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Como desnudar as máscaras

Realizou-se em Lisboa, na Universidade Clássica o congresso “Cartógrafo de Memórias: a poética de João Paulo Borges Coelho”. Aí apresentei uma proposta para converter em peça de teatro o seu romance As Visitas do dr. Valdez. É o texto que se segue:

Está a literatura prenhe de intersecções e contágios. Quando Shakespeare pega em enredos italianos para escrever Romeu e Julieta ou Júlio César age como um fixador de mitos ou de situações dramáticas que lhe pré-existem; no caso de Romeu e Julieta a dos amores contrariados.

É comum aos temas atravessarem séculos à procura de quem os cristalize, o que não raro subentende uma transversalidade por géneros e suportes.

Por exemplo, o que catapultou Blade Runner para um sucesso transgeracional foi ser o feliz cruzamento do mito do Dr. Fausto com a problemática do Romeu e Julieta—Ridley Scott soube traduzir para a sua época essas ressonâncias anteriores. E o filme, mercê igualmente de uma sábia dosagem gráfica entre cenários futuristas e ambientes retro, foi um sucesso apesar de carregar às costas mitos perenes, ou as suas sombras.

Um dia antes de embarcar para Lisboa estive em Maputo com o fotógrafo moçambicano José Cabral e o crítico de arte Alexandre Pomar. E assistimos ao seguinte diálogo. Um neófito abordou o José Cabral e perguntou-lhe, Quando queremos tirar uma fotografia qual é a coisa mais importante que devemos ter em atenção? Respondeu prestamente o José Cabral, o principal, para fazer uma boa fotografia é ler adequadamente as sombras no enquadramento.

É neste mesmo sentido que antevejo a única possibilidade de realismo: é necessário ler as sombras, as sombras da época, as sombras dos mitos que tecem no presente e no quotidiano as linhas de visibilidade e lhe conformam os protocolos, as sombras das expectativas e dos desejos que emergem, paulatinamente. Só depois das leituras destes indícios ficam as nossas lentes aptas para discernir e separar sobreposições de aparências e para fazer coincidir o real com as suas imagens.

Já bons exemplos de contágios encontramo-los no modo como aquela faca que vai autonomamente ao encontro da mão ainda temerosa de Macbeth se tornará fulcro irradiante e nuclear em Faca só Lâmina de João Cabral de Melo Neto, ou na flagrante e exasperante coincidência entre o que se lê no fragmento 36 de Prosas Apátridas, do peruano Júlio Ramón Ribeyro, que foram publicadas em Paris na época em que Paul Auster por lá andou, e a fábula central do seu livro Invenção da solidão, a história de um filho que encontra o cadáver intacto do seu pai desaparecido havia décadas congelado nos Alpes e que está face a ele, paradoxalmente, com a metade da idade que é então a dele, filho.

É indisfarçável que a literatura participa também do hipertexto global e todos, de um modo transversal a uma época, perseguimos os mesmos temas, procurando ser os fixadores de um mito, de uma relevância ou situação dramática; sendo então inescapável o encontro e a sobreposição de fantasmagorias afins.

A mesma linha de contágio e diálogo se estabelece entre o Conto de Natal de Auggie Wren, de Auster, e As visitas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho, mesmo que inconsciente. Em ambas as narrativas se exploram os mecanismos que Marivaux consagrou, usando a máscara e a mentira que rapidamente, por preciososmo, acabam por montar a auto-ilusão. Mas não nos adiantemos.

O conto de Auster resume-se em poucas linhas. Auggie vê do balcão da sua tabacaria um jovem larápio a enfiar revistas e paperbacks nos bolsos de dentro do blusão e grita-lhe. Enceta-se ali uma perseguição inútil porque o ladrãozito é mais ágil. Mas este, na correria, sob pressão, deixa cair algo, a carteira. Pelo estado dos inúmeros cartões de identificação que aí se apresentam e pelas fotografias que a carteira carrega, Augie percebe que o meliante é um pobre diabo e dilui-se o seu ímpeto justiceiro. Meses depois, no dia de Natal, estando sozinho e entediado sobrevém a Auggie o desejo de praticar uma boa acção e resolve entregar a carteira no endereço que se assinala num dos cartões.

