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Condomínio

Por: Nito Ivo

 

Desde o primeiro alvorecer gravado pela minha memória os registos lá mantidos são de um Carlitos a viver inúmeras vidas, cada uma recheada de atribulações e peculiaridades próprias, de tal sorte, ou infortúnio, que as minhas primeiras vidas indeferiram-me o privilégio de frequentar a escola. Comecei a estudar aos doze anos de idade. Dali a quatro anos, numa severa manhã encharcada por uma cacimba horrível, ao sair de casa para a escola a minha mãe disse-me toda alegre que naquele dia passavam dezasseis anos desde que eu havia iniciado a minha segunda vida, depois de ter vivido a primeira no ventre dela. Foi também a derradeira ocasião em que a minha mãe me viu. Ao regresso da escola, onde frequentava a quarta classe, os homens do Centro de Recrutamento atribuíram-me dezoito anos de idade. Para eles as pessoas da minha terra ocultavam a idade avançada por detrás da baixa estatura física. Diziam que éramos baixinhos de propósito. Que éramos baixinhos por livre e espontânea vontade. O chamamento veio-me com o auge da guerra, aquela que uns a catalogam de guerra de desestabilização e outros a chamam de guerra pela democracia. Para mim era apenas guerra, composta de missões, emboscadas, batalhas e sangue. Ao serviço da nação desempenhei a tarefa com entrega e abnegação na infantaria. Participei em inúmeros combates sangrentos, sacrifício premiado com a patente de capitão quando eu tinha apenas dezanove anos de idade. Vivia eu a vida de capitão. Eu era o capitão Carlitos, reverenciado pelos meus homens, elogiado pelos meus superiores e temido pelo adversário. Nas frentes de combate da Província da Zambézia, escrevi histórias de guerra com a tinta de ferro e fogo que saía da ponta da minha arma, episódios que o Estado-maior General julgou dignos de serem recontados na primeira pessoa no Distrito da Moamba.

Eu, capitão Carlitos nascido no Alto Molócuè, desembarquei com honra na capital da República Popular de Moçambique de um Antonov da Força Aérea que me levou da Cidade de Quelimane directamente para Maputo. No mesmo dia parti de comboio para Moamba. Ainda no Antonov, narrava eu sobre uma das minhas vidas a um cubano que viajava comigo. Ele apenas disse: — “O homem que desconhece ao menos um motivo pelo qual morreria, não está preparado para viver.” — O cubano disse-me que tal frase havia sido proferida por um norte-americano chamado Martin Luther King. Abstive-me de diligenciar detalhes adicionais sobre o tal sujeito. Para mim era óbvio que o senhor King era um homem de dignidade, um guerreiro de alguma causa, um homem na frente de algum tipo de combate. Estava claro também que Martin Luther King não era menos do que um capitão na luta que ele travava, seja ela qual for. De resto, mais tarde haveria de aperceber-me de que as minhas vidas de militar aprumavam-se de dignidade justamente porque havia uma causa pela qual morrer. Foram vidas que deixei para trás junto às respectivas dignidade que carregavam quando os ventos da paz soprados pelos Acordos de Roma trouxeram-me o zéfiro da desmobilização e uma nova vida. Os mesmos ventos levaram para sempre a minha patente de capitão.

