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De preto para branco

–          Temos de vender alguns a Fernando Po!
Dito e feito. Pressionados pela concorrência internacional, os líderes américo-liberianos decidiram vender seus escravos clandestinamente aos espanhóis da Guiné Equatorial, onde os escravos iam trabalhar em diversas plantações, em pleno século XX.

Quando cheguei à Libéria em 1880, tinha eu 15 anos. A nossa mudança de Virgínia para Libéria foi relâmpago. Lembro-me dos meus pais chegarem do emprego – como empregados domésticos do único médico da vila – muito atrapalhados. Minha mãe mandou-me arrumar as roupas dos meus 4 irmãos nos sacos de batata que reservávamos para viagens.

–          Temos de fugir outra vez, mamã? – perguntou o meu irmão mais novo, de 5 anos.
–          Sim! Desta vez vamos fugir para a Liberdade! – respondeu a minha mãe enquanto apertava-lhe os pequenos braços. De seguida abraçou-o, ao mesmo tempo que continuava a gritar no sentido de que nos devêssemos apressar.

A excitação dela era indecifrável. Ora gritava como se a casa estivesse a arder, ora como se tivesse realmente obtido a carta de alforria naquela mesma manhã.

Por fim decidiu revelar que o barco que nos levaria à Liberdade, partia dentro de duas horas.

Enquanto arrumávamos os bens possíveis de serem levados, meu pai ia partindo madeira num cantinno por baixo da cama deles, para de lá extrair o dinheiro depositado trimestralmente. Ele era carpinteiro, serralheiro, pedreiro, padeiro e tudo o que fosse preciso. Trabalhava duro e por vezes, eventualmente grátis, pois os seus clientes, que se comprometiam em pagar no final do mês, iam adiando os pagamentos. Houve uma certa vez em que um dos clientes, ao ver o meu pai no portão, soltou o seu pastor alemão que não poupou nada ao meu pai. Hoje ele é coxo graças a esse ataque.

Não se chamava Liberdade mas sim Libéria.

Fomos recebidos por uma comitiva da igreja. Encaminharam-nos logo para um prédio novo, que ainda se encontrava em construção. Nós nunca tínhamos entrado num prédio. O encanto dos meus irmãos era tanto, que muitas vezes brincavam nas escadas, subindo e descendo, escondendo-se pelos andares.

Os prédios tinham duas entradas: uma frontal e outra traseira. Esta última era por onde a população nativa entrava.

A primeira vez que tive a oportunidade de ver um nativo, foi logo no dia a seguir à nossa chegada. Ele encontrava-se amarrado a uma árvore no jardim localizado na parte traseira do nosso prédio. Estava a ser disciplinado pelo empreiteiro do edifício – um americo-liberiano – por ter roubado 1kg de cimento. Outros nativos testemunhavam o acto emitindo sons que pareciam de reza. Eles falavam outra língua ou então um inglês estranho.

Libéria rapidamente tornou-se na liberdade que nós podiamos ter. Passei a identificar-me como américo-liberiano. Uma classe distinta da dos negros que deixei em Virginia e da que encontrei na Libéria. Se em Virginia éramos negros, aqui éramos brancos.
Fim

 

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