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Entre a metáfora do self e uma escrita híbrida, surge um Jeconias Mocumbe que se quer igual a si mesmo

Escrever é um acto solitário (excêntrico, talvez): todos sabemos. O autor na sua poltrona de criação artística cria imagens, sentidos, visões e faz uma desconstrução da palavra para exorcizar fantasmas individuais que podem ou não ser do seu tempo e meio.

Jeconias Mucumbe toma este apanágio da arte de escrever e o interioriza como quem deu ouvidos aos apelos de Nicanor Parra no seu poema “cartas do poeta que dorme numa cadeira”[1] em que é possível ler:

“Jovens

Escrevam o que quiserem

No estilo que acharem melhor

Já correu sangue demais por baixo das pontes

Para continuar acreditando – acredito

Que só se pode seguir um caminho:

Em poesia tudo é permitido.”

 

É esta apropriação de “tudo” que Jeconias Mocumbe faz na sua nova proposta literária intitulada “Calvário e a cruz _ antologia híbrida”. Diga-se, contudo, que a leitura que Heribelto Yépez faz do contributo de Parra na literatura chilena (e não só) segundo a qual “através deste poeta, o sarrafo para algo ser considerado poesia ficou mais baixo” não se aplica na escrita de Mocumbe porque há neste último uma exploração da imagem até a exaustão e uma metaforização algo surreal que voltaremos a fazer menção nas próximas linhas.

Por ora, saibamos que Jeconias Mocumbe, pseudónimo de Edilson Sostino Mocumbe, nasce em Xai-Xai, província de Gaza, e reside em Inhambane Céu. É co-mentor do Projecto Tindzila, um conjunto de jovens oriundos de diversas zonas do país, com sede em Inharrime (Inhambane) cujo principal objectivo é unir fazedores e/ou entusiastas das artes (com maior destaque para a literatura) para a promoção da cultura de leitura, do livro e dos seus fazedores. Na qualidade de membro deste agrupamento, Mocumbe exerce funções de Secretário-geral e administra o blog com a mesma denominação. Formou-se em Ciências Policiais pela ACIPOL (Academia de Ciências Policiais em Moçambique). É co-editor e revisor do Jornal Missão do Agente-Inhambane. Estreou-se em livro numa co-autoria com Joel Caetano no livro “Espiritualidade Poética” publicado pela Editora Kulera, em 2020.

Dividido em três cadernos, a saber: (1) o humano sob a máscara, (2) caderno de premonições e (3) geografia da folha híbrida,“Calvário e a cruz _ antologia híbrida” apresenta-se como um exercício de exploração dos limites da metáfora, havendo, nesse processo, momentos em que ela própria (a metáfora) são lhe apresentados os seus vícios enquanto forma de codificação discursiva. De facto: se por um lado existem livros que tomam o leitor como imbecil a ponto de fornecerem informação desnecessária e que se resvala pela prolixidez, por outro, livros há que ou sobrevalorizam o leitor ou o seu autor não liga a mínima para uma possibilidade de haver alguma interatividade entre o leitor e a obra, correndo assim o risco de se tornarem incompreensíveis.

Uma parte destas reticências pode observada em:

Escrevo-te. Papá. Não como escrevi à mamã.

Escrevo-te na sombra dum arbusto qualquer. Com o rabo dolorido. Acho que padeço de dores de bunda. En­trincheirado. E cheirando a rato. O bronze do sol a pe­sar sobre o bucho do ombro. Estou nesta dimensão da carnificina húmida e é fétida que zumbi como a urina de um alfinete. (p.13)

 

De uma forma ou de outra, Mocumbe dá sinais do seu engajamento com a estética e anseios da geração que começa a publicar depois do ano 2000 por pretender experimentar outras texturas e outras cores que dão ao leitor a possibilidade de fazer uma leitura mais universal e atemporal daquilo que se escreve em Moçambique. Sobre este aspecto, refira-se que não é totalmente novo no cenário literário de Moçambique porque poetas como Luís Carlos Patraquim, Rui Knopfli, Glória de Sannt’Anna, por exemplo, já se tinham posicionado neste sentido, havendo, porém, algum sentimento de descompasso ante os anseios literários da altura, o que chega a ser exorcizado em poemas tal como Knopfli o fez no seu “cântico negro”, no qual lê-se:

“Não submeto a dureza agreste do que escrevo

Ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.

De alguns. De poucos. De um só se necessário for.

