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É preciso plantar nas estrelas e sobre o mar

Marcelino dos Santos redigiu, de Portugal, onde se encontrava a estudar desde 1947, uma carta que seria publicada no prestigiadíssimo O Brado Africano, onde anuncia, com irredimível convicção, a sua combatividade, aos 20 anos. Isto nos finais dos anos 40. Permanecerá quatro intensos anos na antiga capital do Império. Estuda e conspira, milita clandestinamente. Envolvido numa organização dos estudantes das colónias, sairá para Paris, em 1951, onde prossegue a sua actividade política com premência, a par dos seus estudos. Abandonado o curso de engenharia, estuda ciências económicas e sociologia. Reúne, no seu quarto, a 100 metros da Sorbonne, futuros lutadores pela liberdade. Intentava fazer um movimento anti-colonial, que precede a formação da frente – no caso de Moçambique – que irá concretizar o objectivo da luta. Participa em importantes encontros internacionais, como os festivais da juventude. Em 1959 é expulso de França. Razões? A sua intensíssima actividade política. Bélgica e Inglaterra inscrevem-se nos territórios de exílio. Em 1961 (18 e 19 de Abril) participa na fundação da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas). O PAIGC, que nascera em 1956, representa a Guiné-Bissau e Cabo Verde, o MPLA (igualmente fundado em 1956) representa Angola, o MLSTP (nasceria em 1960) participa em nome de S. Tomé e Príncipe, e a UDENAMO (também de 1960, que será substituída pela ulterior FRELIMO na organização) defende o nome de Moçambique. Marcelino dos Santos é eleito secretário-geral da CONCP e secretário das Relações Exteriores da UDENAMO. Seria, em 1962, fundador da FRELIMO, da qual chegará a ser vice-presidente.

Em Setembro de 1990, quarenta anos depois daquela imprescritível carta, quis saber, numa longa entrevista que lhe fiz em dois dias, no seu gabinete de Presidente da Assembleia Popular, de onde herdara essa costela nacionalista.

Marcelino dos Santos: «O porquê de arvorar, de brandir essas ideias? É preciso considerar a realidade vivida: vários aspectos, seguramente. Mas o primeiro é que, quando eu deixo Maputo, nos anos anteriores, os mais velhos falavam sempre da “causa”, “a causa africana”. Muitas vezes só diziam: “a causa”. Alguns, na altura, com a idade do meu pai. Quando souberam que ia partir, se me encontrassem na rua diziam: “Vem cá, ó miúdo. Tu vais para Lisboa, não é?” “Sim”. “Então, vai lá e volta formado para vires defender a nossa causa”.»

O Brado Africano titula, numa breve e ilustrada coluna, “Dr. Marcelino dos Santos: Por notícias recebidas de Paris, soube-se, nesta cidade, que um moçambicano acaba de concluir a sua formatura em Ciências Económicas e Sociologia na Universidade de Sorbonne. Trata-se de Marcelino dos Santos, ex-aluno da Escola Técnica Sá da Bandeira, que cedo deixou a sua terra a caminho da Mãe-Pátria, seguindo depois para Paris, onde prosseguiu os seus estudos. Formou-se agora em Ciências Económicas e Sociologia, concretizando o seu ambicionado sonho. Marcelino dos Santos, nosso distinto colaborador, a quem sinceramente felicitamos, é filho do sr. Firmino dos Santos, ex-administrador deste jornal, e de sua esposa sra. D. Teresa Sabina dos Santos, a quem endereçamos os nossos parabéns.”

Como se atesta acima, Marcelino dos Santos foi e formou-se. A despeito, não voltou de imediato. A “causa” reteve-o perto de três décadas. Quando voltou trazia consigo “a nova árvore/ da Independência Nacional”, como escreveu num dos seus mais belos e célebres poemas – “É preciso plantar”.

