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Carta ao Pai

Acabo de ler, de reler na verdade, Carta ao Pai, de Franz Kafka, um escrito que me impressionou não só pela virulência implacável com que defronta a relação com o pai, mas também como ele explica a sua personalidade, complexa, marcada sem dúvida pela figura paterna: “Queridíssimo pai, Perguntaste-me, há pouco tempo, por que razão afirmo ter medo de ti. Como de costume, não soube responder; por um lado, precisamente pelo medo que tenho de ti, por outro, porque, na base deste medo, existem demasiados pormenores para que possa exprimi-los oralmente, de forma mais ou menos lógica. E se neste momento procuro responder-te por escrito será de forma bastante incompleta porque, também por escrito, o medo e as suas consequências me tolhem diante de ti e porque, enfim, a importância do assunto ultrapassa, de longe, a minha memória e o meu entendimento”.

Franz Kafka: “Parecia que, para ti,  era qualquer coisa do género: trabalhaste arduamente toda a vida, sacrificaste tudo pelos teus filhos, sobretudo por mim, vivendo eu, por isso, “à grande e à francesa”, tive toda a liberdade para estudar o que quisesse, nunca tive de me preocupar com o sustento, nem ter outras preocupações, de resto; nunca exigiste gratidão em troca, sabes como é a “gratidão filial”, mas pelo menos alguma amabilidade, algum sinal de simpatia; em vez disso, desde sempre me escondi de ti, no meu quarto, no meio dos livros, no meio dos amigos loucos, no meio das ideias extravagantes.” 

A primeira vez que li a Carta ao Pai fiquei siderado. Tolhe-nos de angústia este pequeno livro. Sufoca-nos, não raro. Sentimos as tripas amarradas. Tem passagens duríssimas: “Para mim, adquiriste o carácter enigmático que todos os tiranos têm, cujo direito se baseia na sua pessoa e não no seu pensamento. Pelo menos assim me parecia.” Ou antes: “Tu só consegues lidar com uma criança da mesma forma como tu próprio foste tratado, com força, gritos e irascibilidade o que, além do mais, te parecia muito adequado à situação, já que querias fazer de mim um rapaz forte e corajoso.” É brutal!

Franz Kafka: “Claro que não quero dizer que aquilo que sou se deve apenas à tua influência. Seria um grande exagero (e eu até tenho tendência para estes exageros). É bem possível que, mesmo se tivesse crescido completamente fora da tua influência, não conseguisse vir a ser um indivíduo a teu contento. Ter-me-ia tornado, talvez, um indivíduo mais fraco, mais ansioso, mais indeciso, mais inquieto, nem um Robert Kafka, nem um Karl Hermann, mas um ser completamente diferente daquilo que sou, e teríamos conseguido darmo-nos às mil maravilhas. Ter-me-ia sentido feliz por te ter como amigo, chefe, tio, avô, e até mesmo (se bem que com alguma reserva) como sogro. Só que, pai, foste forte de mais para mim, sobretudo atendendo a que os meus irmãos morreram na tenra idade, e que só muito mais tarde viriam as minhas irmãs, pelo que tive de aguentar o primeiro embate completamente sozinho, sendo eu fraco de mais para isso.”

Para além de descrever a relação castradora com o pai, fala da relação com as irmãs, descreve a relação vexatória com os empregados (“inimigos pagos”, como os chamava), com o Judaísmo, com o desejo falhado do escritor, de se casar, etc., etc., etc.: “Mas o principal obstáculo ao casamento é a convicção inexpugnável de que, para a manutenção da família e até para a liderar, é necessário tudo o que reconheci em ti e até tudo em conjunto, o bom e o mau, tal como se encontram organicamente reunidos em ti, portanto, força e desprezo pelo outro, saúde e uma certa imoderação, dotes oratórios e irascibilidade, confiança em si próprio e descontentamento em relação a todos os outros, superioridade e tirania, conhecimento dos homens e desconfiança em relação à maioria, depois também qualidades sem desvantagens, tais como a diligência, a perseverança, a presença de espírito, a intrepidez. Comparativamente, de tudo isso eu quase nada tinha ou tinha só muito pouco. Poderia eu atrever-me a casar ao ver que tu próprio tinhas de lutar duramente no casamento e que até falhavas em relação aos filhos?”

