O País – A verdade como notícia

Corpo, desejo(a), acção*

Às mulheres que amei e continuarei a amar…

A poesia não está na acção mas sim onde a acção termina; está onde a ponte entre uma

causa e um efeito se quebra e onde o pensamento vagabundeia numa doce liberdade ociosa.

in A arte do romance, Milan Kundera.

 

Olá a todos.

Antes de me perder nas armadilhas das palavras, primeiro quero agradecer à Matilde por me confiar a tarefa de apresentar o seu O perfume do pecado. Tenho noção do que significa um livro de estreia para um autor. Na verdade, até parece que é aí onde as coisas começam e tudo a seguir dependerá desse passo inaugural. Então, obrigado, Matilde, pela confiança?

Em segundo lugar, quero agradecer ao Camões por esta logística toda na promoção dos livros, dos autores e da literatura moçambicana em geral. Num mundo efémero como o nosso, é sempre agradável poder contar com pessoas e instituições que acreditam e investem na arte da palavra, porque, como bem afirma Blanchot, a palavra tem o poder de fazer as coisas aparecer.

Bem, a primeira vez que apresentei um livro aqui no Camões foi em 2014. Nessa altura fui o apresentador do romance biográfico Nós, os do Macurungo, de Adelino Timóteo, título que bem nos lembra um outro, Nós, os do Makulusu, de José Luandino Vieira. Acho muita piada, oito anos depois, voltar a apresentar uma obra literária aqui no Camões, no caso, de uma autora cuja escrita bem dialoga com a de Adelino Timóteo. Ou seja, do mesmo jeito que a obra timoteana encerra uma preocupação estética muito dedicada ao universo feminino, propondo debates importantíssimos para a sua compreensão, quer através na narrativa quer através da poesia, Matilde Chabana assim também procede com uma entrega desconcertante nesta sua inicial apresentação em livro. Certamente, temos aqui matéria mais do que suficiente para a produção de novos conhecimentos sobre a literatura, a cultura e a sociedade moçambicanas por via de um exercício comprativo.

Indo ao que realmente interessa, a razão de cá estarmos reunidos, eu intitulei esta apresentação da seguinte maneira: Corpo, desejo(a), acção. Optei por um título simples, com recurso a três palavras separadas entre vírgulas porque, na minha opinião, cada uma tanto é imensurável quanto polissémica. Simultaneamente, isoladas ou em concordância, as três palavras atravessam toda poesia de Matilde Chabana.

Começando com o primeiro termo, corpo, quem lê a Bíblia Sagrada deve saber que num dos versículos do livro Génesis diz-se que a mulher foi criada com base numa costela do homem para o fazer companhia. Desde os meus tempos de catequese, tenho imensas dificuldades em aceitar esta narrativa que está na origem da subalternização da mulher em várias sociedades. Geralmente, o que está escrito na Bíblia é inquestionável, então, basta uma interpretação errada, extrema ou defeituosa para a religião e os mandamentos da lei de Deus ficarem corrompidos.

Não sei se é por ser belo ou sensual, mas constato que o corpo da mulher é essa coisa proibida de estar exposta, porque não pode, não fica bem, desvirtua. Se os preconceitos fossem apenas nessa ordem, a situação até não seria tão grave. O maior problema é o transporte de toda inibição à volta do corpo feminino para o ser feminino. Assim, as mulheres não podem e não devem fazer tanta coisa.

Através de um discurso bíblico ou religioso, se preferirmos, e de um discurso cultural, a condição da mulher foi sempre relegada a segundo plano. Ora não pode votar, ora não pode ir ao cemitério, ora não pode conduzir, ora não pode ser padre/ pastor, ora não pode ser líder de um império/ país, ora não pode ficar na casa que construiu com o marido, quando este é o primeiro a partir. Então, o corpo feminino é um objecto sofredor, cujo drama atravessa imensos ciclos até a dor perfurar a sua alma, encarcerando-a ou condicionando-a.