O ii ponto do sexto capítulo do Protocolo IV do AGP preconiza a reintegração económica e social dos militares desmobilizados. Ainda no pacote de benefícios aos ex-militares oferecia-se a possibilidade de regressar à proveniência mas naquele momento os projectos desenhados na minha cabeça pretendiam usar o dinheiro da reintegração económica e social para adquirir vários produtos em Maputo que me serviriam de catapulta num negócio próprio na minha terra. Contra as minhas espectativas, entretanto, a vida civil acolheu-me com um combate bem mais severo e desgastante do que aqueles que travei nas matas da Alta Zambézia e posteriormente no distrito da Moamba. Era o medonho combate burocrático de cujo objectivo era o de provar que eu havia lutado durante oito anos nas fileiras das forças governamentais, isso porque o estado assegurava que não recrutava jovens de idade inferior a dezoito anos de idade. O intempestivo empecilho privou-me do acesso ao merecido benefício. O processo das minhas nobres vidas militares entalava-se entre o calhamaço dos prováveis falsificados. Entre aqueles civis que reivindicavam benefícios iguais aos dos militares sem que tivessem pegado em armas. Aquelas pessoas sem dignidade que não morreriam por ninguém. Eu, capitão Carlitos, recebia a mesma desconsideração que esses miseráveis recebiam. Foi um tanto frustrante ouvir o mesmo estado que me recrutou aos dezasseis anos de idade a negar de pés juntos que o tinha feito. E não era a única batalha desafiadora que a burocracia me propunha. Para o estado era inconcebível que eu tenha sido elevado à patente de capitão com apenas dezanove anos de idade. Aquele mesmo estado que me atribuiu a patente de capitão negava tê-lo feito. Entretanto o calendário impaciente fazia os dias correrem uns atrás dos outros sem parar. Naquele momento senti imensas saudades das minhas vidas militares onde durante as minhas incursões eu desbravava destemido as matas como um tubarão vara as correntes dos oceanos. E tal como um tubarão, eu tinha o respeito de todos por onde passasse, das populações sob a minha protecção e dos meus bravos soldados. No teatro de operações, jamais vi-me na contingência de ter de apresentar provas que eu era um capitão. As tropas do outro lado estavam cientes que eu existia. Sabiam que havia um miúdo Lomwé, baixinho e escuro que era muito perigoso. O adversário aterrorizava-se com a eventualidade de um encontro comigo. De resto, foi pelo reconhecimento das minhas habilidades de capitão que se fez o estado mandar um Antonov para transportar-me de urgência da Zambézia para Maputo. O mesmo estado que continuava a recusar-me tal patente.

Para enfrentar tão estafante missão de combate contra o exército muito bem armado e equipado de canetas, papéis, e aquartelados em gabinetes climatizados, entrincheirei-me na periferia de Maputo onde o meu salário de guarda de segurança privada pudesse sustentar as rendas. Iniciava-se assim a minha missão de vida mais longa e desgastante, e com efeito, vinte anos depois da desmobilização nenhum benefício tinha-me chegado aos bolsos. O estado continuava a insistir que eu era um civil embusteiro apesar das declarações de várias testemunhas que tinham estado comigo nas matas da Moamba. Havia, entretanto, alguns indivíduos cujos testemunhos eram sempre válidos para quem quer que fosse. Ainda que não me tivessem conhecido no teatro de operações poderiam testemunhar a meu favor desde que os enviasse um envelope de gratidão. “Eu fui patenteado capitão por merecer! — Vociferei-lhes desgostoso com o indicador direito em riste, como se fosse o cano de uma pistola mirando-lhes as malditas cabeças. — Não pactuo com essas brincadeiras! Na minha vida de capitão o inimigo enviou emissários com a promessa de sacos de dinheiro para mim acaso os fizesse as vontades, mas amarrei pessoalmente os quatro mensageiros de seguida encaminhei-os ao interrogatório da inteligência militar. Vocês merecem punição, mandar-vos estender os braços, ficarem tipo cruz, desde manhã até anoitecer.” Assim indeferi aquela vergonhosa proposta.

E foi no embalo da esperança de que o imbróglio processual pudesse ser rapidamente esclarecido que as minhas raízes foram-se enterrando numa dependência de único cómodo, ao fundo de um pequeno quintal que acolhia três outros compartimentos habitados por igual número de famílias. Nos bairros suburbanos de Maputo chamávamos os quintais partilhados por várias famílias de condomínio. Alegrava-me a ironia do nome que também é usado pelos ricos para descrever a localização das suas casas.