Marcelino dos Santos: “É preciso plantar/ mamã/ é preciso plantar// é preciso plantar/ nas estrelas/ e sobre o mar// nos teus pés nus/ e pelos caminhos// é preciso plantar// nas esperanças proibidas/ e sobre as nossas mãos abertas// na noite presente/ e no futuro a criar/ por toda a parte/ mamã// é preciso plantar// a razão/ dos corpos destruídos/ e da terra ensanguentada/ da voz que agoniza/ e do couro de braços que se erguem// por toda a parte/ por toda a parte/ por toda a parte// por toda a parte/ é preciso plantar/ a certeza/ do amanhã feliz/ nas carícias do teu coração/ onde os olhos de cada menino/ renovam a esperança// sim mamã/ é preciso/ é preciso plantar// pelos caminhos da liberdade// a nova árvore/ da Independência Nacional”.

A mãe Teresa viu-o plantar essa árvore. Aliás, a poesia do filho elucida o amor incorruptível pela pátria através da figura da mãe. Não só no poema que citei, mas num conjunto significativo de textos. A mãe é a metáfora dessa terra que é preciso libertar e pela qual se luta. O pai, antigo operário dos Caminhos de Ferro, não o viu chegar, na condição de herói e mito da velha “causa”. Morreu em 1965 aos 67 anos. Para além dos Caminhos de Ferro, onde trabalhara, fora da direcção do jornal fundado por João Albasini e onde avultaram nomes como os de Estácio Dias, pai de João Dias, escritor prematuramente desaparecido.

Marcelino não acompanha aqui a florescente actividade literária e a consagração de nomes como José Craveirinha (1922-2003), Noémia de Sousa (1926-2002), Rui Knopfli (1932-1997), Rui Nogar (1932-1993) ou Luís Bernardo Honwana (1942). Noémia segue o caminho do exílio e vai para Lisboa em 1951. Quando o cerco aperta em Portugal, salta a fronteira, com a filha às costas, em 1964. Marcelino dos Santos consegue-lhe um emprego no Consulado de Marrocos em Paris. Noémia, cujo nome se tornou, por alguma razão estranha, disjuntivo neste percurso, está na primeira linha da luta anticolonial e participa desta geração de libertários. Não obstante, ela falou-me sempre com ênfase e empatia dos seus companheiros: o guineense Amílcar Cabral (1924-1973); os angolanos Agostinho Neto (1922-1979), Lúcio Lara (1929-2016), Viriato da Cruz (1928-1973) ou Mário Pinto de Andrade (1928-1990); o moçambicano Marcelino dos Santos (1929). Foi com a Noémia que eu obtive o retrato humano e apaixonante de Marcelino, longe da retórica dissimulada da revolução.

Eduardo Mondlane, impedido de continuar os seus estudos na Universidade de Witswatersand, na África do Sul, permanece um ano em Lisboa, no início da década de 50, enquanto aguarda a oportunidade para ir para os Estados Unidos. Está também em Lisboa Fernando Vaz, médico, envolvido, como muitos dos estudantes, na Casa dos Estudantes do império. Não se estabelece ainda entre eles uma forte ligação: Mondlane vai para os Estados Unidos e Marcelino para Paris. Terá, na capital francesa, uma frenética actividade política. Participa no Festival Mundial da Juventude em Bucareste, em 1953, com Agostinho Neto, Guilherme Espírito Santo, de S. Tomé e Príncipe, e Vasco Cabral, da Guiné-Bissau. Foram para lá enquadrados no MUD-Juvenil (Movimento de Unidade Democrática, de oposição ao regime de Salazar), mas apresentam-se como representantes de cada um dos seus países, com tabuletas indicando Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe. Mais tarde irão representar os seus países nos festivais de Varsóvia (1955) e Moscovo (1957).