Recebe-o uma anciã cega que o toma pelo neto, o jovem ladrão, e que o felicita por se ter lembrado de a visitar no dia de Natal. E Auggie, sem saber porquê, embarca no jogo, simula ser o neto, passa a consoada com a velha e retribui-lhe as carícias e abraços e mente-lhe doirando a pilula sobre a sua vida, i.é a do neto, e aquela manifesta-se orgulhosa e sente-se recompensada naquele jogo de fingimentos mútuos. Até que adormece de saciedade. Auggie, antes de sair, vai aos lavabos onde descobre uma série de caixas com máquinas fotográficas roubadas pelo neto e num impulso leva uma consigo. Quando, atacado pelo remorso, algum tempo depois volta a bater à porta da velha percebe que provavelmente esta morreu e que ele passara com ela o seu último natal. E (tentando sublimar a culpa?) auggie entrega-se à fotografia, que passa a ser o seu hobby.

Percebe-se pelo relato da anedota as afinidades com As Visitas do Dr. Valdez: a irmã Sá Caetana, afim de devolver à esmorecida Sá Amélia alguma motivação para a vida, monta com o seu jovem criado Vicente uma farsa, pela qual, este disfarçado, passará por um remoto dr. Valdez (aliás já morto), uma visita que alegrava no Ibo as viuvezes ensimesmadas das duas manas. A ilusão parece funcionar em pleno, até que no auge do jogo damos conta que as cegueiras são mútuas.

Contudo, até pela extensão diversa das duas narrativas, não chega a verificar-se no conto de Auster?—?o que acontecerá depois no roteiro que desenvolverá em Smoke?—?o que o argentino Ricardo Piglia, a meu ver acertadamente, traduz num axioma: um conto conta sempre duas histórias. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico e fragmentário.

No romance de Borges Coelho, apesar de não ser um conto, isso é claro, ou antes, subjaz.

O primeiro indício que nos faz suspeitar que se possa ler esta história muito para além do plano da narração da vidinha estreme e irrisória das manas Sá, na sua serôdia deriva de Ibo, a ilha natal, para a cidade da Beira, aonde se sentirão como peixes fora-de-água, prende-se com o baptismo dos seus nomes. A um segundo nível de leitura, em sombra chinesa, começa a entrever-se um drama cósmico, aquele que configura a mutação semiótica que antecipa as ruínas de um inteiro sistema de vida.

Lembremos o nome das personagens, Sá Caetana e Sá Amélia. Em conhecendo-se a História portuguesa não é desprovido intuir que o nome da mais velha ecoa o da última rainha portuguesa, D. Amélia, e coetânea do reforço administrativo do colonialismo português que se sucedeu ao sobressalto do Mapa Cor de Rosa, e que o da mais nova, Sá Caetana, pode derivar do último responsável pela herança de salazar, Marcelo Caetano. Entre ambos os nomes vai suspender-se o arco da automoribundia que, como diria Eduardo Lourenço, de irreais em irreais, crismou o colonialismo português.

Vicente por seu turno encarna o espírito da mestiçagem que o Estado português, ainda que tímida e ambiguamente espartilhado por laivos de racismo, acobertava. Não haja dúvidas de que Vicente seja negro mas ao participar do jogo de encarnar o dr. Valdez Vicente coloca-se nessa zona híbrida de dilemática alienação que o Franz Fanon cristalizou numa fórmula: pele negra, máscara branca.

Na novela, nas cenas do presente, há dois triângulos com diferenciado cunho social na novela, o A, constituído pelas manas e o seu criado Vicente, e o B, formado por este último e os outros dois criados vizinhos, Sabonete e Jeremias.

Entre estes dois triângulos posiciona-se como uma cunha o Dr. Valdez, uma personagem que catalisa em si a soma de todos os irreais, quer os vividos pelas duas velhas senhoras que procuram recapturar um passado que lhes escapou, quer a de Vicente, na sua condição de uma criatura que vive “entre”.

Outra coisa separa estes dois triângulos: elas vivem a fadiga de uma larga experiência, congeladas nas suas “interpretações”, são já simplesmente seres perceptivos, atidos ao presente, no caso de Caetana, e mais recessivamente atenuada pela bolha do passado no caso de Amélia, e por isso ambas mais não têm que uma vida reactiva, confirmada pela decisão de Caetana de que viveriam na Beira “como se vivessem numa ilha”, i.é, como mónadas.

