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E Mapswancolo que comia gato?

O dia acordou cinzento e esquivo. Uma Chuva tímida cai sob o corpo de Lisboa, daquelas que não molha a ninguém de uma só vez, mas cai o dia todo. Há mais neblina que céu, menos chuva que nuvem. A cidade, brumosa, se mostra para poucos galanteios. O sol pujante dos dias de Primavera descansa submerso num sono profundo, preferiu comprimir-se na mais recôndita das bainhas do esquecimento que aturar as chatices de uma cidade menstruada!

Eu cá também tenho minhas memórias sobre chatices de pessoas menstruadas, conversa para outra ocasião! A memória hoje não está para isso, beija-me noutros becos, nos tempos em que um tipo era muito matreco! Ris-te porque achas que não deixei de ser, nem? Não me tires a coroa, já fui mais! Quem me conhece desde os tempos do Mapswancolo que dê o seu testemunho.

Todos guardamos figuras míticas, cujos serviços todos os pais recorrem para dispersar os nossos momentos de desobediência infantil. Um dia construímos nos nossos imaginários figuras como o " bichão papão", a "cuca" ou o "senhor de saco"!  Conheci todas essas figuras, mas se existe personagem que meus irmãos, meus primos e eu mais tememos na nossa infância é Mapswancolo! O homem não só viveu no nosso imaginário, assim como pisou muitas vezes o chão da minha casa! Tinha carnes e milhões de ossos! Era alto, de pele escura, corpo forte, no seu pescoço destacava-se uma estrada de queimaduras.

A infância é a embriaguez causada por circunstâncias naturais. O medo de sermos medrosos reconhece em nós solos inférteis, o sonho nos visita constantemente e a vergonha nem nos conhece!

Quando Mapswancolo aparecesse lá em casa era sempre fim de tarde. Era enfermeiro de um dos centros de saúde da cidade da Matola. Sua pasta cheia de seringas, tesouras e comprimidos bailava nas suas mãos rechonchudas. Sempre que víssemos aquele homem corríamos quilómetros, mas aquela voz aterradora que emergia das suas cordas vocais gastas pela aguardente procurava por nós onde quer que estivéssemos e nos acendia no peito aquela faísca que esvaziava tudo, o medo.

Enganaste se pensas que o nosso medo tinha algo a ver com a sua estatura física ou com a sua voz em concreto. Isso era o de menos. Estava tudo relacionado com o que o enfermeiro Mapswancolo nos podia fazer! Todos tiravam um certo prazer e vantagem daquele nosso medo. A cantiga era sempre a mesma, nós que nos portássemos senão já sabíamos o que aconteceria. Não tinha chegado a concretização da tão anunciada ameaça, contudo, ao abrir um dia a sua mala e nos mostrar a tesoura e a seringa chegámos a cogitar que era o nosso fim. A dor que nos despiu naquele momento habitou boa parte da nossa infância. Passava sempre um longo intervalo entre aquelas visitas aterradoras do enfermeiro à nossa casa. Aquelas lembranças nos torturavam mais nos primeiros dias após cada visita. Depois adormeciam. Sempre que o víssemos novamente vivíamos tudo de novo! Mas até ele desaparecer definitivamente, a tesoura dele nunca nos tocou, a circuncisão pelas mãos de Mapswancolo não a-con-te-ceu!

Há dias lembrei-me desta figura mítica da minha infância, porque participei de um debate, em sede de uma aula de Direito Penal, sobre a recente criminalização dos maus tratos a animais de companhia que ocorreu em Portugal e a crescente proteção que vem sendo conferida aos animais em muitos países. Como em todos debates de temas sensíveis os intervenientes expondo os motivos dos prós e contras digladiaram-se sem reservas.  

A maior vantagem de sairmos dos nossos países e convivermos com pessoas de vários lugares é ganhar condições para ter uma visão um pouco mais holística do mundo. Longe de mim ser a favor dos maus tratos contra animais de companhia. Contudo, lembrei-me que, para além de tudo, Mapswancolo era um grande apreciador de carne de gatos.

Um dia o homem apareceu carregando num saco um felino morto. Aquele sorriso matreiro que nos aparece quando tiramos a sorte grande brilhava nele. Não sei como eram confeccionados os pratos, mas tudo indicava que se tratava de grandes petiscos. Sempre que nos visitasse recomendava aos meus pais que lhe arranjassem os ditos felinos, dizia ele que podiam já estar mortos que não se importava.

O debate vai quente na sala. Dentre argumentos constitucionais, humanitários e até sociológicos cada parte tenta convencer a outra de que está do lado certo da lide. A dado momento tudo se descontrola, todos já falam aos gritos e um colega exaltado diz:

– A humanidade sempre amou os animais. Eu em especial considero os gatos como os nossos melhores amigos.

Os que estão contra contestam a última intervenção. A algazarra se descontrola. O resto do que agora consigo lembrar é ouvir uma voz que soa bem alto perguntar:

-E Mapswancolo que comia gato?

 

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