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Descolonizámos o Land Rover

Albino Magaia tem 40 anos e é um reputadíssimo jornalista e escritor moçambicano. É prócere director da prestigiada e prestigiosa revista TEMPO. O semanário, proveniente dos anos 70, aquando da primavera marcelista, pela mão de excelentes profissionais, é para mim, ainda ou sobretudo, o retábulo do sonho. Já lá não oficiam muitos dos seus míticos nomes, mas o nome retém a proeminência. Remanesce, na editoria de fotografia, o Kok Nam. O director talvez seja o jornalista mais conceituado do seu quadro redactorial. Conhece-se-lhe um percurso ligado ao nacionalismo. Pertencera ao NESAM – Núcleo de Estudantes Secundários Africanos de Moçambique -, fora prisioneiro político. Dessa dura experiência nascera, aliás, Yô Mabalane, livro de ficção narrativa publicado na emblemática década de 80. Antes, em 1982, publicara na colecção Autores Moçambicanos, do INLD (Instituto Nacional do Livro e do Disco), Assim no Tempo Derrubado. Desse livro de poesia avulta o poema “Descolonizámos o Land-Rover”.

Albino Magaia: “Já não é carro cobrador de impostos/ Nós descolonizámo-lo. /Já não é terror quando entra na povoação/ Já não é Land-Rover do induna e do sipaio. / É velho e conhece todas as picadas que pisa. / É experiente este carro britânico/ Seguro aliado do chicote explorador. Mas nós descolonizámo-lo/ No matope e no areal/ Sua tracção às quatro rodas/ Garante chegada às machambas mais distantes/ Às cooperativas dos camponeses. / Entra na aldeia e no centro piloto/ Ruge militante nas mãos seguras do condutor/ Obedece fiel a todas as manobras/ Mesmo incompleto por falta de peças. / – Descolonizámos o Land-Rover/ Com nossos produtos/ Comprámos combustível que consome/ Com nossa inteligência/ Consertámos avarias que surgem/ Com nossa luta/ Transformámos em amigo este inimigo. / Nós, descolonizadores/ Libertámos o Land-Rover”.

Releio este poema, a esta distância, e não deixo de pensar na profissão de fé nele impregnado. Éramos então outro país, tínhamos outra energia e outros sonhos, comungávamos outros valores. Havia valores que eram partilhados. Penso na bonomia do futuro que o Albino Magaia inscrevia ao efundir este entusiástico texto. Isto parece ter sido noutra vida. Hoje vivemos nos antípodas. Muitos jovens com a idade deste poema devem ficar irresolutos perante a sua linguagem e as metáforas persentidas. Poema de uma certa época, poema de um tempo histórico, metáfora de um país que se libertara e que o fizera na transfiguração de um instrumento de colonização tornando-o libertador. Poesia de um contexto e com conteúdo que se funda nele. O Land Rover aqui é a metonímia dessa transfiguração.

Outros poemas de que eu gostava particularmente do Albino Magaia: “Eduardo Mondlane” e “No Sul nada de novo”. A um dos filhos, deu o nome de Eduardo. Parece óbvia a devoção. O outro poema é dedicado a Nelson Mandela: “Lá para o Sul/ Mandela/ continua a sonhar com uma estrela/ Violas electrónicas do Soweto/ vomitam notas de sangue/ sobre os céus de Johannesburg/ enquanto Miriam Makeba/ curte o exílio na Guiné/ Há jovens que morrem/ suicidando-se em Smandje-Mandje/ num contraste de preto e branco/ com a sumptuosidade multinacional/ nos lupanares do Transkey”.

