O País – A verdade como notícia

Capitão de médio curso

Foi o meu dilecto amigo Álvaro Belo Marques, de quem fui discípulo, quem me havia de levar a Baptista-Bastos. Sabia da minha devoção intrémula por ele. Era, entre os escritores portugueses, aquele a quem mais empregava o meu entusiasmo quando se lhe referisse. Lera sobretudo o cronista, mas também o romancista. Lera-lhe tudo o que era possível encontrar em Maputo: As Palavras dos Outros (crónicas e reportagens), Cidade Diária (crónicas), Capitão de Médio Curso (crónicas), Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura (romance), Elegia para um Caixão Vazio (romance). Recordo-me destes títulos. Cumpliciava com o Álvaro a minha entusiasmada admiração. O Belo Marques era ao tempo o meu mestre em jornalismo, meu e de uma geração. Homem cultíssimo e de uma finíssima sensibilidade, tinha do Álvaro Belo Marques a benesse da conversa e da tertúlia, nas quais falávamos amiúde de livros, de escritores, de música, de cinema, de teatro. Falávamos com urgência da vida. Baptista-Bastos, o autor dos títulos que referi acima, era um ponto de convergência da nossa amizade e na sua veneração. Quando fui a Lisboa, em Junho de 1988, em jornada cultural, ele acederia encontrar-se comigo. Para mim, foi uma espécie de láurea.

Encontrámo-nos, justamente, no dia 25 de Junho de 1988, um dia jubiloso, era um sábado, recordo-me, e foi numa taberna lisboeta do Bairro Alto, denominada Águia D´Ouro. Ali nos encontrámos e ali firmámos a nossa amizade. Para sempre. Nem sempre o escritor que devotamos coincide com a personagem quotidiana que leva o seu nome. Pode acontecer serem duas pessoas diversas. Há tipos que escrevem coisas belíssimas e, no entanto, difíceis no trato e no convívio. É preciso ter cautela. Alguém asseverava que se devia manter distância quando amamos a obra de um determinado escritor para não experimentarmos a decepção de o conhecer. No caso do Baptista-Bastos, o contacto com ele e o convívio que tivemos ao longo dos anos aumentaram a admiração que tenho e que sempre tive pelo escritor. Comigo o homem foi sempre de uma grande afectuosidade. Uma grande generosidade, digo. O homem não desmentiu o escritor, antes pelo contrário. Sobretudo porque nunca abjurou dos seus valores.

Naquele dia, o Baptista-Bastos, também conhecido por B-B, não estava a beber, estava com um abcesso na boca e pediu uma água das pedras.  Ele escrevera algures: “O álcool reconforta-me, dá-me a ilusória aparência de equilíbrio emocional, mas destrói-me a memória vocabular e torna impossível qualquer expressão de dissidência.” Em Elegia para um Caixão Vazio afirmara: “Hoje já não me aflige muito a circunstância de beber em demasia. Desinteressei-me das causas e rebelei-me contra os efeitos.”

Eu estava ali diante de um verdadeiro “demónio tutelar” – expressão usada pelo colombiano Gabriel García Márquez ao falar do mexicano Juan Rulfo, que escreveu esse livro ímpar chamado Pedro Páramo, que o terá influenciado definitivamente -, o mais importante de todos. O mestre foi enfático: “Então, ó Nelson, como vai Moçambique?” e deu-me um abraço, um abraço rijo, como redigiu numa das dedicatórias, de um dos livros que me ofereceu. Falei-lhe de Moçambique com a brevidade necessária de quem queria ouvi-lo sobretudo. Ele falou-me dos episódios do quotidiano, a história de personagens do dia-a-dia. Ele amava as pessoas e gostava de discretear sobre elas. Tudo isto bebericando a sua água das pedras. Eu lera o seu auto-retrato e ali confrontava-me com o homem que não era o simulacro do que tinha descrito no romance Elegia para um Caixão Vazio, antes pelo contrário: “Este sou eu. E olho-me. O cabelo vai ruço, o olhar míope, vago, dorido, taciturno, e outrora não foi nada disso. As pálpebras, velas de muitas palavras sopradas, lidas e escritas; de naus melancólicas cheias de álcool, rumando absurdos portos de abrigo, os bares. À procura de quê, ó Bastos, à procura de quê? Muito mais de metade da vida consumida a aprumar frases, a tentar acertar num livro, numa historinha, numa reportagem, e sempre ignorado, ou conhecido somente pelos estafetas da cordialidade.”

