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Do fim trágico duma aventura amorosa do Djacabai…

Darei o dito por não-dito. Nalgumas linhas acima prometera não esmiuçar pormenores sobre as aventuras do senhor Djacabai, o ajudante do senhor Coimbra. A razão que me move é o facto de que um dos eventos de que ele foi protagonista marcou o fim da sua carreira de conquistador no bairro, a mesma que maculou-lhe o pristígio já de si estremecido entre os  residentes da comunidade e não só, como a ver vamos.

Assim, retornemos à figura do aludido e passemos a reportar o acontecimento que desencadeou aquele grande tumulto e descerrou as máscaras de fidelidade com que se cobriam os rostos dalgumas residentes do bairro.

Djacabai residia no bairro da Mafalala, num casinhoto de caniço e zinco muito cuidado, sempre com pinturas frescas e com um jardim florido no frontospício. Pela  limpeza e originalidade distinguia-se das demais da vizinhança. A experiência de asseio que ele demandava dos residentes, era a mesma que governava a sua própria. Possuía um quarto e uma sala de tamanho mediano, confortáveis, embora não tão amplos como as dos vizinhos mais favorecidos, como as da família do senhor Abílio, escriturário nos Caminhos de Ferro; dos Mabenas, e outros de encarecido estatuto e influentes no lugar. A sua era modesta, palco restrito de protagonismos que só eram superados pelos que ocorriam nos lupanares das Lagoas e do Matlotlomane ali nas  proximidades.

As festividades do Natal aproximavam-se. Havia muito movimento nos caminhos, de gente que ia e vinha das compras no mercado do Xipamanine, nas lojas do Alto-Maé e da Avenida do Zixaxa.

Djacabai fora destacado para reparar umas tubagens que vertiam água numa casa situada na rua do Guijá, numero X, a pouca distância da cantina do Juze. O sujeito era tagarela, falava pelos cotovelos. Durante a operação de reparação encheu os ouvidos à dona da casa com muita conversa. Narrou histórias que presenciara ou escutara ao longo da sua permanência na cidade. Inventou outras de que fora protagonista lá em Manjacaze. Nas mesmas era sempre o herói. Era um conversador nato cuja presença angariava-lhe simpatias e amizades. Naquela ocasião, derramava os seus feitos em presença duma senhora de meia idade, de nome Genoveva, filha da anciã que era a proprietária da casa.  A conversa envolveu as três personalidades. A mulher jovem ria-se a bandeiras despregadas com as histórias do operário. Trocaram nomes e endereços, horários e disponibilidades. Ela vivia a três quarteirões da casa dos pais, nas proximidades do posto sanitário do bairro. Era casada com um senhor de nome Mapilele, estafeta num escritório da cidade e cristão muito piedoso. Do matrimónio tiveram dois filhos que eram a razão da sua vida presente.

Naquela manhã de sexta-feira, a senhora Veva informou ao esposo:

“ Logo à tarde irei visitar os velhos, a minha mãe não está lá muito bem. Depois passarei pela casa da modista ali no Mahafil provar algumas roupas”.

O esposo não se opôs porque era frequente assim ela proceder. Despediram-se e ele partiu para a jornada do dia.

Depois de despegar do trabalho o senhor  Mapilele, não a encontrou a esposa em casa. Ficou apreensivo pelo ineditismo da circunstância. Como a paciência é a mãe das virtudes, preferiu aguardar. Poderia ter-se dado o caso de ela demorar-se em casa dos pais, a cuidar da mãe, verdade se diga, sempre atormentada de reumatismo ou do pai com problemas da coluna e de tensão alta.

Às vinte e uma horas a Hora Nativa anunciou o fim da emissão. Da Veva nem um sinal.  As angústias do Mapilele ascenderam aos cem graus centígrados. Entrou em ebulição. Nunca semelhante falta sucedera naquele lar. Uma das regras cardinais de disciplina naquela casa era a pontualidade no cumprimento de compromissos. Estavam ali aquelas crianças à espera dos cuidados dela, do jantar por aprontar e das roupas por arrumar; enfim de toda a lide da casa adiada e ela ausente, desaparecida assim como fumo no ar.

Dirigiu-se à casa dos sogros. Estes já se encontravam a dormir. Bateu à porta com um vigor pouco habitual. Lá de dentro o sogro estremunhou uns protestos e franqueou-lhe a entrada.

“ Venho à procura da Veva. Desde que saiu de manhã ainda não voltou para casa”, gaguejou, estremecido e nervoso. A velha mãe arregalou os olhos nuns espantos e disse.

“ Não vejo a Veva desde a semana passada. Ela aqui não veio. Estive todo o dia em casa e não a vi aqui”.

