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Constituição não clarifica como responsabilizar um antigo chefe de Estado após cessar funções

Ao “Noite Informativa” da Stv, na terça-feira, o jornalista e jurista Ericino de Salema disse que a Constituição da República não diz com clareza de que forma os antigos chefes de Estado são responsabilizados por crimes de que forem acusados, eventualmente, depois de cessarem funções. O que há é uma interpretação da própria Constituição mas em paralelo com outras leis. De Salema afirmou ainda que está expectante em relação ao que o antigo Presidente, Armando Guebuza, vai “arguir em sua defesa tendo em conta os pontos objectivos colocados pela Procuradoria-Geral da República” no processo sobre as dívidas ocultas contraída durante o seu mandato.

 

É possível responsabilizar, no nosso contexto jurídico, o ex-Presidente da República, Armando Guebuza, no âmbito do processo sobre as dívidas ocultas?

Na verdade, a nossa Constituição da República, diferentemente do que sucede com muitas constituições, não se refere expressamente àquilo que deve ser o tratamento aos antigos chefes de Estado em situações destas. Refere-se apenas, nomeadamente no seu artigo 152, à responsabilidade criminal do Presidente da República em exercícios de funções. Depois diz que por actos que nada têm a ver com as suas funções de presidente. Por actos supostamente criminais cometidos durante o seu consulado, os presidentes da República respondem em tribunais comuns, mas findo o seu mandato.

E quanto aos presidentes em exercício, a Constituição refere que podem ser responsabilizados ainda em funções, nomeadamente num fórum especial, o Tribunal Supremo, bastando para o efeito que se cumpram três requisitos: primeiro, pelo menos um terço dos deputados da Assembleia da República deve solicitar que tal seja feito. Segundo, depois a plenária da Assembleia da República deve confirmar essa pretensão com votos de pelo menos dois terços dos deputados. Terceiro, a Assembleia da República deve submeter um aval nesse sentido à Procuradoria-Geral da República para confirmar ou não a pretensão. Confirmando, o processo avança. Caso contrário, não.

E nisso, o Tribunal Supremo, quando recebe o documento da Procuradoria-Geral da República, tem um máximo de 60 dias para julgar o caso e decidir, enquanto o Presidente da República, nesse momento, deve estar obrigatoriamente suspenso das suas funções. Entretanto, quanto aos antigos presidentes da República nada decorre expressamente da Constituição. Apenas chegamos lá por via da interpretação. Por exemplo, nos artigos 163 e seguintes, acha-se presente aquilo que deve ser o tratamento em geral que deve ser dado aos membros do Conselho de Estado. E o Chefe de Estado é membro do Conselho de Estado.

Então, como tal, um certo nível de imunidade, certo nível de tratamento e deve ser por aí que eventualmente se deve ir. Sem deixar de lado o facto de nos termos do regime do 152 da Constituição, o antigo presidente ou de há-de ser responsabilizado criminalmente pelos crimes cometidos no exercício de funções, enquanto cidadão comum, mas naturalmente em fórum especial, enquanto membro do Conselho de estado.

Outra hipótese seria considerar que, e como a Constituição nada diz, não seria criminalmente responsabilizado, o que não seria razoável num Estado de Direito Democrático, num Estado em que todos somos iguais e temos que responder pelos nossos actos, apesar de ser claro que um antigo Chefe de Estado em nenhum momento há-de ser um cidadão comum. Então, acho que esta a perspectiva constitucional.

Por outro lado, temos a dimensão da lei ordinária (…). Nos termos da lei do Conselho de Estado (05/2005, de 01 de Dezembro), interpretando os artigos 15, sobre a imunidade, e 16, sobre se os membros podem ser declarantes, testemunhas, ou peritos em processos, eu acho que, honestamente, a interpretação do Presidente Guebuza é correcta, no sentido de que o artigo 16 é claro ao dizer que os membros do Conselho de Estado não podem prestar declarações, ser testemunhas e actuar em processos como peritos sem que haja uma autorização expressa do Conselho de Estado. Finalmente, ao cabo de dois anos, houve essa autorização e já se avança nesse sentido. Ao que parece, dos documentos que circulam, há-de ter que ser uma resposta escrita, tendo em conta o leque de quesitos apresentados pela Procuradoria-Geral da República.

 

Durante o exercício das suas funções, o Presidente da República é um órgão de soberania, razão pela qual goza de imunidade. Para a sua eventual responsabilização criminal há pressuposto a observar. Após a cessação de funções, enquanto Presidente da República e antes de entrarmos no capítulo de ele ser membro do Conselho de Estado, não se espaço para ele ser considerado, na qualidade de cessante, cidadão comum e passível de responsabilização criminal? Coloco esta questão porque, se calhar, abrir-se-ia um precedente para que os ex-presidentes da República não sejam responsabilizados por automaticamente passarem a fazer parte do Conselho de Estado.