Baptista-Bastos: “Cá estou eu. Um capitão de médio curso que não é capitão nem é nada; um retirante, porventura.” Para mim, sim, ele era um capitão, um capitão de médio e longo cursos. Eu viera de Maputo, de uma geografia longínqua para lhe dar um abraço. Ali estava com ele, o meu mestre, o maior de todos os meus mestres. Falou-me do amor aos homens, o amor irrenunciável à liberdade, a crença de que a felicidade era possível entre os homens, entre todos os homens. Dissera-me ele: “Os homens não foram feitos para serem heróis”. Esta frase ainda reverbera em mim. Os homens foram feitos para viverem em paz e harmonia, acrescentara ele. Os demónios que se escondem no mato das nossas refregas deviam ouvir isto. Os deuses e os demónios. Sabe-se que a paz, a concórdia, o acordo são vocábulos dissonantes da nossa experiência colectiva.  

Falou-me sobretudo do ofício quotidiano das palavras, o ofício de capitão de médio curso; falou-me sobre a azáfama das redacções, onde expendia os seus dias, onde ele debitava o seu amor aos homens e à liberdade. Onde ele contava as histórias da sua gente, a gente do quotidiano. Vinte anos depois daquele nosso primeiro encontro – outros tantos marcariam a nossa amizade -, ele publicaria o livro de crónicas A Cara da Gente. É sobre essa gente que ele se ocupou a vida inteira, nas suas crónicas, nas suas reportagens, nos seus romances. Escritor de primeiríssima água, para mim, indubitavelmente, o maior cronista português do século XX. À época, o maior cronista vivo da língua portuguesa. Naquela ocasião falámos de grandes cronistas e eu referi-me aos cronistas brasileiros, entre eles Rubem Braga. “O meu amigo Braga!”, exultou ele sobre o autor de O Conde e o Passarinho ou A Borboleta Amarela.

Baptista-Bastos ensinou-me, naquela brevíssima tarde, um dos segredos da reportagem: “Começa a reportagem com o facto que mais te emocionou.” Esta foi uma lição de vida. Antes de redigir um texto, diante da pantalha do computador, ou quando batucava – eis um vocábulo pilhado ao meu mestre – na minha vetusta e manual Royal, uma máquina de escrever, que se perdeu nos anos e da qual tenho saudades absurdas -, antes de me atirar ao ofício das palavras, digo, recordo-me da advertência do mestre de sempre: penso sempre no facto que me emocionou.

Outras obras de Baptista-Bastos posteriores àquele primeiro encontro: Um Homem parado no Inverno, O Cavalo a Tinta da China, No Interior da Tua Ausência, As Bicicletas em Setembro (romance) ou a A Cara da Gente (crónicas). Uma extensa e extraordinária obra, premiada e traduzida.  Escritor de grandes paixões, leio-o sempre exaltado e apreendo-lhe as paixões e a ternura torrencial que invade as suas páginas. A sua grande generosidade. O seu profundo humanismo. O seu amor aos outros. Escreve ele: “Jovem escritor, assaltou-me a petulante ambição de narrar invenções sobre os outros, a maneira que entendi melhor para recusar a vida tal como ela se apresentava.” Isto é extraordinário. Li isto, em Agosto de 2008, no frontispício do livro A Cara da Gente. Do quarto do hotel, em plena Copacabana onde me encontrava, escrevi-lhe: “Tenho sobre a mesa, neste quarto de hotel, sobre a Avenida Atlântica, em Copacabana, As Bicicletas em Setembro e A Cara da Gente. Dois livros recentíssimos. Li-os na longa travessia pelo Atlântico e recordei-me daquele dia triunfante. De ti li quase tudo. Leio-te empolgado ainda hoje. Naquele tempo, quando aprendi a batucar as crónicas que eu levava debaixo do braço para o jornal Notícias, lia e relia a Cidade Diária. E intentava o meu caminho tendo-te como meu predecessor. Disse-o e repito: escolhi-te para meu mestre, meu velho Baptista-Bastos. Digo “velho” com o pungente significado de afecto que este adjectivo tem na minha cultura. Para mim, para nós, dizer velho é uma forma de reverência, de respeito. Tu bem sabes, eu sei, mas o aviso serve aos incautos.”

