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Dambuza-o menino que trocou a medicina pela luta armada de libertação nacional

O antigo Presidente da República, Joaquim Chissano, completa hoje 80 anos de vida. Chissano nasceu no dia 22 de Outubro de 1939, em Malehice, Gaza, e desde jovem dedicou-se à luta pela independência nacional

Malehice, Chibuto, Gaza. Ali nasceu um moçambicano que, há muitas décadas, deixou de ser uma pessoa comum. A sua mãe deu à luz no dia 22 de Outubro de 1939, num dos quartos da casa lá vão precisamente 80 anos. Quando isso aconteceu, vários familiares do recém-nascido quiseram baptizá-lo com um nome. Por ter nascido no primeiro dia da semana, houve quem lhe quis chamar Domingos. O nome não vingou. Dambuza, sim, ganhou raízes e passou a fazer parte da identidade do novo bebé da família Chissano. Este nome foi-lhe dado por Mwankondjani, viúva de Dambuza Muianga, irmão do avô materno de Joaquim Alberto Chissano.

Quer isto dizer que o menino de Malehice foi crescendo com dois nomes. Se o primeiro adveio da vontade da avó imortalizar o marido, o do registo tem inspiração paternal. Temente a Deus, Alberto Chissano, que na altura já leccionava na missão dos padres, não quis dar qualquer nome ao filho. Longe disso, com o consentimento da esposa, Mariana Muianga, foi buscar à Bíblia Sagrada um substantivo próprio para o seu bebé. São Joaquim foi marido de Santa Ana, ambos pais da Virgem Maria, mãe de Jesus.

Escrituras à parte, em Malehice, o pequeno Dambuza foi crescendo numa altura em que o mundo estava mergulhado na segunda Guerra Mundial, que acabava de iniciar naquele ano de 1939. Conforme os hábitos, naquele posto administrativo de Chibuto, comeu areia e cocó seco de galinha para fortalecer os dentes, ainda bebé. Já mais grandinho, construiu carrinhos de arame, com canas de milho, caniço, bambu, pregos de palito, rodas de lata de leite vazias ou de paus talhadas com recurso à catana ou canivetes. Estes não foram os únicos feitos de Dambuza, miúdo que desde cedo se mostrou versátil. Igualmente, jogou a bola com amigos da tenra idade, e, inclusive, com Eusébio da Silva Ferreira, que fora levado pela mãe para ir estudar em Malehice.

Desde cedo, o grande sonho de Dambuza foi o de se formar em Medicina. Ao mesmo tempo que se divertia como as outras crianças do seu contexto, apascentando gado ou caçando ratos do mato que comia com piripiri, aprendeu do pai a investir no seu futuro. Para o efeito, a escola foi uma grande aliada. Entre várias, Chissano estudou na Mouzinho de Albuquerque, actual 24 de Julho, na cidade de Xai-Xai, e na Escola da Missão Munhwana, em Lourenço Marques (Maputo, actualmente). Na capital da colónia, construiu com o irmão José a casa de madeira e zinco onde residiu com ele, com a irmã Maria e com a avó Rosa, no bairro da Mafalala.

Depois de 1951, altura em que se matricula como primeiro negro na Liceu Salazar (agora Escola Secundária Josina Machel), passa a frequentar o Centro Associativo dos Negros, com o interesse de integrar o Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de Moçambique (NESAM), no Xipamanine. Quem lhe falou daquela organização, pela primeira vez, foi um residente da Mafalala, chamado Caifaz Muzima. Quando Chissano adere ao grupo, em 1954, era presidido por Gabriel Simbine, o irmão de Graça Simbine, ou seja, Graça Machel. Cinco anos antes, o órgão tinha sido criado por sugestão de Eduardo Mondlane, tendo como fundadores Herbert Stefan Matsolo, Georgete Libombo, Inês Xavier, Eulália Maximiano, Sidónio Libombo, Almeida Penicela e Sarmento José, com o objectivo de desenvolver o gosto pelo estudo, interacção entre os alunos, debates de temas atinentes a matérias escolares e, sobretudo, defender os interesses dos negros na colónia de Moçambique. Por essas alturas, começa a assimilar um sentido de liderança e de gestão dos poucos recursos que lhe chegavam às mãos. Por exemplo, para o liceu, o aluno poderia ir de machimbombo. Ciente das suas limitações financeiras, preferia percorrer o trajecto de casa, na Mafalala, até à escola (no Museu) a pé. Ida e volta levava duas horas de caminhada, poupando por isso quatro escudos, valor que servia para pagar três pães e 40 litros de água.

Já integrado no NESAM, a certa altura, Chissano foi convencido por dois amigos a candidatar-se ao cargo de presidente. São eles Mário Machungo e Magno Hungwana. A ideia sobressaltou-lhe no princípio, mas depois aceitou e venceu a eleição. Ao cargo de vice-presidente foi encaminhado um dos melhores amigos seus (senão mesmo o melhor): Pascoal Mocumbi.

