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Dr. Mussa Rodrigues: o maldito moçambicano da província da Zambézia

“Para a tarefa do artista, a cegueira não é totalmente negativa, já que pode ser um instrumento”.

Jorge Luís Borges

A cegueira talvez seja o olho puro que a alma usa para ver os mais afinados sons que o sangue dedilha nas veias da existência. A cegueira é um exercício que nos obriga a inventar a dimensão exacta dos objectos. Os olhos fechados pela cegueira são como um punho cerrado de vazio que no seu interior, em côncavo, inventa gestos e movimentos silenciosos.

Ray Charles tinha os olhos piscando sobre seu rosto cego e mesmo assim conseguia ver os frascos musicais certos para enchê-los de um bom soul. O compositor e tenor, Andrea Bocelli, apesar da cegueira que se despejou, em seus olhos, consegue ver as escadas da música e degrau a degrau sobe-as sem nenhuma bengala branca.

Amadou e Mariam é um casal de cegos do Mali. Juntos cantam e olham-se. Reconhecem os seus rostos pela tonalidade das vozes. A cegueira que deixou uma cicatriz de escuro, nos seus olhos, é sugada em cada canção por uma esponja de lágrimas de amor. Isaú Meneses, do “Tapi Djêe”, é um outro génio com o perímetro dos olhos vedados pela cegueira; mede o peso do silêncio dos seus olhos com as notas da música e conhece, sem ver, cada movimento e aceleração da música.

Dr. Mussa Rodrigues era também cego. O nome dele sempre chegou-me aos pedaços. Não o conheci inteiro duma só vez. Precisei de dias para completar o seu nome. Um locutor da RM chamava-o, simplesmente de Dr. Mussa. E brincava com o seu nome a medida que punha a sua voz em cima da sua música: “este som chega-nos de Zambézia. É de Dr. Mussa” – dizia o locutor. O locutor mexia no nome do velho como são mexidos dados num tabuleiro de xadrez. Ora Mussa, por vezes Rodrigues e para poupar a palavra até ousava chamá-lo, simplesmente, de Dr.

Fui obrigado a compilar nas páginas da minha memória todos os dados que faziam o nome desse músico. Todos eles. “Nós somos cantores; … moçambicanos da província da Zambézia” – segurava-me, numa das músicas, a sua toca. O seu berço. Aquela música serviu-me de ponto cardeal para saber o nome do velho. Aquela música foi o fio que uniu os elementos do nome desse velho. E assim o conheci: Dr. Mussa Rodrigues. O seu nome já o tinha firme e junto no pulso da língua como uma missanga.

Este velho alegrava os olhos reformados das imagens com cores de melodias e piscava-os quando a proporção distinta da música penetrava nas impressões digitais das mãos. Nem ele próprio conseguia saber o que era: “até hoje, mesmo assim, eu não sei como interpretar o que eu sou”. Ele era “um homem deste mundo aqui, o mundo sem preço”.

Mentiu-se a ele próprio dizendo que era moçambicano da província de Zambézia. Ele era província moçambicana de qualquer Zambézia. Era cego. Como uma pessoa cega cantou tão bem o país que não via? Ver é o testamento dos sem espírito (como eu) e sentir é a compilação de um infinito visual que transborda do recipiente do olhar.

A guitarra foi para Dr. Mussa Rodrigues a sua bengala branca. Através dela conseguia reconhecer os obstáculos da vida, reconhecia os degraus da amargura, o asfalto da sua miséria, os caminhos da sua humilde voz e as paredes que faziam dele uma casa de talento e génio. Quando o ouvia, pela janela da RM, imaginava-o sentado no sossego do seu existir, deambulando nas ruelas da sua criatura gasta pelo tempo; imaginava-o pegando na sua guitarra e servindo, nela, a sua alma líquida e liquidada de tanto viver. A guitarra era o copo que ele usava para nos servir a sua alma e as antenas da RM eram as mesas.

Dr. Mussa Rodrigues era como uma fábrica humana; com a musculatura de génio batia na viola e a boca era a chaminé que tirava o fumo da voz. Os seus olhos roncavam na sua cegueira em cada piscar como esferas duma máquina que tece sentimentos.

 

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