Transcrevi apenas algumas partes, não necessariamente as mais significativas deste texto implacável, mas aquelas que ajudariam, num relance, a ter a perspectiva desta confrontação. Tive hoje necessidade de reler este notabilíssimo livro de Franz Kafka e um outro texto  – A Maleta do meu Pai – do escritor turco Orhan Pamuk. Para além destes dois textos, queria ouvir, obsessivamente, os Buena Vista Social Club. O belíssimo livro de Pamuk abre com um texto homónimo que foi o seu discurso de aceitação do prémio Nobel em 2006 e é uma homenagem sentida ao Pai. O seu pai, um frustrado poeta – tentaria ir viver em Paris para ver se singrava como escritor! -, entrega-lhe, no fim da vida, uma maleta contendo os seus manuscritos todos para que o filho os lesse após a sua morte. Orhan conta o dilema de enfrentar aquela outra pessoa que ele defrontaria, depois de conhecer os poemas e os textos em prosa que este intentou, receando transformar uma pessoa conhecida numa personagem estrangeira, o que geraria uma incómoda distância onde antes houvera proximidade afectuosa. A história é de uma beleza comovente e narra, depois, a trajectória do escritor, que antes fora pintor, e que cumpre, por assim dizer, o sonho do pai, o de ser escritor, no caso dele, um escritor que viria a tornar-se consagradíssimo.

Orhan Pamuk: “Vinte e três anos antes do dia em que meu pai me deixou a sua maleta, e quatro anos depois que decidi, aos 22 anos, me tornar romancista e, abandonando tudo o resto, me recolhi, acabei o meu romance, Cevdet Bey e Filhos; com as mãos trémulas, entreguei ao meu pai os originais dactilografados do livro ainda inédito, para que ele pudesse lê-lo e me dizer o que achava. E não só porque eu confiava no seu intelecto: a sua opinião era muito importante para mim porque ele, diferentemente da minha mãe, nunca se opusera ao meu desejo de me tornar escritor. Àquela altura, meu pai não estava connosco, estava muito distante. Esperei pacientemente pela sua volta. Quando ele chegou, duas semanas mais tarde, corri para abrir a porta. Ele não disse nada, mas na mesma hora me abraçou de um modo que me fez entender que tinha gostado muito. Por algum tempo, mergulhámos no tipo de silêncio desconcertado que tantas vezes acompanha momentos de grande emoção. E então, depois que se acalmou e começou a falar, meu pai recorreu a uma linguagem rebuscada e exagerada para manifestar a sua confiança em mim e no meu primeiro romance: disse que um dia eu ainda iria ganhar o prémio que estou aqui para receber com tanta felicidade”.

Kafka, escritor checo de língua alemã, embora se tenha transformado num escritor influente, dos mais influentes do século XX, não terá alcançado, em vida, o sucesso do turco. A Metamorfose, O Castelo e O Processo são algumas das suas obras emblemáticas, onde avultam os conflitos e as confrontações físicas e psicológicas, que ele próprio viveu, na relação filial, ou os labirintos burocráticos e outros, que tornam os seus textos, por vezes, sufocantes e aflitivos. Ele teve influência decisiva em escritores como Albert Camus ou Jean-Paul Sartre (existencialistas franceses) ou o colombiano Gabriel García Márquez. Aliás, Márquez confessa, num relato, que tanto A Metamorfose, do Kafka, como Pedro Páramo, do Rulfo, estão na origem da sua maior influência e na criação do realismo mágico sul-americano. Kafka é um precursor do realismo mágico.

Orhan Pamuk tem uma vasta e reconhecida obra: A Cidadela Branca, Os Jardins da Memória, Vida Nova, O Meu Nome é Vermelho, A Casa do Silêncio, Istambul: Memórias de uma Cidade, O Museu da Inocência, entre outros livros. A Maleta do meu Pai é uma evocação comovente: “Sou-lhe tão grato, no fim das contas: ele nunca foi um pai cheio de ordens, proibições, controle e castigo, um pai comum, mas sim um pai que sempre me deu liberdade, sempre me tratou com o maior respeito”. Está nos antípodas do pai do Kafka ou daquilo que o Kafka descreve do pai.

Quanto aos Buena Vista Social Club: escrevo ao som do disco gravado ao vivo no Carnegie Hall, em Nova Iorque, em Julho de 1998. Há anos que estas vozes e a história destes músicos longevos, resgatados por Ry Cooder, me comove. Há um documentário, de Win Wenders, absolutamente maravilhoso, que vi e revi ao longo de anos. Vivi na promessa de os ver tocar e cantar. Vi primeiro Omara Portuondo, hoje com 87 anos, em São Paulo, num concerto com Maria Bethânia, em 2008.

