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Dona Pérola

Vi dona Pérola pela primeira vez nos anos 80, com a fome no auge. Nem sei se a conheci ou ela a mim. Temo dizer que nos conhecemos porque nessa altura eu era tão verde para conhecer quem quer que fosse. Ela tinha as suas atenções bastante disputadas que talvez ao invés de conhecer-me, somou-me como mais um.

A nossa diferença de idades não impede meus olhos de ver que, fazendo jus ao nome, dona Pérola é extraordinariamente linda, seus contornos e fundos são tesouros incalculáveis dos pés à cabeça. Naquele sorriso fácil e meigo escondem-se segredos capitais e seculares. Duvida-se da cor do sangue que corre nas veias escondidas por aquele corpo fino, longo e de pele macia. É que a ser vermelho há muito que o coração teria soçobrado perante as angústias e demais cocktails de dissabores servidos à sua mesa.

As águas imaculadas que lhe percorrem das entranhas até aos poros atraem navegadores de diferentes estirpes e latitudes. Desejam tocá-las suave ou freneticamente até ao arrepio, desnudar-se, lançar o anzol bem esticado até regressar satisfeito. Querem penetrar até as profundezas do mar de emoções que ela é para a conhecer e domá-la. Mas não era de imaginar que não só navegassem mas também defecassem e fossem capazes de chegar a todos os cúmulos de estupidez e sabotagem que secam o coração de dona Pérola. A beleza e todo o açúcar que carrega no corpo e no coração lhe saem à desvantagem quando vê as outras, menos perolizadas, sobrecarregadas de bem-aventuranças incomensuráveis.

Estes abutres que se relacionam com dona Pérola sabem que ela tem rebentos por cuidar mas não oferecem ajuda. Quando a conheci ela já tinha filhos e numa mágica afeiçoei-me a eles e ficamos todos irmãos. Mas uma das maiores tristezas da dona Pérola é a intensa peleja entre os filhos que vivem divididos lutando por uma posição de poder na casa e por recursos que ela afinal ainda está a construir. É duro demais para ela.

Ela por vezes finta estas tristezas com alegrias que não se sabe aonde vai buscar, mas dizem que o sofrimento dela é já antigo e começou pela tremenda dificuldade para ela nascer. Uma gestação que tinha de ser escondida porque calhou num lugar e tempo em que havia um decreto que proibia nascimentos. Então aprendeu a comprimir-se, esconder-se e renegar-se ainda no ventre da mãe para que sua vinda não fosse abortada. Foram inúmeras as vezes que desconfiaram da barriga da mãe e chamaram-na para interrogatórios que gelavam e cortavam a respiração. Pelo menos por um bom tempo acreditaram tratar-se de um simples engordar catalisado pela dieta típica para vacas e porcos: espigas de milho amarelo, tubérculos variados e tantos alimentos-arranjos.

Fitar dona Pérola exige audácia perante o risco da hipnose causada por aqueles olhos berlindes ofuscantes pelos quais muitos prometem fundos e mundos. Alguns rifados desapontam-na por fixarem-se nesta preciosidade e não nela. Os preteridos infernizam-lhe a vida desejosos de a ter pelo menos como concubina. Ignoram que ela é mãe de família, tem filhos por respeitar, não é oxigénio para a todos satisfazer e que para tamanho meretrício não há fêmea que aguente. Dona Pérola tem na possibilidade de escolha, um calvário. Sofre porque tem que escolher companheiros à altura do seu físico, pose e posses mas também porque o outro não está ao seu controle. Quando se tem apenas couve cozinha-se e come-se mas quando as escolhas vão desde legumes até carnes sofremos bastante com combinações e satisfação do paladar.

Não sendo mais possível esconder a gravidez e com medo de perder o rebento, a mãe de dona Pérola teve que passar de mata em mata buscando algum buraco para se esconder. O martírio só terminou por meio de uma longa e sangrenta revolta da maioria, que não concordava com o decreto do governo formado por poucos forasteiros mas militarmente fortes. À custa de muito sangue, os forasteiros foram vencidos e dona Pérola veio ao mundo com a população em grande festa e entre infindáveis alaridos.

Sentada ou em pé, nota-se que ela carrega poços por explorar nos dois assentos naturais e em vários apartamentos do corpo. Diante de tamanha riqueza não poderiam faltar prospecções até ao fundo dos poços para provar o sabor, testificar a essência, a naturalidade e sinalizar para que ninguém mais intente tocá-la. Por temerem as responsabilidades com dona Pérola e com os filhos, os exploradores aproveitam-se da penúria, das diferenças e consequente descontentamento para colocar uns contra os outros. Atiçam uma fé religiosa de emergência e inconciliável com o amor que a mãe Pérola sempre ensinou e ofereceu para sugarem-lhe os beiços. Debaixo da bandeira de um deus descomedido penetram-lhe até à medula com pose de magnatas e facilidades de simples garimpeiros.

Ela tem tantos filhos quanto os tem a morte. Dentre eles, ou foram os poetas, imbuídos pelo labor da beleza, ou os políticos tentando adormecer os irmãos com cantarolas para amenizar o saque, que deram a ela esse nome de Pérola… Pérola do Índico. Não era esse o nome dela quando nasceu a 25 de Junho de 1975.

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