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Da luta contra o terrorismo à liberdade de imprensa

Para os de fé religiosa, o entendimento indica que Deus teria criado o mundo em sete dias. Moçambique, como parcela distinta desse mesmo mundo, também não se construiu num único dia, tem um passado, de processos sociais, políticos e administrativos.

No actual contexto de luta contra o terrorismo que Moçambique atravessa, no concernente a actividade jornalística, esse passado começa a suscitar fricções na penumbra do relacionamento entre a classe jornalística e os cultores da acção política e de administração territorial.
Depois de provar da mordaça da censura, instituída pelo regime colonial desde os primórdios da imprensa de Moçambique, com o advento da Independência Nacional, ocorreu uma transformação, que culminaria com a instalação de sistema centralizado de gestão editorial, podendo-se afirmar que os jornalistas converteram-se em agentes da causa política, longe de fazer jornalismo, veiculavam propaganda do partido Frelimo e, sobre o assunto, Luís Bernardo Honwana, aquando da realização do I Seminário Nacional de Informação, descreveria que “o jornalista transformou-se no funcionário de informação. O seu trabalho consiste em apanhar a fotografia oficial, meter o discurso na íntegra, puxar a título a palavra de ordem.
Embora não tendo existido legalmente qualquer subordinação editorial dos media ao Ministério de Informação ou Partido Frelimo, os profissionais da informação nos primeiros anos da independência, tinham de bitola a linha de orientação da reunião realizada em Macomia, na qual Jorge Rebelo, citado por Fernando Lima, defendeu que “O escritor profissional (jornalista), por todo o lado, o elemento dos órgãos de informação, tem de subordinar-se à disciplina e orientação da Frelimo, quer quanto ao conteúdo, quer quanto à forma. O que aparece nos nossos jornais ou na rádio não pode nunca ser desligado da causa da Revolução.”

Ora, embora justificado pelo contexto histórico, a nível interno e internacional, esse sufocar da palavra jornalística no período monopartidário, depois da abertura sociopolítica, plasmada na Constituição da República de 1990, o ímpeto do jornalismo se comportaria como um jacto de água depois do saltar da válvula que a atravincava dentro do cano.
A título de exemplo, segundo Salomão Moyana, em entrevista concedida a Eduardo Namburete, aquando da discussão da nova Constituição, houve uma tentativa no Jornal Domingo de se trilhar por um caminho que não era próprio do regime monopartidário. Analisadas hoje as edições do Jornal, de Janeiro a Dezembro de 1990, constata-se claramente esse trilhar de novos caminhos, com o aparecimento nas páginas do Domingo, a par das habituais coberturas de eventos oficiais, desportivos e artístico-culturais, de matérias ligadas às negociações de paz, à pobreza que grassava o País, à condição dos deslocados, criminalidade, corrupção, embora tratada ainda como suborno, entre outros temas de maior interesse para o cidadão.
Os métodos de gestão da acção dos jornalistas em tempos do partido único, coincidentes com a ocorrência da guerra civil movida pela Renamo, hoje diferem-se pela ousada tentativa de busca de informação, para alimentar o púbico, em novos tempos, caracterizados pelas acções de grupos terroristas barricados em Cabo Delgado. No tocante ao Governo, que no escalar da Guerra Civil, de 1976 a 1992, controlou com a força do Estado o fluxo de informação sobre o conflito, para as páginas dos jornais, hoje debate-se com a proliferação dos meios de informação e as garantias constitucionais para o exercício da profissão de jornalista.
Entre a missão de informar, por parte dos media e o desejo do Governo de regular a informação, levanta-se um novo debate, em busca de novos caminhos de como fazer jornalismo em tempos de luta contra o terrorismo. Sobre esse aspecto, a relação entre o Governo e a classe jornalística parece-se com a de dois gatos escaldados, sobretudo quando se trata da imprensa privada.
De facto, com a aprovação da nova Constituição em 1990, que abriu portas a coexistência de vários partidos políticos em Moçambique, a aprovação da Lei de Imprensa em 1991, que acolheu o pluralismo de informação no País, a assinatura dos Acordos de Paz em Roma no ano de 1992, e a realização das primeiras eleições multipartidárias, em 1994, afigura-se um novo quadro multiforme, onde a informação teve um papel crucial, a meio os interesses dos principais actores políticos, a Frelimo e a Renamo.

O cenário de proliferação dos media em Moçambique na década 90 conduziu a um posicionamento dos jornais, de acordo com os interesses de cada bloco partidário. Ilustrativamente, prestamos atenção a acção do Semanário Domingo, com paternidade ligada ao partido no poder, este foi sempre apontado como posicionado, na sua linha editorial, a favor do Governo, em oposição ao semanário Savana, conotado com a oposição. Citando um relatório da ONG Article 19, Juarez de Maia, atesta que o semanário Domingo, gerido pela Sociedade Notícias, e o Savana, pertencente a uma cooperativa de jornalistas, Mediacoop, representam dois extremos opostos, com o primeiro abertamente a favor da Frelimo e o segundo, anti-governo, de modo geral.

Dado este passado histórico, hoje, no actual debate sobre o terrorismo, somos tentados a avançar que a relação entre os jornais privados e o Governo equipara-se a uma troca de presentes entre dois rivais, onde cada um irá tirar da caixa oferecida os rebuçados que levou consigo à festa. Por outras palavras, quando jornais privados alegam que reportam a dinâmica da guerra em Cabo Delgado, o Governo entende que há uma falta de reconhecimento da acção de bravura desempenhada pelas Forças de Defesa e Segurança, FDS. Quando o Governo apela à responsabilização pelas FDS, dos órgãos que promovem a desinformação e tentativa de manipulação, os órgãos privados irão entender isto como ameaça à liberdade de Imprensa. Há uma notória falta de confiança entre as partes ora citadas, uma memória do passado hoje intrinca a possibilidade de “acesso seguro” pelos jornalistas às zonas de conflito.

Se as FDS se batem em Cabo Delgado pelo restabelecimento da Paz, por que se batem então os jornalistas por reportar os acontecimentos da agressão terrorista? O nosso entendimento é de que seja pelo mesmo objectivo, faltando agora, nesse período de vigência multipartidária, marcado pela acção de múltiplos órgãos de comunicação e redes sociais, encontrar caminhos para a salvaguarda de uma cobertura jornalística, à luz do direito a liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e do direito a informação.
A concluir, em reconhecimento de todo esse passado histórico, do qual se forjou o espírito de receio mútuo entre os jornalistas e as autoridades governamentais, possivelmente sugerir que, como primeiro passo, para uma relativa aproximação, no que é possível; possível nessa relação de amor e antipatia, com vista a prossecução do mútuo objectivo de restabelecimento da Paz, por que não uma realização de um seminário nacional sobre a cobertura jornalística nas zonas de conflito armado, envolvendo jornalistas, as demais organizações da sociedade civil e as Forças de Defesa e Segurança?

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