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Cada juiz tem 800 processos pendentes em Moçambique

Carlos Mondlane é presidente da Associação Moçambicana de Juízes, desde 2015. Com experiência em vários pontos do país, o juiz traça o diagnóstico da justiça em Moçambique, apontando os principais desafios. Mondlane entende que é preciso reforçar o investimento na formação de juízes, uma vez que o país tem apenas 140 profissionais desta classe, assim como atribuir autonomia financeira aos tribunais. Diz, também, que o conhecimento do funcionamento da justiça é deficitário em Moçambique e que, em regra, as pessoas não têm contacto com as instituições. Siga a entrevista.

Qual é a saúde da justiça em Moçambique?
O estado da justiça em Moçambique é desafiante. Um dos termómetros que nós temos para medir a justiça em Moçambique é a imprensa. É só ver aquilo que passa todos os dias na televisão, na rádio, nos jornais. A percepção que as pessoas têm sobre justiça, que não é necessariamente minha, é de que o sector da justiça é um sector que, por si, é como se estivesse debaixo de um manto negro, que ninguém percebe o que os fazedores da justiça no dia-a-dia fazem e que resultados mostram.

Desempenho qualitativo ou quantitativo?
Quer do ponto de vista quantitativo, como do ponto de vista qualitativo, penso que o desempenho está numa tendência crescente, numa tendência cada vez mais positiva. Pela primeira vez, nos últimos dois anos, relativamente à quantidade de processos que dão entrada, os tribunais têm conseguido findar mais processos do que aqueles que dão entrada.

Como é que vê esta falta ou fraca informação sobre a actividade dos juízes em Moçambique?
Em regra, em Moçambique, as pessoas não têm muito contacto com as instituições. O grande ganho que nós tivemos para reverter este quadro foi a aprovação recente da lei do acesso à informação. A partir daí, as pessoas podem passar a perceber como é que as instituições, sobretudo as públicas, funcionam. No que tange aos tribunais, há uma perspectiva de distanciamento por parte dos nossos cidadãos, em que o tribunal é visto como uma entidade que atemoriza, por conseguinte, as pessoas não sabem muito bem como é que funciona.

Como é que se explica que os juízes tenham um tratamento especial, no sentido de terem férias de dois meses, quando existem ainda muitos processos pendentes no nosso país, acima de 150 mil?
Não existem férias judiciais, o que acontece é que o nome férias judiciais é enganador. Se nós olharmos para a nossa lei de organização judiciária, está lá estabelecido que as férias judiciais correm durante o período do mês de Janeiro e Fevereiro, são dois meses. Mas as férias judiciais, quando eu digo que não existem, não existem no sentido de que os tribunais fecham e os juízes vão de férias durante dois meses. Na verdade, é um período que é consagrado para a organização interna das actividades dos tribunais.
 
A morosidade da justiça é uma realidade no nosso país. Na gíria popular, uma justiça tardia não é justiça…
A nossa preocupação, como juízes, é conseguir uma pendência zero. Que cada cidadão que tem um problema vá a um tribunal e, em tempo oportuno, seja feita a justiça. E é por isso que todos os dias, em Moçambique, os homens e mulheres que vestem a toga batem-se para que assim seja. Mas, também, é preciso perceber que Moçambique tem um problema, desde já, que tem a ver com investimento na área da justiça. Nós somos cerca de 140 juízes, hoje, em Moçambique, para julgar num país em que o número da população anda em cerca de 24 milhões. O rácio entre o número de juízes e a população é de cerca de um juiz para cada 100 mil habitantes. As Nações Unidas dizem que o ideal é um juiz por cada 18 mil habitantes. Então, imagina que um juiz, potencialmente, tem, de acordo com o número de processos pendentes que temos hoje, cerca de 800 processos pendentes. E a actividade de julgar é uma actividade que, acima de tudo, mexe com a capacidade cognitiva da pessoa, exige uma determinada concentração.

Essa estatística é muito favorável para acomodar este argumento de morosidade da justiça. Mas nem todos os moçambicanos estão implicados em casos que justificam recorrer aos serviços da justiça?
Eu estou a falar do rácio entre o número de juízes e a população. Quanto mais população temos, mais probabilidade de conflito há, e esta conflitualidade, directa ou indirectamente, vai culminar nos tribunais.

Mas, hoje, nós temos cerca de 800 processos potencialmente pendentes para cada juiz, o que é que isto quer dizer?

