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“Choriro”: a beleza entre a imaginação e a história

“Choriro” como bem o diz Ungulani Ba Ka Khosa é “um retrato de um espaço identitário, de uma utopia que se fez verbo”. O enredo dessa narração que envolve a história e a imaginação num só campo ficcional é o Vale de Zambeze no período mercantil marcado pelo tráfico e exploração de marfim e de escravos.

Luís António Gregório, de origem portuguesa, conhecido como Nhabezi, doutor ou curandeiro em língua local, é o protagonista desse entrecho que parte de acontecimentos históricos para a consecução fantástica desse “Choriro”; é, também um recinto onde um tecido humano de culturas, raças, crenças, etnias e línguas fortalece-se, harmonicamente, sob a protecção intrêmula dos achincudas. Aliás, “Choriro” é o choro pela ausência de ordem. São os três dias de luto em que os súbditos instalavam a anarquia e tudo faziam sem nenhuma sujeição posterior a um julgamento. Este “Choriro” dura mais de três dias, porque começa, mesmo quando o curandeiro branco instala-se no Vale, adoece, morre, é enterrado e aguarda-se a sua transmutação anunciada por Nyazimbire (curandeiro do reino real).

Nhabezi instala-se no vale de Zambeze e africaniza-se progressivamente nele. Adopta práticas plurigámicas típicas da região e adopta em geral regras locais que não eram típicas para um homem branco como ele. A sua entrega às seitas e práticas locais diferem-no do seu amigo, padre e cronista, António Gonzaga. Nhabezi, que era um exímio caçador de elefantes, introduz o consumo de arroz no interior do alto Zambeze, uma das proezas que lhe marca após a sua morte, por todos, principalmente por Kamwa.

Nhabezi morre e não se sabe se ele vai conseguir a imortalidade, ou seja, transformar-se em mpondoro, um espírito protector das suas terras. Ou por ser branco seria negado por espíritos nativos e por essa via, transformar-se-ia em um negozi, um espírito revoltado, rejeitado e sofredor que vagueia as noites criando maldição. A tradição antiquíssima do Vale de Zambeze é recuperada e tratada, impecavelmente, por Ungulani. Da doença de Nhabezi até ao seu enterro que se realiza na dúvida permanente da sua transmutação, sua existência além da morte física.

Ungulani entra na história do Vale de Zambeze e faz uma desconstrução imaginária dos seus elementos dentro do seu tempo e encarrega-se de uma tarefa não fácil; a que torna ele um prosador exímio: a reconstrução ficcional. Esse exercício duplo pode ser encontrado quando enarra David Livingstone nas terras de Nhabezi e quando um dos acompanhantes do explorador inglês, Maluka apaixona-se por Luíza, a preciosa filha de Gregódio.

O que Ungulani faz em “Choriro” não é uma visita ao Vale de Zambeze (sec. XIX) para escrever um texto ficcional, mas ele traça através da imaginação um caminho que nos leva ao Vale e ao âmago que recria um Vale com costumes próprios: “os macacos adestrados para desvirginar mulheres” ou “o lançamento dos insubmissos aos crocodilos”. A história é um catálogo com grafias de acontecimentos presos por agulhas de datas no quadro da memória. E Ungulani o sabe muito bem, por isso a sua imaginação transcorre sobre acontecimentos diversos que se seguram em datas.

O estilo com que Ungulani tece a narrativa de Nhabezi não se veste de monotonia, pois em cada momento procura reinventá-lo. Essa reinvenção de estilo oscila entre um relato poético, como quando minucia Nzinga, uma das esposas de Nhebazi: “…era uma moca de mediana altura e traços alongados como uma gazela. De uma cintura delgada e ancas de fraca protuberância […], os olhos apresentavam o brilho fugidio das águas ao amanhecer”. Ora uma tendência de enumerar que condensa o muito em pouco [economia da frase]: “as folhas, adormecidas. As sombras, paradas. O sol, sorrindo. O rio, acenando. As águas, correndo. As margens, bocejando”.

“Choriro” faz um encadeamento de episódios históricos com um “know-how” intrínseco à prosadores que sabem ungir a realidade de imaginação e a história de ficção. A fragmentação das crónicas épicas do padre António Gonzaga e o enredo final sobre a incerteza do futuro na aringa de Nhabezi recordam o “último discurso de Ngungunhana”. A beleza dessa prosa não se prende em pequenas partes históricas como fazem outros romances históricos, mas sim possui uma beleza que transcorre em todas páginas como quando a tinta despeja-se sobre um livro.

 

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