No condomínio em circunstância havia ainda uma mafureira mesmo na entrada cuja sombra cobria um balcão feito de restos de madeira no qual lavava-se os alimentos e a louça servindo-se de bacia porque a única torneira localizava-se num canto distante de onde era realmente necessária e servia unicamente para que cada família enchesse os seus recipientes. A casa de banho estava ao fundo direito do quintal, era comum, a céu aberto, cujas paredes de cimento rebocado por dentro e por fora sem pintura era de tal altura que permitia o banhista ver e ser visto do quintal. Não havia cozinha no condomínio.

Os meus vizinhos do condomínio moravam entre as suas próprias famílias. Eu, por obstinada necessidade morava sozinho no quartinho número quatro, de único cómodo. Era também uma estratégia daquele combate de vida civil que obrigava a aparta-me de envolvimento afectivo duradouro, porquanto as minhas malas aguardavam prontas para partir de regresso ao Alto Molócuè logo que o dinheiro da reintegração económica e social chegasse-me aos bolsos.

O meu posto de trabalho, como guarda de uma empresa de segurança privada, era numa agência de um banco comercial. Quarta classe e experiência com armas de fogo oferecia não mais do que isso. Era o que eles viam em mim, uma pessoa que abandonou a escola na quarta classe para aprender a disparar. A minha experiência de capitão não os dizia nada. Eu estava sujeito ao comando de civis sem conhecimento de estratégia. Alguns estavam investidos de autoridade para vociferar comigo como eu berrava para os meus soldados. Naquele emprego sentia-me prisioneiro num quartel inimigo, apenas com direito aos benefícios do sétimo e do oitavo ponto da Convenção de Genebra de 1949 que proíbe a tortura e determina que todos os prisioneiros devem receber água e comida, que me chegavam em forma de um mísero salário.

Numa quinta-feira em que havia promessa de salário, mas não se cumpriu, ao fim da tarde a fome agitava terrivelmente a minha preocupação porque os meus bolsos acolhiam a minha derradeira riqueza monetária suficiente para única viagem de chapa, a viagem de regresso à casa, e em casa não tinha nada para cozinhar, nada para comer, isso depois de ter passado o dia com praticamente nada no estômago. Depois que desci do chapa, vindo do serviço, pus-me a marchar em direcção ao condomínio. Coluna retesada, passos largos, peito fora e cabeça erguida. De resto, nem os vinte anos fora do exército e nem a excessiva fome daquele dia aniquilaram-me a postura militar. Havia, entretanto, a mercearia da Tia Catarina localizada no caminho pelo qual eu iria passar, pintada toda de amarelo com um letreiro por cima escrito “Mercearia Canarinho” em enaltecimento ao Costa do Sol, clube do coração do esposo da Tia Catarina, o Tio Matavele. Outrora e durante vários anos eu gozei do magnífico privilégio de empenhar os produtos alimentares na Mercearia Canarinho deixando tão-somente garantias verbais de pagamento a posterior. Uma regalia ora interrompida por imperícia da minha parte, mas felizmente aquele aperto de mãos em Roma ensinou-me que as guerras podem encontrar paz quando há boa vontade.

