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Entre a boémia e a irreverência, o pico da criatividade

A primeira revista literária de Moçambique independente, “Charrua” (1984), foi fundada por jovens boémios e irreverentes da cabeça aos pés. A “Charrua” não foi criada para ser continuidade, longe disso, o objectivo da revista sempre foi romper com uma literatura ideologicamente comprometida, e, com isso, apegar-se aos elementos estéticos. Ungulani Ba Ka Khosa impôs-se desde o princípio como um dos timoneiros do movimento, com a acutilância e rebeldia que o caracterizam. A forma crítica como Ba Ka Khosa olhava para a realidade circundante, fez dele um “barril de pólvora”, sem papas na língua. Talvez, como castigo, quase a perderia (a língua).

Com efeito, entre a boémia e a irreverência, o escritor nunca se desviou. Antes pelo contrário, a criatividade sempre esteve lá, presente, intacta e autêntica. É neste contexto, diga-se, de muita cumplicidade literária, que Ungulani aparece com um manuscrito que viria a marcar a História Literária do país e do continente: “Ualalapi”, escrito no 10º andar de um prédio do Alto Maé, onde o escritor viveu. Quando julgou que a estória estava acabada, entre poucos amigos, Ungulani pediu que Teresa Manjate e Armando Artur lessem o livro. Manjate foi uma das revisoras da obra que Ungulani pretendeu, no princípio, publicar o primeiro capítulo (“A morte de Mputa”), na revista Tempo. Albino Magaia sugeriu que não o fizesse. E o escritor ouviu o conselho do “macaco velho”. Conteve a ansiedade até poder publicar o livro em 1987.

“Ualalapi” foi a grande revelação de Ungulani, por isso não foi de admirar que esta obra fosse consagrada Prémio de Ficção Moçambicana, em 1990, e, mais tarde, tenha sido considerada um dos melhores romances africanos do séc. XX.

Com as mesmas amizades, entre a cerveja e a pena, mesmo depois de a revista “Charrua” ter sido deixada para trás, Ba Ka Khosa lança, em 90, a colectânea de contos “Orgia dos loucos”. Nessa altura, Ungulani já havia gerado todos os seus filhos. Já nem se devia duvidar, estava-se diante de um grande autor. Por isso, o Instituto Nacional do Cinema, agora Instituto Nacional de Áudio Visual e Cinema (INAC), convidou Ungulani para fazer guiões para filmes/ documentários. Aliás, alguns textos do escritor foram adaptados para o cinema. O considerado “barril de pólvora” por Matias Xavier, amigo que o levou ao cinema, chegou a ser Adjunto-Director do INAC. Nada que o retirou a frontalidade com que encara a vida, mas que quase lhe faltou a 16 de Outubro de 1998. Nesta data Ungulani Ba Ka Khosa perde sua primeira esposa, Judite Mandua, a que lhe deu quatro dos cinco filhos que tem, com quem se casou oficialmente em 1980.

20 anos depois de conhecer em Niassa aquela professora de Biologia, Ungulani encara momentos difíceis. A morte que tanto vitima personagens dos seus livros abraçou o autor com fel, sem piedade. Ba Ka Khosa andou triste. Deprimido. Mas não fracassou, como nos livros, vulgarizou a morte e lutou até a exaustão. E a escrita permitiu-lhe continuar a proporcionar sonhos aos seus leitores, pelo que no ano seguinte lança “Histórias de amor e espanto”.

Viúvo, Ungulani continua a investir na educação dos filhos, de forma inteligente e convincente.  Por essa razão, todos guardam lembranças incríveis do pai. Misete, a Primeira, por exemplo, lembra-se que Ungulani, para motivar-lhes a ler, voltava a casa sempre com o jornal Notícias. Na altura, persuadia os filhos a ler as matérias enquanto ele fingia fazer outra coisa. Depois, cada um resumia a editoria que lhe cabia. Uns calhavam sempre com Política e outros com Desporto ou Cultura. Assim o escritor influenciou todos os filhos, com a excepção da Damboia, nome roubado de “Ualalapi”, a seguirem o ramo das letras.

Mas a esperteza de Ungulani nem sempre foi percebida pelos filhos quando adulto. O terceiro filho do escritor, ainda na juventude, sacou-lhe a malandrice. Ungulani tinha uma mania de esconder dinheiro nos livros. Tudo na vida dele resume-se ao livro. Na altura em que vivia no Alto Maé, quando voltasse a casa com o juízo amais, lá ia ele fazer de um conjunto de papel cofre. Porque dormia deveras embriagado, acordava dia seguinte sem se lembrar de onde havia guardado o dinheiro. A missão de vasculhar o dinheiro sobrava para Segone, quem era convencido a ir revirar a prateleira de livros. Como se de nada soubesse, o menino lá ia encontrar o valor, mas, porque a esperteza parece ser daquelas coisas hereditárias, Segone entregava ao pai apenas parte do valor e todos ficavam felizes para sempre.

Ora, Ba Ka Khosa é um pai liberal, que respeita as escolhas dos filhos. Para ele, o que mais importa é “tudo na cabeça e nada no bolso”. Ao mesmo tempo que, quando criança, tirava o sono dos filhos quando estivesse a escrever na sua máquina, que na altura computadores eram escassos, Ungulani sempre soube compensar-lhes qualquer incómodo com lições de vida. Os outros filhos do autor, Esaú e Éric, não se esquecem de terem escutado aquela voz “rouca” dizer: “constrói-te. E uma das formas de conseguires tal proeza é com leituras e com a busca do conhecimento.” Assim o escritor formou todos os filhos no ensino superior.

Uma das grandes alegrias de Ungulani são os netos. Tem 10, o suficiente para o antigo jogador de basquetebol, agora reformado por não ter como aguentar o formato arredondado da sua estrutura, formar duas equipas de bola ao cesto. Quando falam de Ungulani, os netinhos (Wangari, Alvin e Amiel) são unânimes em afirmar que gostam do avô Chico porque ele ajuda-lhes em muitas actividades, oferece livros e, claro, empresta o tablet para que possam divertirem-se nos videojogos.

Esta é a outra face de um homem com os pés no chão que Salomé, os cinco filhos e dez netos quase perderam, em 2007, quase numa “morte anunciada”.

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