Pensar o corpo é importante porque nele está uma forma de exprimir sentimentos, emoções, ideias, identidades e personalidades. Condicionar a possibilidade de a mulher ser dona de si, nesse sentido, é impedir a tal emancipação referenciada a cada mês de Março e Abril. A emancipação feminina é mais do que ter 50% das mulheres do governo – não me revejo nesse tipo de percentagem. A emancipação, na verdade, deve começar em casa e ser continuada na comunidade, na escola, na igreja e em todos os sectores sociais. O problema é que “ninguém” educa as nossas raparigas a serem donas do seu corpo e, por consequência, dos seus desejos. Penso, por exemplo, nas meninas dos nossos diversos distritos, que, ao menstruarem pela primeira vez, são “vendidas” a um homem idiota que não sabe distinguir uma mulher de uma criança. Por isso, na melhor das hipóteses, essas meninas tornam-se mães aos 14 ou 15 anos de idade. Digo melhor das hipóteses porque, muitas vezes, elas morrem, por razões óbvias, durante o serviço de parto.

Nós precisamos de alterar urgentemente esse quadro. E como se faz isso? Ensinando as meninas a serem donas dos seus próprios destinos e as mulheres a comandarem os seus desejos. Esses desejos podem começar com a simples vontade de fazer do corpo uma voz contra o mando. Depois, os desejos podem ampliar-se para lá do sexo. “More than just sex”, como bem canta Lokua Kanza, o que não quer dizer que o sexo é irrelevante. Pelo contrário, é crucial e lidera muitas situações na negociação entre as mulheres e os homens.

O outro problema é que até na questão sexo, uma bênção da natureza, a tal da sociedade quer mandar nas vontades particulares das mulheres como se elas fossem todas iguais e aspirassem pelas mesmas coisas. Há um termo que me acaba. Ninfomaníaca, isto é, toda a mulher que possui desejo anormal de fazer sexo. O termo tem conotações pejorativas e nunca se pode adivinhar elogios. No entanto, quando se trata do homem que gosta e assume esse desejo anormal de fazer sexo, é um player, um ponta-de-lança que geralmente merece respeito e palmadinhas às costas. Por que eles podes e elas não? Por que eles, e eu incluo-me neles, almejam tanto ditar regras no corpo delas e nos desejos que se querem concretizados?

Minhas senhoras e meus senhores, O perfume do pecado, de Matilde Chabana, é uma acção acirrada a favor da rapariga e da mulher. Logo, contra a ordem subalternizante, contra os tabus, contra a insignificância, contra os preconceitos. É um grito firme pela liberdade, porque a liberdade conquista-se todos os dias e de múltiplas formas. Temos aqui uma poetisa atenta ao seu mundo interior na mesma proporção que capta angústias do meio à volta, uma poetisa que conhece o ser feminino nos seus silêncios, longe das amarras institucionalizadas.

Dividido em duas partes, “Do pecado” e “O perfume”, a criação literária da Matilde é fundamentalmente um produto da sensualidade. O corpo, o desejo e a acção (ou o corpo que deseja acção) são elementos dessa situação imanente, para muitos, o zénite da vida disfarçado em sensações inefáveis.

A nossa poetisa sabe, e não é por ser mulher, levar às costas das linguagens cenários de uma condição urgente alterar. Com isso, os 52 poemas que compõem o livro quebram muros sem jamais abandonarem a subtileza exigida num poema. É como digo no prefácio do livro, na obra da Matilde, “a palavra personifica estados anímicos de entidades ansiosas em gozar o grau superlativo das suas sensibilidades. Aqui as musas não são meras invocações secundárias de sujeitos iluminados. Não. As musas indisfarçadas conjugam incessantemente o verbo agir, resignando-se a ser, parafraseando Virgílio de Lemos, cópias melhoradas deste desvario que tem sido o séc. XX e XXI”.

Mesmo a propósito do verbo agir, para Milan Kundera, “a poesia não está na acção mas sim onde a acção termina; está onde a ponte entre uma causa e um efeito se quebra e onde o pensamento vagabundeia numa doce liberdade ociosa”. Palavras bonitas essas extraídas de A arte do romance. Gosto de as ouvir sempre que as digo. No entanto, não sendo aquela uma mentira de Kundera, que condiz com o leitmotiv dos sujeitos de enunciação de O perfume do pecado, Matilde Chabana esmera-se em apreender poesia em tudo, sobretudo na acção. É um mar de contradições e emoções. Poderíamos imaginar a existência sem isso?

