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Cheetah, a última corrida

Por: José Paulo Pinto Lobo

 

Cheetah trepou para o topo do morro de muchém.

Olhou ansiosamente os tandos que a circundavam em busca do mais leve movimento. Nada agitava o capim. Nem sequer o vento. Para onde tinham ido as manadas de búfalos, das impalas, dos gnus? Cogitou o estranho sumiço dos antílopes, javalis e até dos coelhos.

Já tinha perdido a conta às luas que se alternavam com o esbraseador sol sem ter conseguido caçar o mais parco alimento. Também nunca mais viu qualquer outro companheiro da sua espécie e diga-se, que das outras também não, com excepção dos incansáveis necrófagos.

Será que teria de fazer como as kizumbas, marabus e abutres? Se alimentar de carne morta?

Mas nem isso tinha conseguido, insatisfazendo a sua fome, que lhe colava as costelas à pele e fazia seu estômago rosnar. O seu corpo dantes esbelto, musculoso e esguio apresentava uma magreza insana e o seu pelo dourado salpicado de belas manchas, tinha perdido todo o seu brilho. Pulgas e carraças pelejavam ferozmente pelo pouco sangue que lhe restava.

Quando via no ar os círculos vagarosos dos abutres sabia que alguém tinha tombado. Mesmo pressurosamente se apressando, quando chegava ao local, só ossos havia para disputar. As carcaças estavam limpas. Apenas crânios desdentados dos outrora majestosos paquidermes e esqueletos dispersos pelo chão. Suas presas há tempos tinham sido cortadas. Tal como os cornos dos poderosos perissodáctilos e suas peles desaperecidas.

Os deuses estavam zangados. Tinham lançado estranhos trovões que abriam crateras na terra e secavam os lagos e poças de água onde habitualmente se dessedentava. O sol, qual pústula sangrenta, teimosamente se erguia, diariamente, no céu coberto de espessas nuvens cinzentas. Insistia em gretar ainda mais a terra exangue de vida.

Cheetah se interrogava. Que tinham feito os animais para merecer tamanho castigo?

Não eram os trovões habituais do verão, assustadores é certo, mas não mais do que isso, porque sabia que prenunciadores da chuva abençoada que refrescava o corpo e fazia crescer o capim, camuflagem perfeita para as caçadas. Acompanhados das cintilantes luzes feéricas que iluminavam os tandos e por vezes faziam arder archotes nas árvores. Aqueles diferentes, traziam outra chuva, muito estranha, que não molhava mas incandescia, de cinza negra de cheiro pestilento e de sabor acre. Onde caiam, tudo despedaçavam, até os enormes rochedos.

As sombras benignas também não abundavam. As antigas florestas, em tempos exuberantes, tinham praticamente desaparecido. Escutava com frequência ruídos misteriosos, mais fortes que os rugidos do majestático leão e notado ao longe as árvores se abatendo. Resguardava-se prudentemente em local seguro, afastada do estrépito dos troncos tombando. Quando tudo se aquietava, voltava para observar o que teria sucedido. Tinham somente restado tocos do outrora frondoso arvoredo de pau-preto, pau-rosa, ébano, nkula, sândalo e até das árvores-de-fruto, mafurreiras, mangueiras, canhoeiros, maçaleiras.

Cansada mas ainda de sentidos apurados, ouviu subitamente um restolho na erva. Divisou um esquálido láparo que tinha ousado sair da toca. Deu o melhor de si numa louca e frenética corrida mas o esquivo coelho conseguiu esgueirar-se e perdeu-o de vista.

Esgotada Cheetah, estirou-se no capim seco.

Olhou para o céu e viu os bandos de abutres e marabus circunvolteando lá no alto por cima do seu corpo estendido.

E então compreendeu.

Aquela tinha sido a sua última corrida.

 

Cascais, 21 de Julho 2021

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