Um dos grandes desafios de Joaquim Alberto Chissano no NESAM foi de contribuir para a valorização da cultura moçambicana, num contexto discriminatório e cheio de preconceitos. Por isso, entre muitas funções, o então presidente criou e encenou uma curta peça sobre a necessidade de se enaltecer os valores culturais e a importância do ensino para as mulheres. Esta foi das primeiras apresentações públicas do neto de Munthuyedwa Xisanu e Muhotwanyanani Nkuna, nacionalista que, como muitos compatriotas seus, descobriu a vocação política na terra do inimigo: o regime colonial português.

4 de Novembro de 1960: o princípio de uma viagem que durou 14 anos
A 4 de Novembro de 1960, Joaquim Alberto Chissano entrou pela primeira vez num avião, rumo à cidade de Lisboa (Portugal), para estudar Medicina. Aquela foi uma viagem inesquecível, emotiva, pois teve de se despedir dos pais e do seu país como nunca antes tinha acontecido. No avião, Chissano deliciou-se de cada momento, alegre e descontraído, por isso, quando o piloto teve de descarregar o combustível, entre chamas no ar, não se apercebeu em nenhum momento de que alguma coisa estava errada. Compreendeu quando, ao fim de uma hora de voo, o piloto anunciou que teriam de regressar ao aeroporto da cidade de Kano (Nigéria), onde fizeram escala, porque um dos motores da aeronave estava avariado. Diante desse problema, os passageiros tiveram de pernoitar na Nigéria, continuando a viagem para Portugal no dia seguinte. Logo, ao invés de 24 horas, Chissano chegou a Lisboa num domingo, 48 horas depois de ter partido de Lourenço Marques.

À chegada à capital portuguesa, em 1960, Chissano tinha 21 anos. Ali passou a viver na Rua de São Mamede, onde já residia Pascoal Mocumbi, com um lugar reservado para si. Foi em Portugal que o antigo presidente do NESAM passou a ter contacto com política no sentido mais alargado do termo, informando-se sobre muitas realidades até aí desconhecidas, como a situação social portuguesa ou os levantamentos populares em Angola.   

Além da Rua de São Mamede, também residiu na Rua Visconde de Valmor, partilhando o quarto com o seu amigo Pascoal Mocumbi. Ali, os dois moçambicanos não ficariam muito tempo.

Oito meses depois de ter chegado à capital portuguesa, a 24 de Junho de 1961, Chissano deixa Portugal clandestinamente e viaja para França, ainda sem as condições da bolsa de estudo, que tardava chegar de Lourenço Marques. Mas o “futuro médico” tinha uma boa amizade. Quando precisou de dinheiro para pagar o transporte e tantas outras despesas pessoais, teve Pascoal Mocumbi para lhe emprestar o valor necessário.

Quando partiu para França, onde várias vezes tomou banho nos balneários públicos da Câmara Municipal, Joaquim Chissano tinha 22 anos de idade e já sabia que teria de contribuir para libertação do seu povo. Então, entre o desejo da luta e a formação em Medicina, alguma coisa não correu bem. O jovem moçambicano teve dificuldade de se integrar nas matérias, num contexto em que ainda aprendia a digerir a emoção resultante da fuga de Portugal. O novo sistema de ensino e, paralelamente, o inverno rigoroso interferiam no desempenho do estudante. As dúvidas sobre o seu futuro académico começaram a perturbar-lhe. Ao jovem de Malehice ocorreu que se calhar a Medicina não tinha sido a melhor escolha. Pensou em trocar de curso. A Agronomia e a Zoologia constituíram fortes possibilidades. Antes de qualquer decisão, sempre longe dos holofotes, pois a PIDE andava atenta ao que se passava em França, fundou e presidiu à União dos Estudantes Moçambicanos (UNEMO). Como aconteceu nos tempos do NESAM, o seu vice-presidente foi Pascoal Mocumbi. O cargo de secretário das Relações Internacionais foi confiado a Nhambiu e a Tesouraria ficou com Ana Simão (Chissano também dirigiu a União Geral dos Estudantes da África Negra sob dominação colonial portuguesa – UGEAN).

Com os seus “camaradas”, em Paris, Chissano introduziu a UNEMO à União Nacional dos Estudantes Franceses, contactou a União Internacional dos Estudantes, com sede em Praga (República Checa) e a Conferência Internacional dos Estudantes (CIE/COSEC), com sede em Quebec.

Foi na qualidade de presidente da UNEMO que Chissano, no mesmo ano de 1961, conseguiu contactar Marcelino dos Santos, para com ele debater os grandes desafios dos nacionalistas moçambicanos. A partir desse contacto com o então secretário-geral da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), tornou-se possível a UNEMO estabelecer ligações com a UDENAMO, liderada por Adelino Gwambe; a MANU, liderada por Mateus Mole; e alguns antigos membros do NESAM, como Filipe Samuel Magaia e João Munguambe, todos já fixados em Dar es Salaam. Muitos desses compatriotas pôde revê-los em 1962, na capital tanzaniana, na fundação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).  

 

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