Posto isto, será despiciendo falar da magnificência da figura que me receberá – eu com pouco mais do que 20 anos – naquele ínclito semanário. Quero ser repórter. Sonho em ser grande repórter. Trago no bornal a reportagem, o género dos géneros;  a entrevista, a grande entrevista; a crónica. Sou leitor do repórter Gabriel García Márquez; tornar-me-ei indefectível da Oriana Fallacci, a jornalista italiana de Entrevista com a História; pratico a chamada crónica literária, tenho uma coluna semanal no “Notícias”. Cultuo os mestres brasileiros: Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. Mas entrei ali como quem atalha um templo. Eu terminara o curso médio de jornalismo e pediria para ser colocado na TEMPO. Albino Magaia é extremamente afável. Depois de me falar da revista e dos seus valores, indica-me o trabalho que me espera: ler as cartas dos leitores, que não são publicadas, e a partir dali redigir um texto (uma espécie de reportagem) sobre aquilo que versavam aquelas epístolas que, de outro modo, permaneceriam no anonimato.

– Vais aprender a conhecer o país – avisa-me.

Foi, vejo-o a esta distância, uma poderosa lição de vida. Foi um banho de humildade. Ele ensinou-me muita coisa com aquele gesto. Que o percurso se faz de baixo. Refreou os meus exacerbados ânimos. Todos os dias, durante meses, li, anotei, pensei e vivi as angústias, sobretudo as angústias, relatadas pelos leitores, naquelas cartas, muitas delas ilegíveis. No final, produzi o texto que haveria de ser publicado. Isto aconteceu há 30 anos. Entre finais de 1987 e princípios de 1988.

Mantinha, a despeito, a minha colaboração literária na revista. Desde 1985, pela mão do Luís Carlos Patraquim, eu escrevia na “Gazeta de Artes e Letras”. Começara por publicar versos, fazia à época algumas recensões críticas, iniciara o repto das entrevistas e intentava algum ensaio, canhestro, certamente. Quando o Gilberto Matusse assumiu, diligentemente, a coordenação da “Gazeta”, manteve a minha colaboração. Foi uma época empolgante para mim. Publicavam-se livros – os primeiros livros da minha geração – e nós noticiávamos isso e o discutíamos ali. O Gilberto vinha com uma licenciatura da Europa e acrescentava referências inéditas.

Não muitos meses depois, Albino Magaia chamou-me para o seu gabinete e designou-me editor da “Gazeta”, o suplemento literário e cultural da revista TEMPO. Eu que chegara ali para ser repórter, era agora editor. Rui Knopfli, muitos anos antes, Luís Carlos Patraquim (com Gulamo Khan e Calane da Silva), num tempo ulterior, Gilberto Matusse, eram nomes que eu tinha que honrar. Não sendo um prestidigitador, arregacei as mangas e fiz o que sabia. Foram dois anos frenéticos. Para além da “Gazeta” eu estava na redacção. O chefe da redacção era o Luís David. Ele personificava os velhos chefes de redacção, irascíveis, coléricos, que rasgavam ou devolviam textos, que vituperavam a mediocridade. Um dia, passados muitos anos, disse-lhe do muito que estava grato.

Aprendi muito naquela época. Aprendi tudo naquela revista. Em finais de 90, eu estava exausto e queria mudar de vida. O Albino Magaia, no entanto, deixara de ser director da revista. Um tempo menos iridescente adivinhava-se no parco horizonte. No entanto, ele era também o secretário-geral da AEMO. Para além da TEMPO, convivíamos na AEMO. O Albino era um conversador apaixonado. Animava-lhe o passado. Escolhe para a revista que iria editar na AEMO um título evocativo do precursor Rui de Noronha: Quenguêlêquezê – Lua Nova. Um homem culto, tinha um riso contagiante e apostava na juventude. Os seus saberes não se circunscreviam à literatura. Mas já lá vamos.

Albino Magaia incumbiria ao Castigo Zita uma ciclópica tarefa: compilar os textos de João Abasini. Albasini fundou e dirigiu importantes jornais como O Africano e O Brado Africano. Dedicado e paciente, o Castigo recolheu textos, copiou-os dos jornais O Africano, O Brado Africano, tanto nas colecções em papel do Arquivo Histórico como nos micro-filmes que encontrara no Centro Cultural Português em Maputo. Este trabalho árduo e minucioso iria emperrar na fase da composição do livro projectado – na época a composição de textos era feita a chumbo na Tempográfica – e não chegou a ser editado na colecção “Cadernos Tempo”, como Magaia pretendia. Quando a morte surpreendeu o jovem Castigo, em 1988, aos 27 anos, ele preparava-se para fazer o mesmo trabalho em relação a outra grande figura do nosso jornalismo – Estácio Dias, pai do escritor João Dias, autor de Godido e outros contos.