Quer dizer que é preciso que haja um investimento, por exemplo, a nível de recursos humanos, para que se baixe a tal pendência que está adstrita a cada juiz.

O que é que o Estado ainda tem que fazer para melhorar as condições de trabalho dos juízes?
Nós precisamos de reforçar o próprio sector da justiça com mais juízes. Nós somos poucos. O número de juízes em Moçambique, para aquilo que é a demanda decorrente do próprio desenvolvimento, é pouco.

Qual é a mudança expectável no imediato?
Desde logo, um incremento do orçamento para o funcionamento dos tribunais. Porque um incremento do orçamento vai significar, por exemplo, a contratação de juízes.

Que percentagem?
O ideal, na verdade, seria 100%, mas eu sou realista. Olhando para a realidade do país, o Estado não consegue, numa única autuada, fazer este incremento. Mas tem que haver uma determinada proporção, que permita ao próprio Estado subsistir e acolhendo cada vez mais juízes, para poderem enfrentar os problemas da criminalidade e não só. Era importante que tivéssemos representações dos tribunais um pouco por todo o país.

O bastonário da Ordem dos Advogados disse que era o momento de se acabar com essa percepção de que a justiça é mais forte para os fracos e fraca para os fortes…
Uma das razões que pode dar uma aparente explicação de a justiça, muitas vezes, parecer oprimir os fracos tem a ver com a capacidade de os próprios fortes poderem munir-se de todo o manancial de defesa que muitas vezes uma pessoa que tem menos posses não consegue ter. Por exemplo, quando ocorre um crime ou qualquer tipo de litígio, uma pessoa de uma posição social melhorada consegue contratar os melhores advogados. Estes melhores advogados podem usar todo o tipo de argumento de defesa e pode parecer que toda a máquina judicial acaba cedendo a este grupo de entidades que intervêm processualmente, diferentemente de um sujeito que acaba beneficiando de assistência jurídica de um organismo como IPAJ, com todas as limitações que daí advêm.

Qual é o comentário que tem para o processo do julgamento de Josina Machel?
Eu não vou falar sobre o caso Josina Machel, assim como não vou falar de nenhum processo em especial. Não vou falar porque não é ético eu estar a comentar os processos que foram julgados pelos meus colegas. Mas o juiz, quando julga, atem-se a um determinado quadro normativo das leis que visam acautelar a situação que foi colocada para ele apreciar. É assim como o juiz julga, é assim como o juiz decide, em função dos elementos que são trazidos.

O Conselho Superior de Magistratura Judicial tem como aferir estas responsabilidades por parte dos juízes, sem depender de denúncias dos advogados?
Para o conselho poder aplicar qualquer que seja a sanção, tem que ser comunicado. Se o advogado ou qualquer parte que se sente lesada por um acto de indisciplina do juiz não faz chegar ao conselho, não vai ter conhecimento e, não tendo conhecimento, não tem como sancionar o juiz, então, esta é uma das razões.

Ficou patente que existe uma percepção popular ou uma crítica popular, e até da Polícia, de que os juízes ou os tribunais soltam bandidos. Qual é a resposta a esta crítica?
Para começar, só o juiz, fora de situações de flagrante delito, só o juiz tem o direito de prender, hoje, em Moçambique. Houve um acórdão exarado pelo Conselho Constitucional que disciplinou a questão das prisões, porque o que havia em Moçambique era um uso exagerado e até abusivo da questão das prisões, qualquer um podia prender. Então, houve um acórdão do Conselho Constitucional que passou a limitar que naquelas situações em que não há flagrante delito, para que haja prisão, só o juiz é que podia ordenar. E porque é que só o juiz? Porque o juiz é titular de um órgão de soberania e, por conseguinte, é a entidade mais habilitada para poder limitar um direito fundamental de um cidadão, que é a liberdade. Não pode ser qualquer um a limitar a liberdade à pessoa. A liberdade é a regra, a privação da liberdade é uma excepção.

Que tipo de protecção os juízes ou até mesmo os advogados que tenham casos relativamente complexos deviam ter por parte do Estado?
O juiz que lida com processos chamados quentes sente uma necessidade de ter protecção especial. É preciso dotá-lo, pelo menos durante o tempo em que esteja a tramitar um processo, de segurança humana e precisa fundamentalmente de perceber que, em caos de perigo iminente, a quem pode recorrer.

