sentiu no Norte de Moçambique, o nosso artista adiciona à realidade, que apenas ele captou, o efeito do belo que jamais alguém explicou. A beleza está na intenção ou na apresentação? Certamente, há-de estar no que cada um sente ao introduzir-se nos contextos sugeridos pelas 43 peças visualmente cheias de humanismo. Assim, como não sentir a dor dos pescadores debaixo de um sol que se adivinha abrasador? Como não sermos mais solidários com os que, à nossa imagem, se esmeram por fazer deste mundo um lugar melhor para os seus? Como não beijarmos a face dessa mulher que, de peito aberto, retira de si para o filho menor muito do pouco alimento que encontra no mar? “Há perguntas que não podem ser dirigidas às pessoas, mas à vida” (Mia Couto). A exposição Raízes de sal lembra-nos sempre disso e do valor da existência colectiva, quiçá daí apropriarmo-nos da dor que há muito tempo é esperança naqueles pescadores da sobrevivência.

Portanto, se o mar é o maior fornecedor da alegria intermitente dos homens, mulheres e crianças no litoral – olvidamos os velhos, coitados –, Raízes de sal assevera-se uma simbiose bem-intencionada entre o estético e o documental. A partir daí, as peças de Mariano Silva podem ser tudo o que quisermos: conhecimento, revisitação do lugar, choque, aproximação e catarse, o que é possível graças ao emprego de pormenores técnicos a mostrarem um Índico algo além do nosso conforto urbano.

 

*Texto de apresentação da exposição fotográfica Raízes de sal, de Mariano Silva, patente no Franco-Moçambicano até dia 2 de Julho.

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