Marcelino dos Santos começa por estudar em Grenoble, mas muda-se para Paris. Em Grenoble leram Franz Fanon (1925-1961). O seu Pele Negra, Máscaras Brancas surgiu em 1952 e esteve na origem de debates. O Orfeu Negro, de Jean-Paul Sartre, fora publicado em 1948. A questão da raça inflamava os contraditórios. Discutiram estes e outros livros. Organizaram palestras denunciando aquilo que pareciam ser aspectos menos positivos na obra de Fanon. Isto ainda em Grenoble, onde estava com Aquino de Bragança (1924-1986). Partem para Paris em 1953. Aquino de Bragança acompanha-o. Mário Pinto de Andrade transfere-se de Lisboa para Paris em 54 e desenvolve sobretudo uma importante actividade cultural, da qual avulta a sua colaboração na Presence Africaine. O Congresso dos Homens Negros é um dos eventos realizados pela Presence Africaine.

Paris é também uma capital cultural indeclinável e Marcelino convive com grandes figuras do mundo cultural africano ou com o ideário próximo dele: Aimé Cesaire (1913-2008, poeta, dramaturgo, ensaísta e político, ligado ao movimento surrealista e fundador da Negritude, nascido na Martinica); Alioune Diop (1910-1980, senegalês, escritor e editor, fundador da Presence Africaine, talvez a maior figura intelectual negra da primeira metade do século XX, o primeiro preto editor em França); Léon-Gontran Damas (1912-1978, escritor e político francês, nascido na Guiana francesa); David Diop (1927-1960, poeta senegalês, morreu cedo, um dos poetas promissores de língua francesa, ligado à negritude, de quem Marcelino foi muito próximo); René Depestre (poeta do Haiti, tem hoje 91 anos); Edouard Glissant (1928-2011, poeta e romancista francês, oriundo da Martinica); entre outros.

Conviviam, embora o olhassem com alguma desconfiança, com Leopold Senghor (1906-2001, escritor e político, foi presidente do Senegal entre 1960 e 80, e foi, com Aimé Cesaire, um dos ideólogos da Negritude). Conviveu ainda com W. E.B. Du Bois (1868-1963), historiador, sociólogo, nascido nos EUA e autor e figura célebre. Também conviveu com Jacques Rabemananjara (1913-2005), político e intelectual malgaxe. Ou com Jean Price-Mars (1876-1969), do Haiti, escritor, médico e diplomata.

Mário Pinto de Andrade contou-me certa ocasião que Marcelino dos Santos cedeu parte dos direitos autorais de um livro seu publicado na antiga União Soviética que permitiu a edição do Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Há quase trinta anos confirmei com o próprio Marcelino dos Santos esta informação. O Caderno foi importante iniciativa editorial de Mário Pinto de Andrade e de Francisco José Tenreiro (1921-1963, poeta santomense, autor de Ilha de Nome Santo, desaparecido prematuramente). Este caderno é dedicado a Nicolás Guillén, poeta cubano. Tem poemas de Noémia de Sousa.

Marcelino dos Santos: “Verde carmin azul e violeta/ e nós / marchando no planalto.” Estes belos versos foram escritos em 1968 durante a marcha pela liberdade: “e sempre nos nossos olhos/ as cores suaves e doces/ de verde carmin azul e violeta/ na paisagem quente/ da terra livre de Moçambique”. O poema “Nampiali” é um dos mais belos textos deste poeta-guerrilheiro. Em 1953, escrevera, ainda em Paris, “Canto do amor natural”, que será muitos anos depois o título do seu livro em Moçambique, em 1987. “No lento balancear/ Das palmeiras/ Torcendo-se em movimentos melancólicos/ eu canto-te o meu amor.”

Marcelino dos Santos: “Mãe negra/ Embala o seu filho/ E na sua cabeça negra/ Coberta de cabelos negros/ Ela guarda sonhos maravilhosos”. A figura da mãe, no sentido denotativo, mas também a metáfora: a terra. O sonho intransigente da liberdade. A luta, a razão da luta. Pátria, Moçambique: “fonte do meu querer/ e razão do meu viver”, escreverá em “À minha Pátria”. “Terra mãe” será título de um dos seus poemas.

