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Duelo ao Luar

Desci o degrau do asfalto para a areia, na fronteira entre o cimento e a madeira e zinco. Dali para adiante a luz era fraca. Só luar. Os postes de iluminação terminam onde o chão é asfaltado.

O fermento do álcool oscilava o chão como ondas do mar e eu cambaleava. Segurei o leme do corpo como um marinheiro experiente. Ancorei num muro próximo para me aliviar. Meus líquidos azedos e quentes escorreram pelas dobras do zinco reluzindo os feixes tímidos do luar. Parte do vinagre afogou uma colónia inteira de formigas, escorreu a fumegar a temperatura do corpo, juntou-se a um rio de águas domésticas e desapareceu na areia esponjosa.

De longe, com a mesma timidez do luar, chegavam os sons da animação nocturna. De súbito um vulto. Percebi primeiro a sombra. Era negro e enigmático como todos os vultos. Movia-se para o meio da ruela, por onde eu teria de passar. Um frio esquisito trepidou-me a espinha, as vísceras, a alma…

Era mulher. Percebi pela leveza da passada. A leveza que deus deu só as mulheres e aos felinos. Uma mulher?! Antes que me refizesse do espanto ela sorriu. Percebi, àquela distância, um arco da cor de marfim a acender no lugar onde supus ser o rosto do vulto. Desconfiei: será xipoco? É xipoco sorri?

Não fazia vento, como em qualquer noite suburbana que se preze, mas o silêncio remexia a areia em remoinhos. Eu ofegava. Parecia que o vento entrava e saía desordenadamente da minha respiração. Uma orquestra muito barulhenta batia tambores no meu peito. Rebusquei, com o desespero do susto, os bolsos. Procurava o meu par de óculos. Era urgente uma prótese para ver melhor o vulto. Percebi que já usava os óculos quando caíram para o areal onde despejara os líquidos. Recuperei-os. Limpei-os atabalhoadamente com a ponta da camisa. Encaixei-os, com as mãos trémulas por cima do nariz suado e olhei com força de querer ver melhor.

— Explique-se! — ordenei.

Sorriu. A alvura do Marfim incendiou de novo o escuro. Parada, de salto alto e pernas desafiadoramente afastadas, lembrava os lendários cowboys dos filmes da minha infância, prontos a para um duelo. Mas duelo comigo? Que tipo de duelo teria eu com um xipoco?

Com as mãos, e lentamente, afastou do corpo o pano negro (tudo à luz do escuro é negro) com que se cobria, como se ajeitasse uma gabardina à farwest. Para o meu espanto, e os feixes de luar não mentiam, a xipoco exibia agora todos os segredos dos deuses. Os planaltos e as planícies dos filmes de cowboy expostos ao luar e as sombras a descreverem os vales e desfiladeiros que não se viam mas adivinhava-se. Meu Deus, e eu que ainda não tivera tempo para recolher o material para dentro da braguilha. Mas agora não precisava, se era duelo que ela queria…

Fui subitamente tomado pelo feitiço que irracionaliza os homens diante da nudez feminina. O medo a atiçar vontades. Eh, eh, eh, ri-me. Com o membro bélico solto, cambaleei cowboyadamente para o meio da rua, posição de duelo. Em conivência com o luar ela luziu mais a dentadura, gingou a anca deixando o luz afagar. Eh eh eh, riso de bêbado é  tolo.

Dei um passo adiante. Depois outro e outro. Ela parada. Endireitei os óculos instintivamente. Arregalei as pálpebras. Não podia ser xipoco assim bonita. Xipoco não teria este cheiro à  produtos de cabeleireiro que todas as mulheres exalam. E não são assim físicos: toquei-lhe o seio. Sobressaltou-se, naquela timidez fingida com que seduzem os homens, e cobriu o corpo com a gabardine que de perto percebo ser uma capulana. Eh eh eh, riso de bêbado. Segurei-a. Escapou-se como um peixe escorregadio. Correu. Apanhei-a. Escapava. Andamos nisto, no meio da rua, como borboletas nocturnas aos saltos e risos. Eh eh eh… Hi hi hi…

Caímos. Ocorreu-me Drummond: "O chão é cama para o amor urgente". Ela cheirava à mulher. Cheiro de mulher misturado ao cheiro de terra. Terra molhada com águas domésticas e urina de há pouco. O luar afagava-lhe o rosto e acendia dois xipefos no olhar. Olhei-a nos olhos. Não sorriu. Desviou o olhar para uma sombra atrás de mim. Não fui a tempo de me virar. Senti uma pancada violenta. Vi uma luz intensa e escura. Senti mãos vasculhando-me os bolsos e a arrastarem-me para a berma da rua, perto do lixo, para desimpedir a via.

Do resto só me lembro dos focinhos frios dos cães me virem farejar, dos telemóveis curiosos a fotografarem, da televisão popular, da perícia policial e das moscas a perturbarem-me o descanso eterno.

 

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