Ibrahim Ferrer era a voz mais bela do grupo. Morreu em 2005, com 78 anos. Rubén Gonzalez, que ficara décadas sem tocar um piano, e que neste espectáculo faz uma exibição de outro mundo, morreu antes, em 2003, com 84 anos. No mesmo ano morrera Compay Segundo, com 96 anos. No documentário de Wenders, Compay Segundo desvenda a longevidade: bebia, fumava puros desde os 4 anos, quando os acendia para a sua avó, amava incansavelmente. Era um bon vivant. Ainda tinha esperança de ter filhos para acrescentar à sua extensíssima prole.

Meu Pai faz hoje 81 anos. Pedro Francisco Saúte nasceu a 19 de Abril de 1937. Bebeu e fumou, amou muitas mulheres. Foi, a seu modo, um bon vivant. É-o.  Está rijo. É desta cepa. A nossa geração não tem a mesma fibra. Creio que me lembrei do Compay Segundo hoje e dos seus velhos companheiros porque o meu Pai, salvaguardadas as devidas distâncias, é isso mesmo: um homem daquela (boa) cepa. Admiro-lhe a fibra, para além de lhe admirar – vocábulo hoje em moda – a resiliência. Meu pai é um resistente. Nasceu numa remota zona do país – em Inhambane, em Morrumbene -, nasceu órfão de pai. A mãe, em segundas núpcias, teve outro leito, outro marido, outro lar, diverso dos Guidanga, de onde são oriundos os Saútes. Foi desposada por um outro homem e dessa relação nasceram os meus tios, todos eles mortos. O meu Pai aí está, sobrevive-lhes a todos, não obstante a vida que teve, as noites e madrugadas consumidas no Porto de Maputo, primeiro, e, depois, no Porto de Nacala, e de novo no Porto de Maputo, onde foi conferente de carga.

Como um miúdo abandona o interior e triunfa na cidade? Foi o que lhe aconteceu. Ferro-portuário da antiga geração, só não cumpriu o sonho da faculdade – ainda a frequentou, mas não a concluiu -, e da literatura. Bebi dele o amor pela língua. O meu belo e velho Pai saía do Porto e fazia a ronda dos bares. Chegava a casa embriagadíssimo e acordava-me para discutirmos vocábulos da língua portuguesa. Desconfio que ele era um leitor assíduo de dicionários e de gramáticas. Tem um português correctíssimo e um vocabulário inusual para um homem que andarilhou no cais. Aqui também ele tem a minha indisfarçável admiração. Sei que ele intentou escrever a sua história. Pus-lhe, em casa, dois computadores que foram, sucessivamente, roubados. Ele queria escrever. Ele escreveu, mas sinto o receio do Orhan Pamuk de me defrontar com a outra personagem.

Lembro-me, há remotíssimos anos, de ele ser um homem assertivo e severo. Não era permissivo, era intransigente, sobretudo com a minha irmã Dulce. Mas longe de ser o pai tirano do Kafka. Pertence a uma geração de pais severos, mas contei sempre com a sua bonomia, a despeito das madrugadas etílicas em que tive que discutir clássicos que ele tinha na estante ou os vocábulos de uma língua que ele me incitava a dominar. Devo-lhe essa herança e talvez a vocação para a escrita. Ler a Carta ao Pai permite-me fazer um retrato benévolo do meu e, não obstante, o tormento que o álcool provocou, quando ele bebia sem remissão, visto a esta distância, não me confronto nem com mágoas, muito menos ressentimentos. Divergimos, não raro. Pertencemos a edifícios geracionais diversos, por vezes, adversos.

Ei-lo: sem mácula aparente, para além da idade indisfarçável. A nossa geração não tem a mesma fibra, disse-o e repito-o aqui. Esta gente é de outra galáxia, de outra ordem, tem outra consistência. Ele lembra-me estes belos velhos que encantam a minha noite enquanto redijo este texto: Compay Segundo tinha uma interminável filharada. Meu Pai teve filhos com 5 mulheres. Somos muitos. Nunca sei ao certo, tenho de parar e fazer a contabilidade. Ainda hoje é um homem que não se coíbe das artes e dos mistérios do amor. A minha mãe ainda se queixa das suas empreitadas líricas. Digo-lhe para não fazer caso disso. Oiço o Buena Vista Social Club, que vi tocar e cantar, muitos anos depois, já sem Ibrahim Ferrer, sem Rubén Gonzalez, nem Compay Segundo e redijo, depois de reler Franz Kafka e este (outro) pungente texto de Orhan Pamuk, esta prosa breve mas de incontida emoção, como se fosse um comovido abraço para o meu Pai no dia dos seus anos.

 

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