O Ministério Público arquivou o processo sobre a morte do juiz Dinis Silica por insuficiência de provas. Como pode o Ministério Público não ser capaz de encontrar os autores do crime?
Nos últimos tempos, em Moçambique, temos tido muitos casos chamados quentes que nunca foram esclarecidos. e são muitos casos, desde Siba-Siba, Dr. Gilles Sistac, jornalista Paulo Machava, juiz Silica, procurador Marcelino Vilanculos. Temos tido muitos caos que não têm tido o devido esclarecimento e, na perspectiva do Estado, é muito mau quando ele não consegue dar o devido esclarecimento dos casos. Mas, dentre eles, não que uma vida valha mais que a outra, o caso do juiz Silica é dotado de um determinado sentimento. Porque tudo indica que foi um juiz que foi morto no exercício ou pelo exercício das suas funções. Havia uma obrigatoriedade acrescida de o ministério público fazer o devido esclarecimento deste caso. Conheci o juiz Silica, era meu amigo, colega e eu, juntamente com outros, senti a perda deste homem que foi um magistrado e também um pai de família.

Lamenta o facto de Moçambique ser um dos países mais corruptos do mundo e, até, ao nível dos lusófonos? Como Associação de Juízes, tem conhecimento de casos de corrupção envolvendo colegas?
O Centro de Integridade Pública (CIP) divulgou, há pouco tempo, um relatório sobre a corrupção. Nele, Moçambique está na lista dos 20 países mais corruptos do mundo. O mesmo relatório diz que Moçambique é o último país ao nível da lusofonia, num ‘top 10’ que foi feito. Este cenário é preocupante. É importante que se saiba que, quando se fala de corrupção, não se pense que ela é uma coisa dos outros. Quando se diz que Moçambique é um país corrupto, significa que nós, como moçambicanos, é que somos corruptos. É importante que cada moçambicano procure perscrutar dentro de si, procure saber o que faz para que tenhamos esses números. Estes números não caíram simplesmente do céu, traduzem aquilo que nós como sociedade fazemos. Há corrupção também na magistratura judicial. Tenho a felicidade de fazer parte do Conselho Superior da Magistratura Judicial e todos os casos que este órgão julgou envolvendo juízes corruptos, foram sancionados com penas de expulsão.

Quando um órgão solicita informação sobre um determinado processo ou facto, a resposta recorrente é “o que está em causa é o segredo de justiça”. O que é efectivamente segredo de justiça?
O cidadão pode ter interesse em saber sobre o funcionamento do Conselho Superior, quantos processos foram instaurados contra os juízes, quais foram as medidas disciplinares. Todo o cidadão moçambicano é livre de ir ao Conselho Superior da Magistratura Judicial e pedir esta informação. Se o processo não estiver sob segredo de justiça interno, por se tratar de um processo que ainda está em decurso, ou que só interessa ao próprio arguido e ao organismo que está a tramitar, não pode ser revelado.

Até que ponto os órgãos de informação têm o dever de não publicar uma matéria de interesse público sobre um processo a que tiveram acesso por respeito ao segredo de justiça?
Por se tratar de um processo-crime que ainda está na fase de instrução, decididamente, não pode ser publicado. A lei estabelece a figura de segredo de justiça e proíbe que sejam exteriorizadas peças processuais relacionadas.

Sobre a segurança dos juízes

Juiz Mondlane diz que o crime organizado tentou capturar o Estado e um dos exemplos é a morte do juiz Silica. No ano passado, foi feita uma reunião sobre a segurança dos magistrados, o que concluíram? Os juízes moçambicanos sentem-se protegidos?   
Sentimos que o crime organizado cresceu de forma bastante expressiva. Em Moçambique, agora, já é possível matar um juiz, um procurador, e esta demora por parte das instituições para fazer o esclarecimento deixa todos os fazedores da justiça assustados. No final do dia, o juiz é um homem com mulher, com uma família, filhos, e isto tudo deixa os fazedores de justiça inquietos. Recentemente, li uma entrevista do criminalista Elísio de Sousa em que dizia que um país onde se matam juízes e o Estado não identifica os autores deste crime é um estado capturado. Não chego tão longe. Eu não aceito que o Estado possa ser capturado pelo crime organizado. Vivemos numa dialética em que o crime organizado tenta capturar a justiça, mas a justiça posiciona-se e tenta estar o quanto mais longe possível deste crime organizado. Uma coisa é certa, sofremos bastante nos nossos alicerces quando perdemos um companheiro.

 

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