O dilema surgira três meses antes: Em frente à Mercearia Canarinho, da Tia Catarina, abriu ao público uma mercearia toda pintada de verde em cujo topo da fachada estava escrito em letras garrafais “Mercearia Locomotiva”. O proprietário da nova mercearia se quer apreciava desporto, qualquer que fosse a modalidade, mas fizera aquele presunçoso baptismo por evidente despeito ao vizinho de quem sempre velou uma inveja sombria de complexo de inferioridade e na primeira oportunidade com dinheiro em mãos deu azo a sua arrogância, e fazia mesmo toda questão de exaltar aos vizinhos que passou a ser o melhor. Aquela infâmia suscitou degradação da saúde e da harmonia no seio familiar dos proprietários da Mercearia Canarinho, coitados, à Tia Catarina pelos clientes que perdia e ao Tio Matavele porque naquele ano o apito dos Locomotivas da Capital sufocava agressivamente o canto dos Canarinhos na tabela classificativa do campeonato nacional de futebol, pior ainda porque numa manhã de inverno o dia acordou com um desenho grosseiro e horroroso de um canário morto numa linha férrea, feito a tinta de óleo na parede frontal da Mercearia Canarinho, e suspeitou-se logo que o autor moral daquela petulância fosse o proprietário da Mercearia Locomotiva. Reunidos junto ao chefe do quarteirão para dirimir aquele litígio entre vizinhos o proprietário da Mercearia Locomotiva acudiu-se com certo gozo, lançando suspeição ao ar, dizendo que qualquer um poderia tê-lo feito por brincadeira de mau gosto, até mesmo os donos da Mercearia Canarinho poderiam ter sido só para mancha-lo, que ele não precisava disso porque o seu negócio corria a mil maravilhas. De facto a Mercearia Locomotiva era menor mas vendia todos os produtos um pouquinho mais baratos do que os da Mercearia Canarinho. Eu e tantos outros vizinhos, deslembrados do carinho da Tia Catarina, passamos a fazer compras na Mercearia Locomotiva. O principal requisito para que eu entrasse na Mercearia Locomotiva era a coragem de não reparar para a Tia Catarina, fazer de contas que não conhecia a ninguém na Mercearia Canarinho. Naquele momento pareceu-me mais civilizado evitá-la, até porque a Tia Catarina tinha o inabalável preceito de jamais antecipar-se na saudação.

Afinal de contas o proprietário da Mercearia Locomotiva teve os bolsos enchidos por um negócio ilícito, como diziam os vizinhos “acertou uma boa bolada”. A própria esposa, tal como sucedia na Mercearia Canarinho, foi a escolhida para a partir do balção da Mercearia Locomotiva conduzir pelos melhores carris o novo negócio de família. Enquanto o calendário levava os dias, os clientes esvaziavam as prateleiras da Mercearia Locomotiva até que chegou o dia em que jamais havia cogitado que o calendário fosse registar naquele mês: o dia em que a Mercearia Locomotiva fechou definitivamente as portas.

Ao meio do caminho senti que o meu corpo necessitava de facto de reposição de energias. A fome era extrema. Em breve cheguei à Mercearia Canarinho, adentrei ao perímetro gradeado reservado aos clientes com passos e postura humilde, de um civil. Aquele não era o momento de orgulho de capitão.

Passei a língua sobre os beiços ressecados. — Tia Catarina! Tudo bem?

A Tia Catarina segurava uma caneca metálica na mão da qual despejava arroz num saco plástico preto sobre uma balança electrónica. O acto exigia-lhe redobrada concentração. Sem olhar para mim reconheceu-me a voz e o sotaque. Os vinte anos a viver em Maputo não me tiraram a identidade da origem da minha pronúncia.

— Tio Carlitos! Desaparecido meu amigo. — Respondeu prontamente, em ronga, como se aguardasse ansiosamente por mim. — Eu estou muito bem, graças a Deus. E consigo, Tio Carlitos? — Havia algum sarcasmo velado naqueles pronunciamentos. Ela continuava a despejar arroz, cada vez mais devagar para não passar de um quilo.

— Assim-assim Tia Catarina. A vida as vezes nos leva para caminhos diferentes.

Concluída a pesagem, enfim fulminou-me com um olhar vitorioso do qual fui incapaz de ripostar. Desviei o olhar observando as prateleiras e frigoríficos da mercearia, todos cheios e muito bem arrumados.

— Vamos cantar juntos Tio Carlitos!

— Cantar?!