Evidentemente, essa é uma questão retórica. A pergunta que eu gostaria que me respondessem, mesmo a recuperar a minha ideia anterior, sobre não adiarmos mais a ensinar as raparigas e as mulheres a comandarem os destinos dos seus corpos e desejos, peço a vossa colaboração para uma pequena demonstração. Mulheres, quantas de vocês já disseram a um homem “eu amo-te”, sem que fosse o vosso namorado ou marido? Por favor, levantem a mão. Certo. Vejo quatro mulheres num universo de 30. Ainda para as mulheres, quantas de vocês já disseram a um homem que gostariam de fazer amor com ele, sem que fosse o vosso namorado ou marido? Agora noto que o número diminuiu, só temos uma mulher num universo de 30.

Agora coloco a pergunta aos homens. Quantos de vocês já disseram a uma mulher que “eu amo-te” sem que fosse vossa namorada ou mulher? Homens, por favor, não me envergonhem. Ah, sim, já estava a ver… mais ou menos 20 homens num universo de 25. E quantos de vocês já disse a uma mulher que “desejo-te levar à cama” sem que ela fosse namorada ou esposa? O número continua significativo.

Ou seja, este exemplo caricato serve para compreendermos que a nossa sociedade educa os rapazes para uma condição, mas, depois, esquece-se ou, propositadamente, não educada a rapariga para a mesma situação. Damos privilégios a uns e retiramos a outras. Mais tarde, quando eles são crescidos, queremos que realmente a expressão “direitos iguais” seja consistente. A isso chama-se empurrar o vento com a barriga. Sabendo disso, Matilde investiu na desconstrução de mentalidades há muito tempo enraizadas nas nossas cabeças. Há-de ser por essa razão que o título do seu livro já lança esse desafio rumo à confrontação do pecado. Bem dito, em Chabana o pecado é a coragem de atravessar fronteiras, de ser, de existir, de assumir e de partir, porque ficar, ficar é tão confrangedor, deprimente.

Nessa ordem de pensamento, os sujeitos de Matilde Chabana estão muito interessados em subverter o pecado e as habituais relações significado e significante, inerentes, claro, ao universo feminino. É esta a proposição que me leva a acreditar que O perfume do pecado é um tabuleiro de xadrez, onde se confrontam bispos e rainhas como Lueji (personagem de Pepetela), mais reais e representativas.

Quem for a ler este livro vai identificar uma complexa contestação ao abismo e à loucura causados pelos homens, porque “o amor deve ser feito como e quando se quiser”. Estes versos da Matilde, de facto, pungentes, lembram-me Caetano Veloso, quando na música “Nosso estranho amor”, diz-nos: “Não importa com quem você se deite, que você se deleite seja com quem for”. Conclusão, o amor é plural e incondicional. Não cabe em rótulos e tão-pouco na incisão dos órgãos genitais femininos que urge combater. O amor é bom, para todos, “sexo é poesia” e não deve ser construído unilateralmente às custas da servidão de um género que só é frágil aos olhos dos que usam óculos de madeira.

Já a terminar, leio-vos o seguinte poema:

No auge

Deixa estourar

a imensidão da embriaguez

possua-me com a boca, o corpo

com as vozes da alma

corra-me em fio a tua virilidade

e quebra todas as regras de etiqueta porque hoje…

hoje

         não quero

ser

         perfeita! (p. 35).

 

E agora o excerto do poema “Streaptease”:

no fundo

entre as paredes e nossos desejos um som calmo e

penetrante

deixa-me embriagada:

o “Dance for you” da Beyonce

oh, sim!

não sou do tempo

que as mulheres são inibidas, não!

Sou do tempo que as mulheres algemam os homens,

do tempo em que as mulheres renascem sorridentes (p. 58).

 

No primeiro caso, se a perfeição é um defeito, por constituir muitas grades de cadeia ao ar livre, o pecado é a gazua para libertação; a gazua que abre a porta da pluralidade do ser indomável.

Já no segundo caso, o passado não justifica o presente e nem define o trajecto para a felicidade plena, diga-se, terrena, porque o paraíso encontra-se em todo lugar, nesta vida, sem essa de termos de morrer para o alcançar.

Enfim, se puderem, leiam O perfume do pecado, para que, conforme a Matilde me escreve no autógrafo do livro, não morra a língua do poeta.

Obrigado pela atenção!

 

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro O perfume do pecado, de Matilde Chabana, dia 26 de Janeiro de 2022, no Camões – Centro Cultural Português em Maputo.

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