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…É tudo que temos

Velho Tembe é guarda duma loja na baixa da cidade. Segura um chamboco na mão esquerda, a direita usa-a para abrir a porta aos chefes e na cintura um par de algemas espreita. É um velho que se divide durante todo dia; dorme metade do sono em casa e a outra no serviço. Controla a massa de gente na loja, em pé, enquanto de tempo em tempo gerencia a sua banquinha de pastilhas, mentas e cigarros.

Ao meio-dia lava carros de chefes enquanto à distância os olhos vigiam a porta da loja. Rola os círculos das moedas que recebe para o interior das peúgas. Com seu balde na mão faz uma diagonal na estrada. Puxa uma cadeira e senta-se. Senta-se sempre que os chefes fecham as portas da loja. Estica o auricular para o ouvido e faz-se adepto duma partida de futebol. Murmura a cada falha e assiste eufórico ao jogo pelos olhos do locutor.

Termina o jogo. Começa uma partida de cartas com um colega seu. Riem-se enquanto baralham o sono e a noite nas cartas. O escuro torna-se gigante nas avenidas. Os dois matam a saudade das suas damas iniciando uma partida interminável de dama. Trocam cigarro em cada partida e espionam o sono de cada um.

O colega do velho Tembe cai de sono no peito do tabuleiro da dama e põe um ponto final à partida. Tembe dobra-se e obriga a camisola a cobrir os pés. O gorro com duas janelas para os olhos e uma porta para o nariz cobre-lhe o rosto inteiro. Adormece profundamente na cadeira. Um conjunto de cães que alarga a vagina duma cadela acordam-no constantemente. Lembra-se que os cães e ele têm a mesma função, logo arranca o seu motor de roncos e saliva dentro do seu gorro preto.

Os noivos das algemas chegam e amarram-no enquanto dorme. Espancam-no até a morte. Morre dentro do sono. Violam a loja e limpam todas prateleiras e voam na asa do seu Toyota.

Dia seguinte o velho Tembe é encontrado morto. Ensopado de saliva, sangue, sono e morte. É desamarrado da cadeira e o corpo enrolado num pano que servia de cortina na monstra da loja. O corpo do velho Tembe é atirado numa camioneta da loja e o motorista carrega para o lado do corpo, 5 quilogramas de arroz, 3 litros de óleo, duas barras de sabão e 9 quilogramas de sal.

– “Diga a família que é tudo que temos” – diz o gerente da loja.

 

 

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