Para o outro triângulo a possibilidade da ilusão está ainda a par do carácter emergente da realidade e das suas modulações históricas e por isso eles têm projecções, expectativas, futurizam e propõem-se a uma vida electiva. Um já se vê como coronel e o outro como juiz e até a prostituta Camba (uma personagem que todos partilham) sonha com uma promoção, continuar no ramo, mas mudar de esteiras para camas com dossel.

Só Vicente, apesar de estar cada vez mais fora de casa a procurar apropriar-se duma leitura das nuances do presente, não se decide, ele está “com os mundos misturados” e provavelmente aprendeu com as patroinhas que o muito imaginar pode trazer dano.

Outro aspecto que reforça a leitura do pequeno drama das duas velhas senhoras como uma alegoria que transcende a piquena economia de um drama de costumes prefigura-se com a introdução da máscara de Mapiko e a reinvenção paródica do Dr. Valdez.

É aliás nesta brilhante variação que Borges Coelho descola do simples efeito de marivaudage que havia em Paul Auster para obter uma significação que lhe é extrínseca e enriquece o jogo dramático.

É à quarta e última visita do Dr. Valdez que Vicente, provocatoriamente, enverga o elmo-máscara do Mapiko, subvertendo totalmente as regras da verosimilhança até aí concertada e o escalonamento hierárquico das acções na cena.

Antes, o papel do dr. Valdez fora-lhe atribuído pela patroa Sá Caetana, quem ordenava as marcações de cena, o permitido e o interdito. Na terceira “aparição de Valdez”, Vicente está sozinho no seu quarto e os seus dilemas passam a ser já discutidos com a presença fantasmática de Valdez, como se esta personagem já lhe fosse um alter ego ou dele se quisesse tornar autónoma. Atravessado este cabo das tormentas, num gesto de fuga para a frente, na “quarta visita” é Vicente quem estabelece o comando da cena, ao decidir fazer aparecer o Valdez sem ter sido convocado e envergando a máscara de Mapiko. Aí começa a assumir a sua condição de perversor das regras para depois, no decorrer da acção, ter o gesto inopinado de se desmascarar, gesto desconstrutor que reiteraria o seu papel de portador de autonomia, virando o sentido de quem estabelece as regras do jogo.

Não esqueçamos que a máscara do Mapiko tem um sentido tectónico, aliando-se à terra e a todos os mortos que a nutrem.

Tem então lugar na cena um volte-face surpreendente, que introduz a ironia. Para a compreendermos devemo-nos lembrar que, como dizia Walter Benjamin, «Na alegoria cada personagem, cada objecto, cada combinação pode significar outra coisa. Esta potencialidade emite sobre o mundo profano um juízo severo mas justo: ela define-o como um mundo onde o detalhe não tem importância» (citado em Cantinho: 2012:70).

Ora, com a introdução da máscara, Vicente, desincarnara o papel que lhe havia sido atribuído para apor-lhe uma alteridade que rompia a lógica do mundo duplicado. Mas quando Vicente tenta desmontar toda a farsa e dar um fim àquela encenação, desmascarando-se, dando azo a uma unidade que fosse só sua e constituísse uma afirmação identitária, num assomo até de alguma crueldade face às patroas, aí, para surpresa de todos Sá Amélia nem reconhece a mudança nele nem o furor do seu gesto pela razão mais inesperada: está cega (e desde quando afinal estava cega é o que fica por saber).

Vicente tirara a máscara mas afinal o detalhe de a tirar não logrou qualquer relevância pi rebentação climática, ficando o seu gesto a patinar no vazio. Ou seja, ele continua prisioneiro do mundo das representações que lhe mobilava a mente. O que o impedirá de afirmar junto dos seus amigos a mais minguada expectativa quanto ao futuro e ao suposto homem novo.

A ironia é reforçada pelo que se passa depois da saída de cena de Vicente. Sá Amélia, num último sopro de vida, denota que sempre soubera a verdade e que se implicara na ilusão como um jogo até ao ponto deste desembocar numa mudança relacional de âmbito estrutural, dado que, contra as regras antigas?—?e daí que felicite a irmã por ter deixado de arvorar ares de patroa e ter enfim servido a cerveja ao rapaz, leia-se ao Vicente, ele mesmo, e não a um famigerado doutor Valdez?—?e nesta inesperada revelação a cega assume-se como primeira testemunha lúcida da mudança de regimes sociais e interpessoais que os novos tempos impunham.