Digo algures: os seus livros estão carregados de um profundo humanismo, mas não escondem, por vezes, uma ternura magoada. João Paulo Guerra, um amigo comum, um grande jornalista português, disse uma vez que Baptista-Bastos escrevia reportagens com lágrimas nos olhos. Eu li-o sempre com lágrimas nos olhos e muitas vezes quis escrever como ele: com lágrimas nos olhos. Comecei por ler as crónicas, li as entrevistas, li as reportagens, li os romances. O esplendor da língua. A luminosidade das palavras. Poucos escrevem com igual competência linguística: vocabular e semântica. Poucos manejam e remanejam a língua portuguesa como ele.  

Ele diz: “O jornalismo é uma disciplina superior da literatura.” Ele está na grande linhagem dos grandes cronistas portugueses. Ele é o maior cronista português do século XX. Sei que esta frase encerra, sublinha, enfatiza, uma veemência, uma exclamação, algo superlativo. Sou assim: veemente e, inadvertidamente, irreverente. Gosto de ser enfático. Ponho nas palavras ou tento pôr tudo quanto sou. Com a intensidade desprevenida de quem ama sem se precaver das desilusões.

Tive a honra e o privilégio de o ter a apresentar e a apadrinhar, em 1997, na Oikos, em Lisboa, o meu livro O Apóstolo da Desgraça, esse título que foi parodiado displicentemente no vocabulário político moçambicano, e que serviu para cercear a liberdade daqueles cujo ofício e destino é baterem-se pela liberdade do pensamento e das palavras, algo incompreendido e malvisto e malquisto, entre nós. Recuperei-o para título desta coluna. Também sou pelo direito à diferença e pela liberdade de discordar. O meu amigo Baptista-Bastos haveria de publicar o texto daquela apresentação num jornal para o qual ambos debitámos textos e paixões – o Público – com um título inesquecível: “A sintaxe do coração.” Nesse belíssimo e comovente texto ele falava da nossa amizade urdida no amor às palavras, no amor à liberdade e no amor incondicional aos outros – o nosso ofício quotidiano.

Sempre que o vi, sempre que nos encontrámos, foi com afecto que sublinhámos a amizade, com ternura incontida, entre o mestre e o discípulo. No longínquo e memorável dia – passam 30 anos! – em que ele bebia água das pedras, numa taberna do Bairro Alto, ainda fomos, pelas ruas estreitas de Lisboa, ao jornal Diário Popular, onde ele exercia então a mais bela profissão do mundo: a de repórter. Naquela redacção, onde se atafulhavam paixões, papéis, notícias, telexes e sonhos, ele tinha uma dezena de livros para me oferecer. Sentou-se à secretária e ajeitou os óculos. Parava e contava uma história, entre um autógrafo e outro. Numa vitrina, por detrás da secretária, coleccionava caricaturas, entre as suas destacava-se uma do grande Ernest Hemingway.

Vim, debaixo do braço, com O Secreto Adeus, O Passo da Serpente, Cão Velho entre Flores, Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura, Elegia para um Caixão Vazio, A Colina de Cristal (ficção), As Palavras dos Outros, Capitão de Médio Curso (crónicas) e O Homem em Ponto (entrevistas), no qual ele redigiu no frontispício: “25. Junho. 1988. Nelson Saúte: Não esqueças, nunca, que O Homem em Ponto põe sempre em ponto a questão da liberdade. Do português para o moçambicano, Baptista-Bastos.” O “nunca” está sublinhado. Nunca me esqueci disso, do seu profundo significado, do profundo significado da questão da liberdade. E faço quezília em lembrá-lo, sempre, sobretudo nestes tempos sombrios e atravessados pela mediocridade e pela intolerância, da qual tento estar a salvo, lendo e escrevendo, ouvindo música e amando sempre – dado que não sou afeito a ódios -, com ênfase e veemência.

Passam 30 anos hoje (redijo este texto à segunda-feira) sobre o dia em que nos encontrámos. A última vez que falei com ele foi a 27 de Fevereiro de 2013, no dia dos seus 80 anos. Falámos brevemente ao telefone. Eu estava emocionado por saudá-lo naquele dia. Há um ano, a 9 de Maio, chegou-me a infausta notícia: Baptista-Bastos deixara de pertencer ao reino dos vivos. Um mês depois, a 16 de Junho, foi o Álvaro Belo Marques. Perdi, numa assentada, dois grandes amigos, duas personagens importantes na minha vida. Um dia voltarei ao Álvaro. Queria hoje recordar-me do meu mestre Baptista-Bastos, quando passam, neste dia 25 de Junho de 2018, dia da nossa independência, três décadas sobre um dos encontros literários mais importantes e decisivos da minha vida.

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos