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Corpo, movimentos e emoções: as perspectivas de Pak Ndjamena

Pak Ndjamena é muitas coisas, no que à arte diz respeito. Entretanto, nesta entrevista, o bailarino e coreógrafo fala essencialmente de dança e do que esta manifestação cultural representa para si. Nesse contexto, o Director do Festival Raiz reconstrói o seu percurso, destacando o que contribui para que actualmente seja profissional de dança. Sem receios, Ndjamena também indica o horizonte que irá seguir quando, já com o peso da idade, não poder actuar em palco.

 

Considero a dança uma manifestação da alma através do corpo. Estou errado?

É com o corpo que nós expressamos os diferentes sentimentos e que fazemos uma reflexão para a sociedade.

 

Como é que o corpo se assume como um mecanismo de apreensão dos factores sociais?

Nós vivemos numa sociedade com vários estímulos, sejam políticos ou económicos. Tudo isso se reflecte no corpo. Então, de certa forma, a dança serve para colocar o corpo a apreender todos os estímulos através do movimento. Assim conseguimos transmitir alguma coisa e criar alguma transcendência para tocar as pessoas. Esse é o nosso grande desafio como artistas.

 

A dança está em justaposição com a vida, segundo sugere o seu espectáculo Justaposição “centauros”?

Sim, e essa obra foi uma colaboração com um artista visual, o Rafael Bordalo. Na altura fizemos uma pesquisa virada às sociedades de consumo e no que respeita ao poder político e económico que as sociedades têm, bem como a essa transformação que o mundo sofreu desde antes de Cristo até agora. Foi uma reflexão muito abrangente sobre essas sociedades: africanas, americanas e etc.

 

A dança consigo é, de facto, um movimento muito ligado à tradição, e que explora o social, o poder do ego e o poder do poder. Além de ser uma missão, o que a dança mais representa para si?

Eu nasci numa família de artistas. Os meus avôs dançavam para entreter e pela paixão. Eu também comecei na dança com paixão. Então, à medida que me fui profissionalizando, comecei a ter um rendimento. Para mim, a dança é vida, e surge como um dom. Não me surgiu por acaso. Eu sempre tive a dança dentro de mim, desde pequeno, e o contexto familiar favoreceu-me muito. O meu avô, João Rungo, foi um grande bailarino. Ele é uma das minhas inspirações, embora não tenha convivido com ele.  

 

Percebe que poderia investir na sua carreira quando começa a ter rendimentos?

Sim. Penso que a partir do momento que o artista passa a ter rendimento na arte que faz, torna-se profissional.

 

Começa o seu percurso na dança em 1996. Existe um período concreto para este tipo de princípio?

Para que tenhamos uma história com alguma emoção, temos de considerar os tempos primordiais. O princípio foi em 96, por causa das cerimónias familiares, em casa a dança sempre acontecia. Depois, os meus familiares aperceberam-se que eu tinha talento e a minha mãe levou-me à Escola Nacional de Dança. Foi assim que tudo começou. Claro, naquele tempo não estava preparado para as técnicas de dança modernas. Estava mais voltado para a dança tradicional.

 

Entretanto, não fica muito tempo na Escola Nacional de Dança…

Não fico muito tempo na Escola porque não me senti muito à vontade lá. Os preconceitos sobre a ideia de que o homem que faz dança é maricas e coisas assim afectaram-me emocionalmente. Curiosamente, antes de me inscrever na Escola Nacional de Dança, na altura, achava que aquela instituição era mais abrangente na questão do ensino das danças, e além do preconceito. Em pouco tempo saí e fui a um grupo cultural.  

 

Passam-se 24 anos, desde que se iniciou na dança. Comparando os anos 90 com o contexto actual, que diferenças destaca?

