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E se o Barrigudo for uma colectânea de crónicas?

É uma sociedade de loucura aquela que pretende

sobreviver no regime do ódio e da represália

João Salva-Rey

Mais de 20 textos compõem O barrigudo e outros contos, de Hélder Muteia. Neste livro, o escritor revela que contempla na literatura um veículo que deve transportar em si as vicissitudes de uma sociedade. Por essa razão, é comum encontrar ao longo da obra uma tendência moralista típica das histórias contadas à volta da fogueira ou de geração em geração por povos que ainda encontram na oralidade um lugar privilegiado para transmissão de saberes e de conhecimento. Este Barrigudo constrói-se a partir das sensibilidades, emoções e dos incómodos que o autor foi colhendo ao longo do seu percurso literário e, principalmente, de vida. Desde o conto inaugural até ao último texto, Muteia sedimenta que a arte de pensar é concomitante a de (re)criar universos acutilantes, nos quais, de facto, as derrotas das personagens são reflexos de um mundo a reinventar.

Dá a entender que este O barrigudo e outros contos – que não é uma colectânea de histórias burlescas, como inicialmente julgamos, embora o burlesco manifeste-se com êxito em determinados momentos, veja, por exemplo, o texto “A capoeira” ou “O julgamento do pato” – é lançado para provocar nos leitores incómodos que os leve a questionar os contextos em seu redor e, com isso, quiçá, tornarem-se pessoas apreciáveis. Nesse sentido, Hélder Muteia apresenta muito enunciados susceptíveis de causar resignação, enfado e revolta. Por exemplo, o primeiro conto do livro, em memória das vítimas dos bombardeamentos na Matola, em 1983, pelo regime do Apartheid, foi escrito para devolver à realidade dos povos o que nela deve ser extinta: a intolerância social e, logo se vê, a morte gratuita. Para dar carga à gravidade daí consequente, Muteia coloca no centro da história um menino que, como “Mabata-bata”, deixa-se explodir por uma bomba. Esta história trágica, claramente, é contemplada no livro para mostrar até onde vai a crueldade dos homens. O mesmo acontece com um outro texto, “O homem feio”, feito de discriminação e dessa disposição em retirar dos homens ou das personagens antropomórficas as qualidades urgentes em detrimento das leviandades.

Ao pretender pôr os leitores a raciocinar com critério sobre Moçambique e no que cá acontece nas ruas, Muteia dramatiza o cenário em que crianças, ao invés de estudar, colocam-se na condição de vendedeiras para conseguirem sustento. Esse é o caso de “A menina das pedras”. E esse carácter áspero da realidade também reflecte-se em “O homem dos sonhos gigantescos” – no qual, na verdade, o grande sonho é ter-se um prato de comida à mesa – ou em “Se os homens fossem bons” – no qual um personagem é condenado por roubar dinheiro que lhe garante o pão para matar a fome.

Como se pode notar, este é um livro altruísta, comprometido com a sensatez e em contribuir para uma boa cidadania, sem ódio e sem represália. Ainda assim, estamos convencidos de que este é essencialmente um livro de crónicas do que contos. O conto aqui manifesta-se de forma acidental e em raras circunstâncias. A crónica, sim, está lá e cumpre o seu papel, de forma concisa, oscilando, como se exige, entre o jornalístico e o literário. Este O barrigudo é mais isso que outra coisa. Aliás, se assumirmos que o Barrigudo é uma colectânea de crónicas, até é uma proposta literária apreciável. A ser colectânea de contos, há muito por que questionar.

Título: O barrigudo e outros contos

Autor: Hélder Muteia

Editora: Alcance

Classificação: 12

 

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