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Consciência, liberdade e escolhas: as Asas de Lex Mucache

O homem só é consciente quando pode servir-se da sua própria inteligência.

Rodrigues Júnior

 

Para Lex Mucache, escrever é um acto de libertação da consciência? Pode ser muito cedo para darmos uma resposta categórica nesse sentido. Entretanto, ao analisarmos Asas decepadas, seu livro de estreia, constatamos um certo interesse de o autor usar a ficção no encargo da emancipação da razão, sem vulgarizar um eventual propósito literário.

No seu livro com 18 contos, primeiro, Lex Mucache apresenta-se como um escritor deveras interessado em representar questoes ligadas à moral, à solidariedade e à fraternidade na perspectiva comunitária. Em geral, as histórias dos seus contos ou desenrolam-se no meio rural ou situam-se em contextos humildes, às vezes, sem se esforçararem em garantir uma abordagem concreta do lugar. Esta estratégia atribui ao espaço narrativo uma certa autonomia em relação à realidade, tornando a história mais flutuante, no entanto sem se desligar dos substractos que a sustentam.

O primeiro conto do livro, “Asas decepadas”, o que o intitula, logo acusa as qualidades literárias de Lex Mucache na concepção do conto. Ao localizar a sua narrattiva em duas dimensões, no ar e na terra, o escritor leva à sua história uma alegoria da natureza humana, através da qual se evidenciam comportamentos, contrassensos e cenários que diluem quaisquer ambiguidades sobre a lógica insana do poder.

“Asas decepadas” é um conto sobre os possíveis mecanismos de controlo social por parte dos que temem os impactos da consciencialização das massas. Na história, existe uma personagem contratada pelos poderosos para decepar as asas de todas as aves, Ivan Brainovich, de modo que estas possam ser facilmente vigiadas em terra firme. “Os populares [inconscientes?] jubilavam; não mais necessitavam de gaiolas e vedações, pois todas as aves andavam à solta pela freguesia. Era aí em que residia o paradoxo das aves, numa liberdade que era a pior das prisões. E sempre que o conselho se reunia para o balanço habitual, o chefe dos contratadores dizia: ‘Recordam-se da controvérsia que, outrora, divergiu os colonialistas a respeito do nosso saudoso Chitlango? Pois é, caros amigos, está ultrapassado! Lacrado e carimbado. Aqui não há águias, apenas galinhas.’” (p. 12)

Entretanto, a certa altura, o próprio decepador de aves apaixona-se pela possibilidade de voar, ser livre, que usa as asas dos pássaros para se lançar em outras dimensões. O traiçoeiro projecto dura pouco tempo, afinal os poderosos do lugar têm sempre outros artifícios para dominar e amputar iniciativas improvisadas como aquelas. Ivan Brainovich é derrubado em pleno voo e, com mais cuidado, os obcecados pela manutenção do status quo decidem não só continuar a decepar os pássaros bem como passam a colocar todos em gaiolas.

O conto inaugural deste primeiro livro de Lex Mucache é de tal ordem impactante que é impossível não relacionar com a política ou com os jogos de controlo social. Colocando humanos e aves na mesma história, primeiro, o autor activa esse fascínio comunitário que norteia todo o seu discurso narrativo. Segundo, coloca os homens como vilões capazes de violar a essência dos fenómenos naturais para o seu próprio benefício. Terceiro, poe-nos a reflectir sobre o preço real da estabilidade democrata, na relação entre interesses de classes. É um conto para reler várias vezes e até compará-lo, por exemplo, com As aves, de Aristófanes.

Lex Mucache prova, neste seu Asas decepadas, ser um autor com capacidade inventiva para acrescentar qualidade à ficção moçambicana. A sua escrita não é refém de aspectos técnico-narrativos. Ainda assim, o seu estilo narrativo, aparentemente despreocupado, incopora nas histórias algumas marcas discursivas próximas à oralidade. Quem for ler o livro poderá ficar com a percepção de já ter sido contado a história intitulada “Os três viajantes”, cujo enredo é típico das narrativas orais moçambicanas reproduzidas para legitimar regras e veicular valores. Essa é a história de três homens, que partem numa viagem com objectivos diferentes. Sintetizando, do trio apenas triunfa aquele com coração nobre, preocupado em salvar a sua comunidade da seca e das epidemias, que soube ouvir. Os outros dois, por terem desrespeitado as regras da boa conviência e da solidariedade, perderam-se dos prováveis caminhos auspiciosos.

O livro de Lex Mucache é muito comprometido com os contextos que alude. Certamente, o escritor deve ter escrito os contos depois de ter definido os temas do seu interesse, consoante o que sente, o que pensa e o que passou. Logo, em pequenos fragmentos captam-se retratos passíveis de nos proporem reflexões profundas sobre Moçambique. “O motim” é um exemplo doloroso, mas relevante para o efeito. Dizemos o mesmo de “O retrato milagroso de Ben Mabunda”, conto que extrai das nossas rotinas quotidianas uma luz de esperança. Na dor, Lex encontra aspirações e, inevitavelmente, o seu leitmotiv.

Num outro ângulo, no seu Asas decepadas Lex Mucache inclui histórias sobre a justiça e sobre o que se julga isso ser. Paralelamente, revela-se um autor vinculado à sua contemporaneidade. Por exemplo, quando escreve sobre o que fomenta o terrorismo em “A missão”:

“No princípio, Laurindo era um pacato chefe de família e fiel de armazéns. Conferia produtos, controlava a entrada e saída de bens. Várias foram as vezes em que os colegas tentaram aliciá-lo, para fazer alguns desvios, mas ele nunca cedeu. Insatisfeitos pela sua rectidão, os colegas montaram-lhe uma armadilha. Uns produtos roubados na pasta de Laurindo levaram à sua expulsão. Depois que ficou desempregado, perdeu também a esperança; quem contrataria um homem na casa dos cinquenta e que pouco sabia fazer? Imediatamente, atirou-se às bebidas destiladas, passando todos os dias bêbado” (p. 59).

Este excerto justifica o que se vai passar com o protagonista em toda história. E, mais do que uma narrativa sobre o terrorismo, “A missão” é um conto escrito para ajudar a compreender esse fenómeno a ondular entre o que se julga ser fé e a fatalidade, claro, sem julgamentos reducionistas mesmo entre as personagens.

O sonho é outro factor na órbita de Mucache, todavia sugestivo quando é impossível de concretizar. Verdadeiramente “pedagógico”, o escritor dá vitalidade a Mussa e Abu, perdedores enganados pelas suas pretensões. Na verdade, recorrendo a essa dupla, Lex Mucache desconstrói a ideia romântica de que a coragem e a persistência levam as pessoas à vitória. Em Asas decepadas as escolhas é que determinam o destino das personagens. Como aprender a escolher certo? Muitas vezes, é sobre isso que Lex Mucache escreve.

 

Título: Asas decepadas

Autor: Lex Mucache

Editora: Kulera

Classificação: 14

 

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