Não. Apesar de [um ex-presidente da República] passar a fazer parte do Conselho de Estado, nos termos (…) da Constituição e da lei do próprio Conselho de Estado, o órgão [Conselho de Estado] deve intervir autorizando para que eles [os membros do Conselho de Estado] sejam, por exemplo, ouvidos nos termos do artigo 16. Ou, sendo o caso, detidos, privados de liberdade no geral, nos termos do artigo 15.

Entretanto, o certo é que a nossa Constituição, nomeadamente o artigo 152, sobre a responsabilidade criminal do Chefe de Estado, por actos no exercício de funções ou por actos fora do exercício de funções, mas enquanto presidente da República, acho que foi um erro termos estabelecido esse regime quase cópia integral do regime português, sem termos considerado a previsão de um regime específico para um antigo chefe de Estado, para que aquilo que é o processualismo não decorresse da interpretação mas se achasse expresso na própria Constituição da República.

Apesar de ser membro do Conselho de Estado, o antigo Presidente da República [Armando Guebuza] não é um membro igual aos demais (…). O antigo Chefe de Estado, tendo exercido uma função enquanto o mais alto Magistrado da Nação naturalmente que tem certas informações sensíveis do próprio Estado, que por via disso, deveria ser, a meu ver, a própria Constituição a estabelecer o próprio processualismo para os antigos chefes de Estado. Entretanto, eu acho que devem sempre ser responsabilizados por actos criminais.

Um estudo de 2018, a que tive acesso, referente a cerca de 40 países no mundo, olhando para a África (…) refere que os antigos presidentes de República ainda gozam de imunidade no fim das suas funções. Entretanto, excepto os casos em que sejam acusados de crimes de alta traição à pátria é que essa imunidade deve ser quebrada. Em certos países dever ser o próprio parlamento a intervir. Noutros países deve ser o chefe de Estado em exercício. Noutro ainda deve ser o tribunal supremo. O ponto aqui é o que é alta traição? Cada país define da sua forma, consoante a sua constituição e leis penais. Mas, no geral, os países coincidem numa coisa: o crime de corrupção, o crime de desrespeito à constituição, o crime de desordem à soberania (…), há-de ser quilificado como alta traição à pátria. O caso das dívidas ocultas a Constituição [em Moçambique] não foi respeitada, a Assembleia da República não foi intimada [a pronunciar] como era suposto nos termos da Constituição. Logo, iriamos qualificar este caso, em concreto, como equivalente a essa situação.

 

Olhando para a nossa realidade, tendo em conta esta ambiguidade em relação à responsabilização dos ex-presidentes da República, e perante uma situação em que temos um ex-presidente – ainda não é arguido – que foi citado pela Procuradoria-Geral da República e quer ouvir seus esclarecimentos. Que saída a nossa lei permite ter para ouvir Armando Guebuza e chegar à responsabilização civil ou criminal, dependendo daquilo que for apurado?   

O artigo 152 da Constituição da República, apesar de não existir um regime específico para um chefe de Estado (…) há-de existir uma forma de ser responsabilizado, tendo em conta o processualismo e o estatuto que gozar nesse momento, como é o caso do antigo Presidente de Guebuza, neste momento membro do Conselho de Estado. O Conselho de Estado há-de ter sempre que intervir se o processo evoluir e chegar à conclusão de que o Presidente Guebuza deve ser constituído arguido. Eventualmente terá que se privado de liberdade (…). Juridicamente, também, o pronunciamento do Conselho do Estado tem muita pouca relevância, porque emite apenas um aconselhamento para o Chefe de Estado. A decisão final compete ao Presidente de República, Filipe Nyusi, ainda que, hipoteticamente, todos os membros do Conselho de Estado votem contra (…).

 

Salema, na sua visão o Conselho de Estado o Conselho de Estado deveria autorizar Armando Guebuza a prestar declarações [ao PGR]?

Eu acho que sim, deveria autorizar. E quem diz Conselho de Estado, no fim do dia diz Presidente da República, Filipe Nyusi. Aliás, pelo discurso do Presidente Guebuza acho que ele próprio está certo de que essa é a via.

O Presidente Guebuza deve celebrar a oportunidade que tem de defender a sua inocência técnica. Entretanto na praça pública é considerado culpado pelas dívidas ocultas, e não sem razão tendo em conta o regime do número 3 do artigo 201 da Constituição da República, que refere que a presença do Presidente da República, enquanto Chefe do Governo, é obrigatória nas sessões do Conselho de Ministros que aprovam políticas estruturantes da vida do país. Então, o que sucedeu até a consumação das dívidas ocultas não pode da ProÍndicus, Ematum e MAM não pode ter sido feito sem o beneplácito do Chefe do Governo, que é o Presidente da República, porque uma situação dessas seria até inconstitucional, tendo em conta que ele não teria tomado parte (…). Portando, estou expectante em relação ao que o Presidente Guebuza há-de arguir em sua defesa tendo em conta os pontos objectivos colocados pela Procuradoria-Geral da República em Outubro ou Novembro de 2018.

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