A Tia Catarina pôs-se a cantar enquanto dançava toda feliz. — “Locomotiva está apitar, Canário já não canta; Locomotiva está apitar, Canário já não canta; Locomotiva está apitar, Canário já não canta…

Aquela canção afiada, tão perfurante como o prego da cruz de Gólgota, não somente avivou-me a memória como também flamejou a excruciante dor que a concorrência havia causado nela. A aceitação do meu pedido condicionava-se à gravidade das sequelas que o infame advento da Mercearia Locomotiva havia causado na Tia Catarina e do grau de responsabilização que ela me atribuía.

Decide interrompê-la. — O Tio Matavele deve estar muito feliz. Eu também estou porque o Costa do Sol venceu ao Ferroviário.

— Ó! Tio Carlitos! Desde sábado até hoje tal alegria deixou de ser importante. A maior alegria actual é receber visitas daqueles que um dia desapareceram sem dizer adeus. E hoje é um grande dia porque vieste visitar-me. Tu sabes que eu gosto de ti. Não sabes Tio Carlitos? — A Tia Catarina falava a misturar ronga e português. Eu gostava de ouvi-la a falar daquele jeito.

— Eu também gosto muito ti, Tia Catarina. — Havia que recordá-la que o meu tempo de fidelidade era muito maior do que aquele que ela tomava como tempo de traição. — Somos amigos desde que abriste esta mercearia há mais de cinco anos.

— As pessoas quando gostam uma da outra visitam-se ou cumprimentam-se quando se cruzam. Não é assim Tio Carlitos?

— Tem toda razão Tia Catarina. — Não havia mais nada de estratégico a declarar, se não dá-la razão e dizer a quê viera. — Tia Catarina! Queria pedir alguns produtos para pagar depois.

— Ó! Tio Carlitos! — Reagiu como se a tivesse pedido um rim a ser extraído naquele momento, com se a minha mão empolgasse um bisturi. Num impulso fez um pulo de fuga para trás, estacou-se no centro da mercearia com as mãos apoiadas nas ancas voluptuosas e disparou-me um olhar de guerra. — Os produtos aqui são muito caros! Perdi muitos clientes por isso.

Mantive-me humildemente quieto, cabeça decaída à esquerda, como fazem os civis. O gesto de rendição parece tê-la comovido. A Tia Catarina continuou a falar, desta feita mais apaziguadora.

— Porque eu gosto de ti, Tio Carlitos, não posso deixar-te sofrer. Queres o quê meu amigo?

— Cinco carapaus 16, um quilo de arroz e meio quilo de tomate.

Ultrapassei aquela rusga com uma valorosa aliada em tempos de paz. Entretanto, um capitão não se deve limitar a festejar as vitórias. Há que reflectir se cada passo dado foi o mais adequado, tirar ilações para que as próximas vitórias surjam com menos combates, ou até mesmo, como diz Sun Tzu, “vencer sem lutar”.

Cheguei ao endereço do condomínio quando escurecia. Entrei ao quintal pelo único portão existente, sobre o balcão debaixo da mafureira depositei o saco plástico contendo os cinco peixes carapau tamanho 16. Na sequência, sempre acompanhado pelo meu cantarolar desinibido, destranquei o cadeado da porta do meu quartinho, entrei, liguei as lâmpadas de dentro e de fora, saí do quartinho de calções azuis até aos joelhos, uma camisola interior estampada de tigre e chinelos verdes, empolgava uma pequena bacia cor-de-rosa e uma faca de cabo de madeira. Escamei os cinco peixes carapau tamanho 16, lavei, deixei-os na bacia, a cantarolar fui mais uma vez ao meu quartinho para buscar o almofariz, o alho e o sal. Menos de trinta segundos retornaram-me ao balção improvisado de madeira sobre o qual achava-se a bacia, ao lado ainda se encontravam as tripas, as guelras e as barbatanas. Inacreditavelmente não havia peixe algum na bacia! Cinco peixes carapau tamanho 16, limpos por mim, desapareceram em menos de trinta segundos sem deixar qualquer rasto! O meu estômago roncou a lembrar-me que continuava sedento de alimento, daquele peixe carapau tamanho 16 em particular.