Um outro jovem contista talentosíssimo, Isaac Zita, que também morreu prematuramente, aos 22 anos, a 17 de Julho de 1983 (nascera a 2 de Fevereiro de 1961), teve o amparo e o inequívoco apoio do Albino Magaia. O prefácio que Magaia redigiria para o livro póstumo do Isaac Zita, Os Molwenes, é um dos raros documentos sobre a vida efémera e fulgurante daquele jovem professor que lhe aparecera com uns textos que tanto o entusiasmaram e que publicou na revista TEMPO. Fernando Couto também se entusiasmou com o talento de Zita e publicou-o no jornal Notícias. O Albino era um homem bom, generoso. Um excelente conversador. Um sábio. Tinha uma ampla e sofisticada cultura. Um homem probo, um grande jornalista. Não se furtava a uma polémica ou a discutir ideias. Era, no entanto, de uma grande humildade. Abominava a injustiça. Foi das pessoas que mais me marcou. O seu exemplo, a sua correcção, a sua postura. A falta de soberba.

Conto um episódio que releva a sua personalidade. Em Março de 89, em pleno DC-10, íamos a caminho de Lisboa para um congresso de escritores. Iam na delegação, entre outros, o José Craveirinha, o Sérgio Vieira, o Ungulani Ba Ka Khosa, o Eduardo White, a Fátima Mendonça. O Rui Nogar estava em Lisboa, como o Luís Carlos Patraquim. Foi quando reencontrámos e celebrámos Noémia de Sousa, Rui Knopfli, Eugénio Lisboa, Glória de Sant´Anna. O Albino indagou-me sobre o título que eu dera à peça que anunciava a reunião e a nossa viagem: “Congresso de Lisboa”.

– Congresso de Lisboa? – interrogou-me ele, meu director.

Sim, eu argumentei. Disse-lhe que ele estranhava, provavelmente, por se tratar de Lisboa, se fosse uma outra capital, talvez não se tivesse revelado a mesma perplexidade. Disse-lhe mais: que ele se abstivesse de pensar Lisboa com aquela carga “afectiva” e política que Portugal representava, chegaria à conclusão do acerto do título. Ele olhou para mim e sorriu. Deu-me uma palmada nas costas e reconheceu:

– Tens razão. – disse-me e soltou a sua bela gargalhada.

Voltei daquela viagem carregado de entrevistas e de reportagens com escritores. Escrevi abundantemente sobre alguns deles então proscritos, por assim dizer. Albino Magaia em nenhum momento censurou fosse o que fosse, deu-me toda a liberdade. Falar, como fiz, de um Rui Knopfli, naquele contexto, provocava urticária a alguns. Não faltariam diatribes pelo facto de ele ser adido na embaixada portuguesa e eu, entre outros, o reivindicarmos como poeta moçambicano. Magaia actuou sempre com lisura. A Fátima Mendonça, devo sublinhar, também me haveria de defender. Vivíamos uma época de exacerbados sentimentos patrióticos. Era tempo de todas as exabundâncias e o Albino Magaia sabia, isso custara-lhe a saúde precária que tinha, pagara o preço dos exageros dos prosélitos por estar do lado da justiça. Essa homenagem ele merece-a e temos de, um dia, ter a coragem de a fazer.

