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…e agora, o que se dirá aos contadores de estórias?

“a literatura, tal como a concebemos,

distingue-se pelo investimento na linguagem

e não pelo conteúdo por mais nobre que o julguemos.”

Lembro-me desta frase em epígrafe como se me tivesse sido dita ontem quando, afinal, remonta o ano de 2004. Li-a numa recensão publicada na Revista Proler, em que o seu autor dissecava sobre o livro Nikitche cuja autora adicionou recentemente ao título de primeira romancista moçambicana, o de primeira mulher africana a ganhar o prémio Camões. É obra.

No auge da minha formação em ensino de línguas cujo plano curricular incluía o estudo de alguma teoria de literatura e uma busca por noções de literaturas de países de língua oficial portuguesa, foi-me apresentado o texto em alusão como um exemplo do exercício da crítica e recensão literárias. É, decerto, um belo texto que aborda a obra literária nas suas mais diversas componentes.

O que me faz revisitar este momento particular é exactamente o facto de Paulina Chiziane ter sido agraciada recentemente com o prémio Camões 2021. Inda que haja muito de extraliterário por se dizer sobre os prémios, uma certeza é irrevogável: (1) eles singularizam o autor no seu meio, (2) canonizam a sua obra e (3) atraem leitores.

Sobre o primeiro e último elementos, respectivamente, pouco se pode dizer porque é evidente que mesmo no meio moçambicano, onde há um número relativamente reduzido de leitores e o seu reconhecimento no meio académico ainda resta a desejar, a escritora carrega uma gama de leitores que conhecem a sua obra e a tem como referência.

Ora, quanto à questão do cânone dir-se-ia com alguma certeza que esta divide opiniões de tal modo que, ela própria, assumira, o título de “contadora de estórias” quiçá para se desfazer das interpelações que nos corredores da academia se procura fazer à sua obra relativamente ao que ela significa quando contraposta com o que se apregoa como eminentemente literário naqueles meios em que uma obra só o é pela forma como diz o que diz.

Desfeita dessas amarras e movida pelo ímpeto de contar, reflectir ou representar as estórias do seu povo através da ficção, foi fazendo escola e já lá vão 31 anos de uma contribuição regular e activa na literatura moçambicana. E, como diria Salvato Trigo, o que é importante é que o escritor busque uma forma artística, moldada nos cadinhos estético e ético do povo que ele procura representar literariamente.

O que a mim chama atenção no horizonte além da celebração do prémio para uma escritora da minha pátria com que já tive a honra de privar, é o facto de, como já o disse, os prémios terem este condão da canonização da obra (e inegavelmente do seu autor) numa literatura em constante processo evolutivo onde as novas vozes tendentes à “paulinização” da narrativa são interpeladas com frase que epigrafa o presente texto. Daí a questão: “e agora, o que se dirá aos contadores de estórias”.

Se por um lado, pesará a balança da crítica incessante em prol de uma narrativa que respeita a gramática do texto na perpectiva mais clássica, por outro, pesará o argumento de uma escrita mais progressista sedenta de novas cores (exóticas, talvez) e que encontrará na “paulinização” uma boia que a sustente rumo à margem dessa viagem que, afinal, é o deleite, a reflexão, a catarse, etc.

Conforme dirão os mais atentos, este prémio é, enfim, a repetição de vários eventos na estória secular da literatura em que determinados autores não foram devidamente acolhidos pela crítica do seu meio e tempo mas a memória comum de outros meios, outros tempos, outras convicções os tomaram como canónicos e cujo contributo é incontornável. A mim, a estas alturas, basta um “parabéns a Paulina Chiziane e a literatura moçambicana”. É obra.

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