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Da folia do Entrudo na Avenida de Angola

Enquanto o Pablo entretinha-se a esmurrar fantasmas aproximava-se a época do carnaval. Era um momento por que a maioria dos habitantes da cidade e dos subúrbios ansiava. Organizavam-se bailes nos grandes clubes da capital, como nos pavilhões do Sporting e da Malhangalene, sem falar noutras agremiações de não menor estatuto, como o Clube dos Engraxadores, o Centro Associativo, a Casa do Porto, a Associação de Auxílios Mútuos Gazense e a Casa dos Funcionários. Era, enfim, mais um pretexto para novos convívios e outras confraternizações.

Outros não iriam aos clubes, mas aglomerar-se-iam nos passeios da Avenida de Angola que, nessa época, se engalanava para receber forasteiros provenientes doutros bairros.

Os passeios e os terrenos adjacentes à Avenida de Angola ainda acusavam a severidade das chuvas recém-caídas. O chão acusava aqui e ali algumas poças de água que o calor de um sol tímido procurava secar.

O baile da pinhata no pavilhão do Sporting foi o toque de chamada ao início das festividades.

Naquele sábado de carnaval era só ver cortejos de gente, compactos  e alegremente ruidosos a despontarem de todos os caminhos em direcção ao bairro Indígena que, curiosamente, se transformara no epicentro das celebrações. Era a sacristia onde muitos iriam tributar a sua homenagem à amizade, onde iriam iniciar-se novos relacionamentos. Foliões trajados de coloridas vestimentas passeavam a sua classe nas pistas do areal. Uns vestiam-se palhaços, de almirantes-marinheiros a navegar em docas secas; piratas de espadachins de madeira e chapéus caprichosos a dar tréguas aos marinheiros de mar alto;  de diabos que desceram à  terra  em missão de justiça. Outros tinham os rostos ocultos por máscaras; eram Zorros elegantes e corajosos, Mandrakes prestidigitadores de varinha mágica e cartola para transformar o destino dos mortais; outros ainda coloriam as peles com aguarelas multicores, arco-íris  ambulantes a colorir a tarde de festa. Outros mais, sem as mesmas porque já nada tinham para esconder ou imitar. Todos; porém, presentes na roda partilha da alegria comum dum tagarelar descontraído, de trocar historietas do quotidiano, ao encontro dalgum elo de unidade entre os residentes dos diferentes bairros. Camiões  cedidos à borla pelos cantineiros _o tempo era de generosidade, e também o orgulho do seu bairro em competição com os demais_ carregavam grupos de foliões, bandas musicais de ocasião muito ruidosos, e cantores de vozes sofrivelmente timbradas, mas nem por isso menos alegres, espalhavam notas de canções ensaiadas durante meses para abrilhantar a festa. Sobre a bagageira do camião cedido pelo cantineiro Suzarte, a rolar lento no asfalto, o grupo da Mafalala, do qual se destacavam o vocalista  “Bode” Mordicai que, com aquela voz de caprino muito característica, alucinava as multidões; o Antoninho “Gaita” na harmónica de boca, o Habibo “Gargalhada” no tamborete, o Hassane “Esqueleto Humano” no pandeiro, o Gulamo “Coiote” no violão e, finalmente, o guitarrista-mor Salimo “Makhôfu”, executava o sempre presente hino dos carnavais:

 

   Madureira chorou **

   Madureira chorou de dor

   Quando a  voz do destino

   Obedecer ao divino

   A sua estrela chorou…

 

O agrupamento do Xipamanine, “Os Jovens do Guro”, cujos elementos desfilavam mascarados, na viagem de volta para o Alto Maé, tocava o seu samba predilecto:

 

Quando passo pela rua

    Todo o mundo me vê

   Todo o mundo dia bondia

   Todo o mundo menos você

 

Ao longo das bermas da estrada os foliões esperneavam passos de samba, genuínos bi-modais, à moda brasileira.