Poeta da revolução, combate, através das palavras, de seus versos, alguns, muitos, panfletários, como assumirá, no texto “Para uma moral”, de 1967. Poema-panfleto, poema-comunicado, documento, didáctico e moralista. Texto destinado a jovens que preferiam seguir seus estudos em vez de empregar os seus conhecimentos ao serviço do povo nas zonas libertadas: “Continuar ou não a estudar/ não é problema teu nem meu// é nosso”. “Somos soldados da FRELIMO”, dirá no “Primeiro panfleto”. No “Segundo panfleto”: “O importante não é o que EU quero/ o que Tu queres// mas o que NÓS queremos/ A Revolução é assim”.

A minha geração, quando, nos anos 80, intentou um caminho, fez o percurso literário adverso. Não tenho pruridos em considerar e relevar a importância histórica e, talvez sociológica, daquela produção literária, designada de combate, mas tinha e tenho reservas de cariz estético. Discuti muito com o Rui Nogar a este respeito. Discutimos fraternalmente. Mas o Rui tinha o condão de acreditar que a causa era de ordem suprema na literatura e, mesmo assim, não enjeitar outras possibilidades. Foi o Nogar, aliás, que acolheu a nossa geração, que era uma geração rebelde, que era uma geração crítica, na Associação dos Escritores. Foi ele quem lhe criou espaço para a afirmação. Não é por acaso que a nossa geração se afirma com uma poesia lírica contraditando esta – a do Rui Nogar ou Marcelino dos Santos, designadamente.

Marcelino dos Santos, que também foi Kalungano ou Lilinho Micaia, publicou o seu único livro em Moçambique há 30 anos – Canto do Amor Natural – pela Associação dos Escritores. Foi, por assim dizer, um acontecimento literário. A densidade histórica da sua poesia merecia um novo acolhimento e enquadramento editorial. Mas vivemos num país onde nem sequer os seus heróis – Marcelino dos Santos é indubitavelmente um deles – merecem a atenção e o cuidado dos poderes públicos na área da cultura para que a sua obra seja reenviada para o trânsito dos leitores, lida, estudada e reconhecida. O poeta-revolucionário merece essa láurea em vida. A sua produção recente, alguma dela que integrou as antologias que organizei ou co-organizei, ou outras, devia ser resgatada. Fica o repto para quem de direito. Marcelino dos Santos é um dos poetas mais importantes da chamada poesia de combate e a sua poesia confunde-se não só com a sua vida mas com parte relevante da nossa história. Por outro lado, não é possível discernir sobre a sua poesia sem pensar e entender o seu percurso de vida, de militante e de combatente. A sua utopia. A utopia da sua geração.

Primeiro na Associação dos Escritores que ele frequentou assumindo-se como poeta e despojado do poder – e é interessante isso e é aparentemente paradoxal -, depois em inúmeras circunstâncias, convivi, ao longo dos últimos 30 anos, com Marcelino dos Santos, e, não obstante as contradições que marcaram e marcam o seu trajecto pessoal, aprendi a admirá-lo e respeitá-lo sem sujeitar o meu juízo a nenhuma espécie de rigor moral ou de outra ordem. Quem seria eu para o fazer? Mais do que isso, reputo como um dos mais coerentes da sua geração. Não o vi transfigurado nem camaleónico. Podemos não concordar com ele, mas temos que respeitar a sua coerente obstinação.

Releio os seus poemas, relembro a sua longa e bela trajectória, recordo-me das imensas ocasiões em que falámos, discutimos fraternalmente, das vezes que o visitei em casa, do seu olhar penetrante, da sua voz poderosa, dos tempos em que ele era um tribuno audaz, um dos grandes tribunos moçambicanos, relembro o elogio fúnebre a Samora, a sua voz embargada, que a todos nós comoveu, das lágrimas de Marcelino diante do féretro de Machel, de outros momentos, tantos outros momentos, hoje e sempre, numa relação sempre fraterna do poeta e meu camarada de letras. No domingo, 20 de Maio, ele fez 89 anos. Regozijo-me por isso e saúdo-o aqui vivamente.

 

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