O meu profundo espanto não se originou somente daquela tão ousada intervenção, mas sobretudo pela prontidão da missão e pelo silêncio camuflado que encobriram a captura dos meus cinco peixes carapau tamanho 16, como se os executores tivessem preparado meticulosamente aquela intervenção, demonstrando alto grau de profissionalismo e experiência em missões semelhantes. Há que reconhecer mérito do inimigo naquela emboscada muito bem-sucedida contra o meu jantar e dar mão à palmatória, reconhecendo que houve de facto imprudência da minha parte. Baixei a guarda. Pensei como os civis, que o tempo mais importante é o futuro. O povo acredita que a comida é sua quando se diz que está no celeiro. O povo acredita num futuro melhor. Sabe gerir o povo quem promete um futuro melhor, mesmo que descumpra. Se tivesse agido como um capitão saberia que o tempo mais importante é o presente, que a comida só é sua quando está na sua barriga, enquanto não estiver há que tomar redobrado cuidado para guarnecê-la. Na tropa as imprudências de um capitão podem custar vidas. Mas, uma vez cometida a negligência havia que correr atrás do prejuízo com a mente de capitão. Supus-me num sensível teatro de operações. A primeira suspeita recaiu imediatamente sobre os vizinhos invejosos do condomínio. Qual dos petulantes teria sido?! Depois de uma diligência profunda e minuciosa, porém infrutífera sobre o quintal, lancei uma observação binocular de alguns minutos sobre a mafureira, desbravando com os olhos ramo a ramo, folha entre folha, mas igualmente sem sucesso. Em breve, encoberto pela escuridão da noite, um vulto sobre as telhas de zinco do meu quartinho magnetizou a minha atenção. Mesmo na borda havia um bichano a cear na maior tranquilidade. Todas as minhas dúvidas sublimaram instantaneamente dando lugar à certeza absoluta. Num impulso o maldito bichano degustava-se suculentamente da minha refeição de dois dias. O bichano era do vizinho, um traidor que outrora degustara o meu frango inteiro porque achava-se conservado no congelador dele, e desta feira era outro membro da casa dele a afrontar-me com a mesma atitude de guerra. O maldito bichano saboreava serenamente os meus cinco peixes carapau tamanho 16 retirados indevidamente da minha bacia. Aquele mesmo bichano que eu tanto o respeitava, que em nome da nossa amizade se aninhava carinhoso aos meus pés, que eu costumava a mimoseá-lo com os restos!

No teatro de operações, as intervenções daquele género eram catalogadas de conspiração, uma palavra que advém de respirar o mesmo ar. Só pode ser orquestrada por elementos do mesmo círculo. Todo o capitão tem ciência do significado de conspiração e teme muito o seu terrível poder. O Bichano conspirou contra mim, convenceu-me de que havia paz entre nós quando na verdade premeditava uma acção mortífera. Eu pensei que a guerra tivesse terminado com o AGP mas o bichano ignorava o facto, tal como Hiroo Onoda em Lubang. Uma situação que forçava a defender-me lutando pela minha vida, e todo o capitão sabe que a melhor defesa é o ataque. Então supus-me no teatro das operações, peguei na guelra, barbatanas e tripas dos cinco peixes carapau tamanho 16, os restos que o bichano preteriu, pus na bacia esvaziada pelo animal, levei comigo ao meu quartinho para que ficasse em segurança, armei-me com a minha baioneta, aquela cujo fio conhecia sangue de pessoa. Retornei ao quintal com a bacia, um saco de arroz vazio e uma corda devidamente preparada para a batalha. Por fado a telenovela continuava a entreter os vizinhos prendendo-os aos seus cubículos e deixando assim o campo de batalha livre para a aplicação das minhas tácticas para um combate sem civis. Entrincheirei-me numa aresta lôbrega, camuflei-me cobrindo o meu corpo com um saco de arroz. Por dez minutos não se registou movimentação hostil no campo de batalha. Eu estava ciente de que o sucesso de uma emboscada alicerçava-se na paciência. Na minha vida de capitão, eu e os meus soldados permanecemos durante três dias dentro de troncos de árvores a espera do inimigo. A nossa vitória reverberou em todas as hostes do Rovuma ao Maputo. Foi esse o episódio insólito que fez o Estado-maior General chamar-me na máxima pressa da Alta Zambézia para Moamba. Estrela de guerra. Era isso que eu era durante guerra. Uma estrela cujo brilho fora apagado pela paz porque estrela de guerra não deve brilhar em tempos de paz.