Mas a introdução da alegoria remete-nos para uma terceira perspectiva. Para a alegoria, recorde-se, não existe um rosto, o indivíduo e o singular perdem o seu estatuto, sendo que nela «um homem é sempre sinal de outra coisa diferente, isto é, ele não vale por si mesmo, pois toda a possibilidade de o encarar na sua individualidade esbarra nessa remissão infinita e dialéctica para um conceito que lhe é extrínseco». (Cantinho: 70:2002).

Para abreviar, pois só pretendemos explicitar a razão de ser dos critérios dramatúrgicos para o que a seguir apresentarei, temos então que

à ruína colonial se sucede a nova abstracção política do homem novo (aquele rosto a nu que a cegueira de Amélia impede de reconhecer), funcionando o romance como o gráfico dessa passagem de testemunho de uma irredenção colonial para a nova alegria infernal de mútuas cegueiras voluntárias e que satanicamente inscreverão o disfórico na ordem do dia.

Muito tchekovianamente, tudo isto é tratado como se nada se passasse. A acção de As Visitas do Dr. Valdez explora sobretudo o infra-domínio das baixas tensões de natureza interpessoal em vez de nos propor grandes enredos, conflitos com a aparatosa prestidigitação da aventura ou das causas nobres. Aparentemente fala-se de bagatelas. Porém basta escavar um pouco.

Voltaire teve uma sentença cruel sobre Marivaux (um bom percursor de Tchekov na arte de retratar o mecanismo da ilusão e da auto-ilusão) quando escreveu que o seu teatro não seria outra coisa que a arte de “pesar ovos de mosca em balanças de teias de aranha”. Não percebeu nada o pomposo Voltaire cujas peças já não se encenam enquanto as de Marivaux são das mais vistas no mundo. Com o livro de João Paulo é a mesma coisa: parece contar coisas de pouca monta mas é na hábil urdidura destas, ou nas suas sombras, que conseguimos ler o estado social das coisas.

E o que interessa agora é perceber como poderíamos operacionalizar o romance convertendo-o numa peça de teatro. Eis a minha proposta de uma sequência dramática, delineada num modo esquemático, e precedida de uma explicação cénica:

– Um ciclorama ao fundo enquadra dois estrados praticáveis, um mais alto e outro mais baixo.

Temos assim três níveis para o jogo cénico: no praticável mais alto dispõe-se a sala das manas, com três cadeirões e uma mesa com uma telefonia antiga, grande;

no praticável mais baixo tem lugar o quarto de Vicente, mobilado por um catre e uma cómoda velha, com um enferrujado retrovisor a servir de espelho. No banco que lhe serve de mesa de cabeceira vê-se o rádio transístor.

No terceiro plano, o do piso do palco, evoluirão as cenas com o triângulo B, Vicente, Sabonete e Jeremias, com presenças esporádicas da prostituta Camba, vendo-se a um canto uma mesa atamancada de esplanada de barraca, mais umas cadeiras desdobráveis de lona e madeira, a lona rota, e um suposto meio-bilhar, construído por eles.

No ciclorama são pontualmente projectadas imagens de arquivo e de época graficamente tratadas em negativo, ou acções encenadas e previamente gravadas em sombra chinesa, como o combate de Ganda e o monstro rodesiano John Dale, a cena da boneca de porcelana quebrada ou incursões de guerrilheiros pelo mato.

– Quando a peça começa ouve-se o assobio de Vicente e as manas discutem se o mesmo é uma impertinência ou não. Falam também da pacatez da vida no Ibo, da mansidão do pai de Vicente, Cosme, do labirinto da cidade grande e dos amores perdidos; bem como da beleza da mãe de ambas, Ana Bessoa, estiolada naquela infinita observação do mar. Ou fala sobretudo Caetana, Amélia é muito lacónica e só responde se insistirem com ela. Procura entusiasmar a irmã com o folhetim futurista que irá dar na rádio, mas esta pouco reage. Caetana sente-a muito lenta e perigosamente apagada e resolve fazer algo que salve a irmã.

Segue-se uma cena no quarto de Vicente, que Caetana invade. Mete o rádio na cama para se sentar no banco e urde com Vicente o plano das visitas do dr. Valdez.