O senhor Mapilele deixou aquele fogo, mas outros fogos ardiam no seu peito. Muitas perguntas atropelavam-se-lhe na cabeça. “Para onde a Veva teria ido? Onde estará agora? Com quem estará? Será que esses bandidos de má nota tê-la-iam morto e escondido o corpo aí nos becos dos caminhos?”. Eram todas perguntas sem respostas, embrulhadas numa mente atormentada.

Regressou cabisbaixo. A que se seguiu foi uma longa noite de vigília, à espera da claridade da madrugada para iniciar buscas da esposa, já oficialmente desaparecida.

A notícia correu como o vento em todos os bairros. Os residentes murmuravam:

“Desapareceu uma mulher chamada Veva que vive no bairro Indígena”.

“A história é sempre a mesma: ela fugiu masé com um homem. Essas piedosas são sempre as mesmas, santinhas por fora, mas Diabos atrás da cruz!…conheço-as bem…”.

“A comadre parece falar com conhecimento de causa…pecado confessado, meio perdoado, lá diz o padre com razão…”, outra a desferir uma alfinetada de dúvida na fidelidade conjugal daquela.

“Acho que a vi no bazar do Diamantino; não tenho a certeza, mas se é a Veva que eu conheço só pode ser ela”.

“No Diamantino? Qual quê. Eu vi a Veva ontem na Catembe, quando ia comprar peixe?…vi-a com estes olhos…”.

Ao senhor Mapilele restava apenas uma saída: esperar por novidades.

A manhã do sábado ia no fim quando uma delegação constituída por personalidades de semblantes carregados deu entrada no quintal da residência daquele. Servidos os  assentos aguardou por informações. Estas não se fizeram demorar. Ele não gostou do que viu, e muito menos do que escutou. Era uma comitiva constituída por elementos da Esquadra e dalguns “irmãos” da congregação. Por fim, revelaram pelo que vinham e ele já adivinhava do que se tratava:

“ Irmão Mapilele, as novidades que trazemos são chocantes e tristes”, assim fez a introdução o que parecia caudilhar o grupo.”Esta manhã apareceu na ali Esquadra um senhor de nome Samuel Bocoda que disse saber do paradeiro da “irmã” Genoveva, a sua esposa”.

“Agora quem é esse tal  Bocoda de que estão a falar? Não conheço nenhuma pessoa com esse nome” era o nervosismo a acrescer-se na mente perturbada do dono da casa.

“ Conhece sim, é o ajudante da manutenção aqui no bairro, esse que chamam Djacabai”.

“ E depois?”

“ Ele foi apresentar-se na esquadra para declarar que a dona Veva está em casa dele”.

“ Já desconfiava…já desconfiava!.. Então ela resolveu abandonar o lar, hen?!, fugir de mim, dos nossos filhos, por causa desse homem? Meu Deus, por favor, diz-me que não estou a ouvir direito!”, ergueu os olhos e as mãos em prece ao céu para solicitar alguma inspiração divina.

Um silêncio pesado suspendeu-se na atmosfera do ajuntamento. Como passar à novidade seguinte? O mesmo mensageiro, é de crer, experiente nesses mesteres de comunicação de fatalidades, tossicou e, aclarada a voz, prosseguiu:

“ A irmã Veva está morta em casa do senhor Djacabai. Ela morreu esta noite, na cama dele!…”.

E a bomba explodiu. O subúrbio estremeceu com as ondas da novidade da morte duma mulher casada, na cama dum amante. A fontenária do bairro foi o epicentro  da comoção. As línguas entraram a badalar nas bocas brejeiras.

“Afinal a Veva morreu de quê? Aonde já sabemos, mas de quê?”, perguntava uma, sem se dirigir a ninguém em especial.

“Morreu dum ataque!”, tentativa doutra de desvendar a causa principal da morte da infeliz.

“Mas ataque de quê?”, insistência doutra, dúvida por esclarecer, porque qualquer ataque tem as suas origens e motivações.

“Não me perguntes, pergunta masé ao Djacabai, ele vai-te informar…”, chacota doutra a acotovelar outras na aproximação do tambor às torneiras que jorravam água.

“Chiça! alguns homens enganam mesmo…palavra d’honra!…assim tão magrinho como ele é, juro por alma do meu pai que nunca pensei…assim tão magrinho…eish!…”, veneração e respeito pelas habilidades do parceiro da finada.

“Dizem que ela até espumou da boca!… com esses homens não vale a pena mesmo… se calhar ele tomou remédios para ter mais força…coitada da senhora…”, experência doméstica denunciada na espontaneidade  do comentário.

“ É por isso que eu não me meto nessas coisas…já bem me chega o meu Alberto…”.

“ Ela não aguentou com ele e zás…foi-se!…”, alguma luz na penumbra da dúvida sobre a “ patologia” que teria causado o “ataque” e a morte súbita da dona Veva.

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

 

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