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Da eutanásia de David Goodall: uma vida sob meus termos e condições!

O inusitado pedido de morte do cientista britânico de 104 anos de idade foi, enfim, deferido. Ao som de “ode of joy” de Bethoven, Goodall deitado sobre uma cama de altura de joelhos na clínica suíça Cycle of Life sentiu a vida a esvair-se lentamente afora. E foi assim que a morte e o livre arbítrio estiveram de mãos dadas num estranho consórcio. Num mundo que nos habituou a correr atrás do tempo para ganhar a vida, é-nos sempre comovente ver alguém que corre contra o tempo para conquistar a morte. Para Goodall, cessar a vida tornava-se necessária ante a inelutável debilidade física protagonizada pelo tempo. O cientista ecológico chegou a questionar que sentido havia restado numa vida cuja rotina se resumia em acordar, alimentar-se, mover-se alguns centímetros e dormir.

É, portanto, sob estas condições que nos urge pensar o suicídio e, uma das suas vertentes, a eutanásia. O que nos é permitido aprender desses dois fenómenos? A reflexão sobre suicídio ou morte em geral coage-nos sempre a pensar a vida ou num sentido valorativo-comparativo. O suicídio como escolha problematicamente livre da própria vítima encontra o seu fundamento ou na crise existencial ou no utilitarismo. Ou seja, há dois tipos de suicidas que concorrem à morte. Há os que se libertam da vida pela dor de existência e falta do sentido da vida. Há aqueles que o fazem por um determinado interesse que pode ser secular ou sobrenatural. O importante a sintetizar é que há sempre algo acima duma ingénua vontade de morrer que impulsiona o homem à auto-destruição.

Sendo assim, há um imperativo de olharmos para o suicídio, não como uma escolha livre, mas sim uma escolha forçada pela crise de existência ou pelo utilitarismo moral. A morte nunca é escolhida por si. Nesta ordem do pensamento, entende-se que o suicídio é tanto uma morte natural como homicídio, porquanto a vítima não se apresenta como autor, mas sujeito da sua própria morte. Nisto, ele é ao mesmo tempo vencido e vencedor. E as dores e os princípios de existência são, por excelência, os verdadeiros autores dos suicidas.

Goodall não foi livre na tomada da sua decisão. O insignificante da sua existência impeliu-o à eutanásia. Todavia, há algo em comum que se encontra em todos os suicidas: o amor à dignidade humana. Todos aqueles que renunciam à sua própria existência, no fundo, clamam por uma vida digna. São tão radicais que se predispõem ou a viver condignamente ou não a viver vida nenhuma. Para os suicidas, não basta viver mas viver bem. Deste modo, a vida em si não tem valor algum. É preciso um exercício axiológico para o enriquecimento da existência. Se calhar tenha sido esse o maior legado filosófico de Séneca ao preconizar os humanos a darem sentido à sua própria vida para que no fim sejam dignos de ser lembrados.

Para este filósofo estoico, o homem sábio alongará sua vida não enquanto puder, mas enquanto dever, isto porque a vida assemelha-se a uma peça teatral, não importando a sua duração, mas a sua qualidade. Aquiles foi um exemplo duma vida breve, mas memorável, depois que preferiu ir à guerra onde encontraria uma morte prematura mas gloriosa a ficar em casa e envelhecer nos braços da sua amada sem direito a nenhuma página na história da humanidade.

Olhando para além do bem e do mal do suicídio, é possível vislumbrarmos o belo quando alguém renuncia à sua vida por não poder viver de acordo com os seus termos e condições, tal como não deixa de ser nobre que um trabalhador demita-se a ser demitido. O amor à vida é capaz de sujeitar o homem a uma existência humilhante, quando o faz preterir feitos nobres pela sua própria sobrevivência.

Enquanto humanos, que nos permitamos sempre uma vida digna, sem perder a consciência que a vida não é ao todo “um mar de rosas” e é em grandes tempestades que se relevam grandes marinheiros.

 

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