O País – A verdade como notícia

Em Tomar ninguém morre assim…

Três cavalos no estábulo. Dois castanhos e um branco, cada um preso no seu quarto. Fora do estábulo muitas árvores e um céu azul que a pouco e pouco vai sendo tomado pelos mistérios do anoitecer. A Cristiana, namorada do David, vai me apresentando os meninos que estão presos no estábulo enquanto o pai os vai alimentando. Ela tem uma enorme paixão por cavalos, penso enquanto parado na entrada do estábulo vejo os olhos dela a despejarem alegria como uma adolescente quando fala do seu primeiro amor para as amigas.

Um cão branco vem a correr em direcção ao estábulo e os meus fantasmas acordam. Faz um percurso rápido em poucos segundos. Ele vem mesmo em direcção ao lugar onde estamos, penso assustado. O medo é mesmo o petróleo certo para incendiar o sossego de qualquer um. Naquele momento não me aparecia outra coisa à cabeça, apenas os dentes afiados daquele cão que corria agitado para onde eu estava. A Cristiana continua a falar, mas não consigo ouvir mais nada senão os passos do cão que se aproxima. De repente a garrafa que trago na mão cai e quase toda cerveja deita-se no chão da entrada do estábulo. O pai da Cristiana para mim, enquanto o David ri-se do meu medo,

assim vais lá mesmo!

ele não te faz mal, não te preocupes…

E de verdade ele não me faz mal, mas a agitação na qual vinha em minha direcção e aqueles dentes fora não diziam nada disso. Tudo acontece em Tomar e enquanto pela janela do meu quarto entra o latido de um cão não consigo parar de pensar que estou apaixonado. Não falo de uma dessas paixõezinhas fingidas que não passam de um pretexto para chegar ao momento em que as calcinhas vão abaixo e a imagem de um corpo nu à disposição da nossa volúpia nos faz perder a cabeça. Isto é mesmo uma paixão às direitas. É certo que estou apaixonado e enquanto a madrugada continuar sendo como esta folha branca onde cabem milhões de mundos não vejo as cordas que me prendem à esta tontice a se desatarem.

Os relógios da cidade deviam estar a marcar duas e pouco quando pela primeira vez entrei em Tomar. Pela janela do carro entravam o azul radiante que o céu das cidades portuguesas despeja no Verão, o verde do jardim do Mouchão e o cisne branco que mergulhava a cabeça e fazia amor com as águas do rio Nabão que dividem a cidade em duas margens. Por cima da música que tocava no carro, a minha voz excitada dançando para o David antes de ele sorrir

Tomar é mesmo uma cidade linda!

Há tempos que já me tinham falado do Convento de Cristo, cuja construção começou no século XII, das historietas sobre os templários, do facto de se chamar pato-bravo a quem seja de Tomar, mas nunca me tinham dito que

Tomar é mesmo uma cidade linda!

Nesta madrugada estou como um homem que está deitado no colo da sua esposa, mas não para de pensar na amante. Lisboa que me perdoe, mas Tomar não me sai da cabeça. Pequena, simples, mas cheia de cor e muito encanto. Isto faz-me tão feliz. O suicida de “Explicação dos Pássaros” de António Lobo Antunes fez muito bem em morrer longe de Tomar, em Tomar ninguém morre assim.

Enquanto passeávamos no Mouchão, de repente o Higino, sem nenhuma dúvida para provocar o David

então Miguel, gostas mais de Vila de Rei ou de Tomar? E eu com a mão a varrer o cabelo que há quase um ano não corto e um sorriso matreiro a saltar-me pela boca, tentando fugir da parede na qual o Higino pretendia me encostar,

não queiras me meter em problemas, Higino. Mas Tomar é mesmo linda e nada disto seria lindo sem tu e o David a empurrarem-me para beijá-la.

É certo que estou apaixonado e que foi mesmo um exagero em demasia ligar-te à esta hora da noite para estar neste paleio tão gordo de pieguices. Mas também é certo que nós os dois sabemos mais que ninguém que quando se está verdadeiramente apaixonado não é a cabeça que comanda.

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