Avistei a aproximação sorrateira do inimigo na mesma táctica anteriormente empreendida. Surgia às seis horas, do lado oposto ao meu tecto, exactamente de onde eu o esperava. Posicionei-me com a corda na mão. O bichano meteu a cabeça na bacia, pela última vez. Puxei a corda mais com jeito do que com força. Dali a poucos minutos a vida do animal havia escorrido pelo fio da minha baioneta, de seguida esfolado.

Cozinhei o arroz de tomate, conforme programado. Fiz o guisado de gato. O aroma expelia-se tão incrivelmente bom que eu mesmo salivava. Era muito melhor do que qualquer outra carne que eu alguma vez havia cozinhado naquele quartinho. Um dos vizinhos do condomínio não se segurou e veio à minha porta.

— Tio Carlitos!

— Pronto, vizinho! — Respondi, um tanto aflito. Era o dono do gato cuja carne fervia na minha panela, o mesmo infame que certa vez devorara o meu frango inteiro. Embora a guerra tenha sido declarada pelo bichano, o dono jamais aceitaria que pagasse com a própria vida por um crime de furto. Seria esse o nome da agressão contra mim que o dono chamaria. Para mim foi guerra.

Logo que abri a porta constatei que o vizinho vinha numa missão de paz. Empolgava duas garrafas de cerveja. Estendeu a mão para entregar-me uma. Certamente que o salário dele caíra na conta naquele dia, ao contrário do meu.

— Está a cheirar muito bem aqui pah! Sabes que a senhora está a cozinhar frango mas o aroma que invade a minha casa é o seu pah! Qual é o teu jantar Tio Carlitos?

Deu-me vontade de sorrir zombeteiro pelo motivo da visita mas julguei que não devia fazê-lo por respeito ao adversário caído. Na tropa respeitamos a vida, não comemoramos pelos adversários abatidos, festejamos o cumprimento de um objectivo, e se o objectivo for executado sem sangue chamamos de vitória perfeita.

Abri a garrafa de cerveja com os dentes.

— É coelho vizinho.

— Eu nunca comi coelho pah. Dizem que é muito bom pah.

Desliguei o fogão eléctrico sobre blocos de cimento, servi três pedaços num prato de plástico azul para que o vizinho provasse.

— Tio Carlitos! Isto está uma delícia pah! Arranja-la dois destes coelhos para o natal. Eu pago. Gostei muito pah.

— Vai um pouco de piripiri vizinho?

Faxavor pah! — Lá gotejou sobre a carne. — Sim senhora! Isto é uma maravilha. Quisera eu comer disto todos os dias pah.

Não havia extrema exigência de decoro no condomínio mas o vizinho não se preocupou em manter o mínimo que fosse! Limpou o prato com a língua, muito agradeceu e foi-se embora arrastando consigo a pesada vontade de degustar mais. E assim vou levando a vida, um dia de cada vez, alimentado pela esperança de que haverá um futuro melhor.

 

 

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