A partir daí as acções em que Vicente, em silêncio se veste e maquilha de dr. Valdez e ensaia poses ou fragmentadas frases de brilho para as falas do médico, serão o fundo para as cenas dos outros criados, que comentam as mudanças do mundo, o futebol, o racismo e as mulheres, enquanto se entronizam no espírito da guerrilha e aludem à pronta queda do colonialismo.

Entretanto, estruturam-se em sequências alternadas as acções com as duas manas:

às diferentes visitas do dr. Valdez sucedem-se cenas em que as manas?—?Caetana, bordando, circunspecta e aflita com o que ouve, e Amélia meia alheia?—?ouvem na telefonia o folhetim. Este é uma breve montagem dramatúrgica de cenas da novela de JPBC Cidade dos Espelhos, que desde o primeiro momento, com o atentado terrorista com as bolas de sabão, as perturba, principalmente a Caetana, que acha tudo aquilo muito subversivo… Esta rádio-dramatização deve ser enfática e procurar obter sobre o seu ouvinte o mesmo efeito de choque que teve na sua época a Guerra dois Mundos, lida por Orson Welles…

Ao mesmo tempo em que vemos o susto das manas, noutro canto do palco, os criados, que têm igualmente um transístor, excitam-se com o folhetim, e Jeremias, exulta por o líder dos guerrilheiros no folhetim ter o mesmo nome que ele. Nestas cenas Vicente junta-se-lhes, embora mais comedido e irresoluto nas manifestações.

No ciclorama, vemos imagens do chilumi, o mato selvagem, a invadir as liana, os coqueiros, as propriedades delas do Ibo, e a alastrar, devagar.

A meio do terceiro episódio do folhetim, este é interrompido e a voz de um locutor esclarece que o mesmo foi censurado e os seus autores presos, por subversivos. O resto do que seria o tempo do folhetim é substituído pela emissão radiofónica de uma das Conversas em Família, de Marcelo Caetano.

Sá Caetana acha muito bem e aproveita para ler à parte?—?embora de vez em quando vigie a irmã, para ver se ela continua alheada?—?a carta em que Basílio Aliberto conta a morte de Cosme Paulino.

Ao mesmo tempo vemos que, nu e empurrado pelos amigos, Vicente, se prepara para ser iniciado sexualmente por Camba. Aí recortam-se nos pés os coturnos que sempre usou desde o início e nunca tira e que simbolizam como é um homem “entre”, um homem que nunca pisa inteiramente o chão do presente.

Camba leva-o para off. Só ouvimos os seus assobios de prazer, enquanto os amigos riem.

Dr. Valdez visita Vicente no seu quarto. Este, depois de ter estado sob influência, submetido à provação, resolve sacudir a “possessão” e envergar a sua máscara do Mapiko, que tinha debaixo do catre.

Última cena com o dr. Valdez. Amélia acaba por finar-se, logo depois de ter felicitado a irmã por ter servido uma cerveja ao rapaz.

O chilumi continua a invadir o ciclorama.

De modo coral, os criados dão conta das últimas notícias e palram entusiasmados com o espírito do homem novo conquistas do homem novo. Após, o que repartem entre si novos papéis sociais, só Vicente permanece abstraído.

O chilumi “tapou” todo a superfície do ciclorama.

Caetana, despedindo-se de Vicente, oferece-lhe num gesto magnânime o que já não tem: as suas propriedades no Ibo.

Com a mala de viagem e vestida para sair, Caetana relê a carta da sobrinha.

Vicente, bucólico, no seu quarto, mete uns novos coturnos para ficar mais alto e depois senta-se a olhar as imagens do mar que passam no ciclorama e que ressoam forte.

Está no seu purgatório, submerso nos seus irreais.

Os criados que julgavam viver no inferno, mudam-se para a casa das manas, julgando que doravante viverão no paraíso. Acendem a telefonia e ouvem um discurso contra os Xiconhocas (1).

Fecham-se as luzes.

E neste momento também eu me calo.

————–

Cantinho, Maria João, O anjo melancólico, Ensaio sobre o Conceito de Alegoria na obra de Walter Benjamin, Angelus Novus, Coimbra, 2002.

(1) Xiconhoca, no imaginário popular de Moçambique é a má rés, o aproveitador, o vigas que faz ronha e que subverte os processos em seu proveito. Durante uns anos foi símbolo dos sabotadores da Revolução

 

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