Outro episódio aconteceria nos finais dos anos 90. Eu saíra da TEMPO, fora estudar jornalismo em Lisboa, retornara à Pátria. Tendo abandonado o jornalismo activo, fazia comentário, sobretudo político, na Rádio e na Televisão. Vivíamos uma primavera democrática à época e ser crítico não era prática catalogada de nenhum delito. Albino Magaia, Carlos Cardoso, Inácio Chire, Tomás Viera Mário, Salomão Moyana, eram alguns dos meus companheiros nessa demanda. Um dia fui escalado para fazer comentário de uma sessão parlamentar na companhia do Albino Magaia e estivemos intermináveis horas na Assembleia da República em directo. Foi uma experiência estafante e exultante. Quando a terminámos, o Albino Magaia levantou-se para me cumprimentar e proclamou:

– Mestre!

Confesso: fiquei aturdido, estarrecido. Em dez anos eu ganhara o seu reconhecimento, a sua alta estima e a sua consideração. Ouvir aquilo do meu verdadeiro Mestre foi muito estranho. Esperava dele indulgência e não aquele reconhecimento. A sua humildade revelou também, ou sobretudo, grandeza. Devo o pouco que sou ao muito que ele era, que ele foi, que ele será sempre. O Albino Magaia foi um verdadeiro Mestre e gostava de ensinar e aprender. Recordo-me de que tínhamos aos sábados – a revista saía às sextas – reuniões de redacção para discutir as matérias que informavam a edição pretérita, bem como avançar com ideias e propostas para posteriores edições. Às vezes, vinham convidados. Esse magistério do Albino Magaia foi decisivo para mim. Naquele momento, naquela emoção – eu diria comoção até! -, naquele abraço envolvente, recordei-me desse Mestre inolvidável, que ali me saudava e eu estava compungido com aquela sua bondade impagável.

Albino Magaia publicaria Trilogia do Amor (poesia, em 1999), tinha publicado Malungate em 1987, um texto de ficção, e na época dera à estampa Informação em Moçambique – A Força da Palavra (1994). Ele era, indubitavelmente, um dos luminosos nomes do nosso jornalismo. Não viu o seu porfiado Moçambique: raízes, identidade, unidade nacional publicado. Numa belíssima entrevista do João de Sousa para o programa “O Fio da Memória”, que está na origem de um livro homónimo, Albino Magaia revela a intenção de biografar o músico Eusébio João Tamele. Não sei se chegou a trabalhar nesse projecto. Quisera cartografar, antes, a vida de um outro vulto – o escultor Chissano -, mas este morreu antes de ele concretizar o objectivo. Nessa entrevista soberba, Albino Magaia fala com competência e surpreendente conhecimento da música moçambicana. Ele cultiva o gosto pela música moçambicana, pelo jazz, pela música clássica. É um homem eclético. O melómano Albino Magaia escrevia enquanto ouvia Georg Friedrich Handel. Um dia ele fechar-se-á, em casa, num sábado, a ouvir Haendel durante 5 horas, o que dura a celebérrima obra O Messias do famoso compositor germano-britânico.

Por algum capricho da memória, lembrei-me hoje do meu saudoso Mestre Albino Magaia e quis fazer-lhe esta humílima evocação. Acontece que redijo este texto numa segunda-feira, dia 26 de Março, quando passam justamente 8 anos sobre o seu desaparecimento. Albino Fragoso Francisco Magaia nascera a 27 de Fevereiro de 1947, na então Lourenço Marques, faleceria a 26 de Março de 2010. Muitas referências na Internet ditam um erro para a posteridade e falam do seu óbito a 27. É preciso exercer vigilância sobre esses avatares da pós-modernidade.

Na sua Trilogia do Amor há um belo e inacabado (acautela-nos o autor) poema, intitulado “M´Pezi”, no qual Albino Magaia escreve na primeira estrofe: “…e depois quando eu partir/ as ervas dos caminhos e carreiros/ continuarão tecendo confidências aos búzios/ às pedras e grão de areia/ cúmplices e amigas sempre/ de cada grama-força de vento”. O longo poema termina com quatro espantosos, pungentes e ulcerados versos: “Quando eu partir/ quem me dera levar comigo/ o teu corpo de capulana/ embrulhado em meus braços”.

 

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