Naquela altura, havia muitos grupos, na cidade de Maputo, e muita dança. Por volta de 2010, muitos bailarinos começaram a trabalhar em outras coisas, deixando a dança para trás, mesmo por causa da questão sustentabilidade. Tipos como eu, Ídio e os outros que estão na Europa persistiram, reinventaram-se e conseguiram ser o que são hoje. Acho que é por esse empenho que os nossos projectos são bem recebidos a nível nacional.

 

O facto de sermos um país com muita dança tradicional torna a sua actividade mais simples ou mais complexa?

As duas coisas. Primeiro temos de ser um bailarino capaz de perceber a riqueza da dança que possuímos. Depois, é preciso haver condições de acesso e acervo. A tal preservação do património imaterial, que ainda falta.

 

É a pensar na preservação do património que faz questão de registar em vídeo os seus espectáculos?

Sim. Sempre tenho o cuidado de, ao fazer alguma obra, querer registar em vídeo ou fotografia. Repara que é com esse registo que conseguimos ter mais trabalhos.

 

Como pensa na dança nos próximos 24 anos?

Nessa altura, provavelmente, estarei fora dos palcos, a fazer coreografia. Acho que um bom coreógrafo deve ser um bom bailarino. Claro que existem bons coreógrafos que não foram bailarinos. Portanto, não me assusta a ideia de não poder dançar daqui a alguns anos, porque sempre posso fazer coreografia. A arte é vasta e a arte é incondicional.

 

Pak é um artista multidisciplinar. Existe uma área em que actua mais especial do que as outras?

Houve momentos que eu me colocava, primeiro, como bailarino. Há cinco anos, comecei a envolver-me com outras áreas artísticas. Hoje, já não me vejo apenas como bailarino. Vejo-me como artista.

 

É dos vários artistas moçambicanos afectados pela COVID-19. Por causa da pandemia, não vai poder realizar o Festival Raiz, que foi cancelado…

Infelizmente, foi cancelado. Teremos de nos reinventar. Teremos de seguir aquilo que o universo nos propõe. Por causa da pandemia, está-se a optar por eventos online. Iremos alimentar as pessoas com vídeos, memórias do festival e conversas com artistas através das redes sociais.

 

Numa conversa com Edna Jaime, a bailarina disse-me, há umas semans, que os bailarinos moçambicanos são mais valorizados no estrangeiro do que no país. Tem a mesma percepção?

Tenho, sim. Concordo absolutamente com isso, sobretudo na área da dança contemporânea. Acho que em Moçambique não existe valorização merecida. Mas acho que é assim em todo lado. Parece que basta atravessarmos a fronteira para temos valor. Nós valorizamos o estrangeiro, cá, da mesma forma que as pessoas dos outros países nos valorizam quando lá vamos actuar. O desafio é formar público, e o Festival Raiz e a ECA estão a trabalhar na preservação do património cultural moçambicano, com formação de público, de modo que os nacionais possam valorizar mais o que é nosso. Temos de levar a sério esta missão, porque em países como Senegal, sim, as pessoas têm o orgulho do que é tradicional e local.

 

É um dos bailarinos moçambicanos com uma expressão facial e corporal contagiante. O que contribui para o efeito?

Sinceramente, eu não consigo me espelhar. Espelho-me através dos outros. Fico feliz por essa observação. Acho que a expressão é das coisas mais fascinantes que temos na arte. Penso que o facto de ser actor também ajuda. Não é nada premeditado. Não trabalho a expressão facial. Acho que a minha forma de ser e de estar ajuda-me a saber como actuar.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro o novo trabalho de Rodhália Silvestre.

 

PERFIL

Pak Ndjamena é nome artístico de Bernardo Guiamba, produtor artístico, bailarino, coreógrafo e performer. Nasceu em Maputo e iniciou-se na dança em 1996, na Escola Nacional de Dança. Em 2001, surge-lhe a primeira oportunidade de formação em dança contemporânea, no Projecto Alma Txina. Colaborou e participou em vários projectos nacionais e internacionais. Actualmente, também exerce a função de Director do Festival Raiz.

 

 

 

 

 

 

 

 

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