As multidões envolviam em círculos os executantes de diversas habilidades. Aquelas fervilhavam desde o Jardim Gouveia até ao cinema Império, passando pelo restaurante Vasco da Gama, pela cantina do Suzarte, pelo forno crematório e pelo “Justo Menezes”. Cada um transportava e lançava ao ar serpentinas multicores, as crianças assopravam em balões que faziam de trompentas e borrifavam-se com jactos de água de pistolas de plástico. Era a folia no seu auge, o júbilo duma populaçaão que se desacorrentava das tensões. Aplaudiam os números de chigubo dos agrupamentos de Marracuene, as nghalangas da Manhiça, a makarita de Inhambane, os tufos de Nampula e de Vila Cabral executadas por mulheres da Mafalala. E que gosto dava ver as residentes do Matlotlomane e das Lagoas, temporariamente esquecidas das necessidades dos clientes, a executarem números de marrabenta ao som de violas de axímios tocadores. Os marimbeiros de Zavala punham os espectadores em estado de delírio. Os elementos do grupo  provinham de Zavala e migraram para a cidade onde eram a mão-de-obra favorita dos Serviços de Salubridade. Nas letras das suas canções exaltavam o poder antigo dos reis e a valentia dos combatentes perecidos durante as guerras de penetração colonial e cantavam as virtudes da honra e do trabalho honesto, e eles sabiam qual esse era.

O sol da tarde derramava um calor tépido, numa cumplicidade curiosa de partilha pela euforia do momento. Vozes de cantores, o coro aos estribilhos das canções e notas dos instrumentos enchiam a atmosfera do ambiente. Todos ali eram brasileiros porque as suas mentes evadiam-se dos infortúnios quotidianos e protagonizavam momentos da liberdade efémera que lhes proporcionava o dia do carnaval. As mensagens iam ao encontro das vozes dos escravos, porque reciprocamente, africanos eram também muitos brasileiros. Estavam todos na sintonia da saudade das origens, na telepatia que tange emoções ocultas nas raízes da cultura, daqui arrancada e transladada para lá; viva lá, mas regressada ao solos maternos cá. Era o lugar de reencontro de toda duma civilização, a confluência de uma cultura fragmentada. Era isso o carnaval.

A tarde declinava, mas não esmoreciam os ânimos. Sobre a bagageira de um camião engalanado de serpentinas, balões multicores e figuras alegórias, atrasada na marcha, vinha a banda do Chamanculo, o “Chamanculo Stars”, o conjunto do Alfredinho (já nosso conhecido). Como que a pretender anunciar o fim próximo das celebrações do dia, o grupo entoava, os artistas já roucos, a senha principal que resumia o sentimento de um verdadeiro carnaval:

 

   Tristeza não tem fim / Felicidade sim…***

   A felicidade é como a pluma / Que o vento vai levando pelo ar

   Voa tão leve / Mas tem a vida breve

   Precisa que haja vento sem parar.

   A felicidade do pobre parece / A grande ilusão do carnaval

   A gente trabalha o ano inteiro /Por um momento e sonho

   P’ra fazer a fantasia  /De rei, ou de pirata, ou jardineira

   E tudo se acaba na quarta-feira

 

   Tristeza não fim /Felicidade sim…

   A felicidade é como a gota / De orvalho numa pétala de flor

   Brilha tranquila / Depois de leve oscila

   E cai como uma lágrima de amor

 

   Tristeza não tem fim

   Felicidade sim…

 

A fechar o cortejo, seguia um outro camião, o mesmo que transportava o Rei Momo.  Como era da praxe, na bagageira, vinha um outro agrupamento, “Os Imortais” do bairro do Cemitério, a executar um samba corrido. Umas bailarinas energéticas sacudiam-se e esperneavam uns passos a marcar o ritmo da  canção.

O acolhimento foi total, incondicional.

Sentado sobre um “trono”, que nesta ocasião era um sofá em idade de reforma, “Sua Magestade” sorria. Com uma mão exibia o ceptro, símbolo do seu poder real, e com a outra acenava para as multidões. Qualquer que fosse o troço da estrada onde o veículo rolasse, ovações e gargalhadas redobravam de intensidade, ensurdecedoras. Lá ia aquele imaginário soberano, redondo, a ufanar-se todo, trajado de túnicas, coroado de ouro falso, adornado de anéis e pulseiras, a desfilar a falsidade da sua magestade, uma caricatura assumida de quão ridículos podem ser a presunção, a vaidade e a ostentação.

As sombras do crepúsculo foram companheiras da retirada dos foliões pelos caminhos, de regresso aos lares, ao reencontro com o real da vida.

 

in Caderno de Memórias, Volume II.

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