Tenho esperança porém; um dia compreendereis

o significado profundo da minha originalidade”

Ao seu jeito e modo, Mocumbe, como se estivesse nutrido do mesmo sentimento de descompasso, diz:

E ninguém entende este sotaque de poemas. Que fede. Um horror para os críticos da minha época. Estou a ser adiado nos convéni­os de lançamentos de novos génios. E não fico triste. É para o futuro que escrevo. (p: 12)

 

Indiscutivelmente, inscreve-se aqui um intertexto que mesmo não sendo intencional aproxima dois textos e dois poetas de gerações distantes (uma da outra). Diferente deste caso (quiçá) involuntário, nota-se em “Calvário e a cruz _ antologia híbrida” uma alusão aos contemporâneos de Mocumbe com que deve partilhar espaços, tempos e, talvez, vivências: é o caso de David Bene, Oscar Fanheiro, João Baptista Caetano Gomes e Hirondina Joshua. Para esta última, cabe dizer que a alusão ocorre através da menção ao seu livro “os ângulos da casa” que embora tenha sido de forma subtil, o facto de a construção sintáctica que intitula o livro estar patente em dois textos (o da página 25 e o da 42, respectivamente) já é um indicador assintomático de um diálogo com esta jovem poeta. Ainda no texto da página 42, notabiliza-se a premissa segundo a qual o intertexto não só ocorre entre textos literários: a referência que se faz do filme “Cinquenta tons de cinza” de Sam Taylor-Johnson e ao saxofonista e flautista Kenny Garret são prova disso. Mais adiante, na página 49, revela-se a evidência de que o autor, em algum momento, lera o texto autopsicografia de Fernando Pessoa ao parodiar a célebre frase “o poeta é um fingidor” através do acréscimo do adjectivo “inútil” e passa-se a ler “o poeta é inútil fingidor”.

Portanto, nesta escrita híbrida que se inscreve(u) _ no meu exercício de leitura _ numa metaforização do self mocumbiano nota-se também um questionamento existencialista que desdiz o maior argumento de todas as religiões: Deus e vida após a morte, como se pode ler em:

Agora rezo a ela como um Deus que não con­heço, não apalpo, não o sinto. Dogmático. E terrorista. No outro plano. Nem inferno, nem paraíso me esperam. Alguém contra? Levante a mão quem já esteve lá. Di­ga-me como é que é a máquina opressora por lá. Pois do pouco que sei, no além, existe apenas o indizível. (p: 30)

 

É, no entanto, curioso e revelador da prova de fé que devemos votar à frase popular que diz “ainda que seja questionado, Deus é chamado em horas de aflição”, o facto de no texto da página 30 apresentar-se-nos um sujeito poético questionador e que duvida da existência divina e, em contrapartida, ler-se nos textos das páginas 62 e 64, respectivamente, os seguintes versos:

meu Deus, se te escrevo

o amuo se inscreve na sombra (p. 62)

 

meu Deus! Tenho que aniquilar

o poeta em mim primeiro. (p: 64)

 

A despeito deste sujeito poético com um lirismo votado ao questionamento, à expurgação da alma, ao retrato dos próprios devaneios poéticos e não só, denota-se neste livro que na alma do poeta cabe o amor e a contemplação do esplendor que a natureza e a vida dão. Vejamos este aspecto em:

Em todas manhãs, mamã, que lhe cai­ba uma teia de euforia para adornar os teus seios de quietude intranquila. _ Que seja. Também amo a cor-de-rosa que me ensin­aste a contemplar no perfume das tuas vest­es. Amo o vermelho das rosas que nunca as tiveste. E é por esses cardumes que afio a es­perança do país. (p: 9)

 

E nada é tão aterrorizante que saber que a lua hoje não desce a cascata. (p:15)

 

A estrela por vezes galga o mar. A mulher às vezes é ap­enas uma sombra que se esconde no próprio terror. (p:16)

 

Embora Mocumbe faça um exercício metapoético no já aludido texto da página 12 em que olha para os “outros” de soslaio como quem “não está alinhado”, há neste seu “Calvário e a cruz _ antologia híbrida” uma característica que o aproxima profundamente desses “outros” e do que actualmente se escreve e se publica em Moçambique que é a escrita aforística. Vejamos:

 “o zíper da calça esconde segredos de origem” (p: 23)

“a nu­vem que chora torna o piso dos objectivos mais mole.” (p: 23)

“o passado é a trilha sonora do presente” (p: 25)

“a vida é assim, uma vez a outra, tens uma saudade oculta nos ombros” (p:67)

“o que inscreve o tempo na parede não passa de um arrasto de silêncios” (p: 97)

 

Em linhas gerais, de si para si e de si para os seus, Mocumbe dá asas à imaginação para descrever a profundidade do sentimento, a ligeireza da plenitude da vida e as oscilações da alma que não cabem no verso e se promiscuem com a prosa. Afinal, já o disse Baudelaire na sua carta ao Arsène Houssaye no livro “Pequenos Poemas em Prosa”:

“qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica em contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?”

Este exercício que se materializa neste “Calvário e a cruz _ antologia híbrida” de Jeconias Mocumbe é bastante útil para os poetas do ponto de vista de expurgação dos seus próprios devaneios e, por outro lado, para um leitor que se encanta com uma leitura pré-textual porque esta metaforização do self, ainda que seja involuntária, dá sinais de outra promiscuidade, mas desta vez, entre o homem e o poeta.

[1] Tradução de Joana Barossi e Cide Piquet

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