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Boladas de cá II*

Por: Ricardo Mutita

 

Eram por aí 7 horas, quando Hantsa passava por um posto de controlo de trânsito, em direcção àquela região sul da província de Cabo Delgado. Lá encontrava-se o seu tio, Djampirito, a trabalhar na função pública.

Uma velha viatura de pele desidratada, rugosa, seminua, com todas as artérias desconectadas do seu motor gripado, com um aparelho de som operado por um doutor estagiário, uns teclados desertados e outros exonerados, uma placa estuprada e deixada à solta, e, para melhor representar toda esta humildade do pobre motorista que só se concentrava em proteger vidas dos buracos assaltantes e de outros gafanhotos voadores pela estrada do sacrifício, amarada com borracha. Lá se fazia Hantsa e muitos outros passageiros pelas estradas do delegado que malcomia palmas e moedas.

Depois de muita tontura, sensação de cansaço excessivo, pernas pesadas, bocejos e sonecas, contornando bem ali naquele troço Silva Macua–Awasse, Estrada Nacional Número 380, sustuosamente, o motorista grita:

Hei, pessoal: trânsito… Máscara.

Rápida e tremulosamnete, o cobrador, bofeteando as costas dos passageiros, como quem estivesse a acordar prisioneiros para o julgamento final, ia exigindo que se respeitasse o decreto presidencial, aliás, que o motorista acabara de promulgar:

Máscara, pessoal, máscara. Separando, ao mesmo tempo, as notas de um bolso para o outro e uma outra fresquinha embrulhada na mão direita.

Bom dia, senhores!

Silêncio total. Rondava, o policial, o olhar pelas caras dos passageiros, aguardando mais um pouco para ver se alguém de boa educação reagia à sua saudação, mas patavina – era só silêncio e mais silêncio.

Bom dia!!! Não falam, vocês? Insistiu, já meio arrogante, o camaleão.

Continuavam todos em silêncio e com as caras bem trancadas. Até os três bebés e as cinco crianças que, desde o local da partida, não paravam de pwerar (chatear), ali cresceram, leram e entenderam a matéria.

Muito bem… os vossos documentos de identificação, por favor. E o dono daquela trocha coberta de saco cor-cor pode descer para nos mostrar a factura. Façam isso depressa, senhores surdos.  

(…)

Hei… o senhor tem um nome muito estranho: Hantsa Suria Sufo? É de Nampula mesmo? Estou a pedir para descer e ir ter com o meu chefe para averiguar essa situação.

Mas chefe… só por causa do meu nome, só?  

O senhor quer me ensinar a trabalhar? Peço para descer antes de complicar a sua situação. Onde está o dono da trocha?

Já estou aqui, chefe.

O que é isso? Com o dedo alinhado à bagagem e uma expressão facial de estranheza, como quem nunca tivesse visto um fardo de roupa, saco de milho ou coisa parecida.

São lençóis, chefe. Mostrando a factura, com a firmeza de que tudo da sua parte está, devidamente, acautelado.

Heee… jovem, os números desta factura não são legíveis, mal se vê o IVA, IRPS e outros itens de fidedignidade processual. Nestes termos, as tuas boladas ficam suspensas por um período determinado pela tua força de vontade. Pode descarregar.       

Do outro lado, estava o pequeno Hantsa que justificava a estranheza de seu nome, e o motorista que recebia uma capacitação do novo código de estrada, tendo, portanto, tudo terminado em uma bolada de favores. Os infractores, gente ignorante, com coração de mai-mai?, que, dia-após-dia, põe-se, a todo o custo, à estrada, à procura de meios de sobrevivência, sentindo-se pressionados, pediram e ofereceram favores e os de direito, gente estudada, mas com coração de vamos comer aonde?, que, dia-após-dia, põe-se, a todo o custo, à estrada, à procura de meios de sobreriqueza, aceitaram e receberam os favores.

Estes gajos são uma vergonha para o nosso país, pah! Esse é o único tipo de bolada que sabem fazer?

Não são só esses. Assim são todas as boladas de cá. Ainda reina o princípio: “cabrito come onde está amarrado”.

Mas, falando mesmo a sério, estes são os piores, pah – mamam-te a mola e a bolada toda, sem piedade nenhuma.

– E ai de ti, atreveres-te a abrir a boca. Matrecam-te na hora.

Comentavam os passageiros aos berros e alvoroços por todos os cantos da velha chapa. E o motorista que já lhe tinham exigido solidariedade para com os deuses da via, estressado, pontapeava o acelerador e lançava o volante como se fossem os principais culpados por aquela maldição. Não hesitou e, com um punho de aço contra o volante, soltou:

Corruptos do carraças, pah! Só sabem levar a vida de um gajo à merda…

Hei, senhor motorista, com calma aí… não fomos nós que estragamos as tuas boladas. Reagiram, sustuosamente, os passageiros, em corro.

Parece que nada mais poderia consolar o pobre motorista e companhia, nem mesmo a devolução dos favores depositados em gesto de solidariedade para com os deuses da via pública – um acto impossível nestas boladas de cá. Aqui, os fiéis são mesmo fiéis e nunca se arrependem de suas boas acções. Os crentes daqui são sérios para com os seus deuses, apesar de estes só se preocuparem em receber devoções e mais nada. Nada mais fazem. Nada que não se curve aos seus interesses. Depois da bolada, os olhos esquecem-se de tudo, apagam as memórias da mente, e o coração, por mais rebelde que seja, agradece. Não há mais volta.

E, quando a soneca entrava em confronto com os olhos da maioria dos passageiros, o cobrador, na maior emoção, rebentou a velha chapa com uma bofetada daquelas do cabo do delegado que malcomia moedas e palmas:

PHAAAH… descarregar mista… vamos fazer jogo rápido, família: pagou, desceu e tá andar…

Hantsa, pela primeira vez nas terras férteis de Cabo Delgado. Não se atrapalhou tanto, pois já tinha recebido algumas coordenadas do seu tio, Djampirito, que, em conversa, descrevera com bons olhos a terra do algodão, o celeiro da província, de uma forma específica, da sua zona de habitação que era mesmo ali, entre a estação e o mercadinho.

Então, localizou-o. Conversaram tanto. Falaram das boladas de cá, lá e acolá. No mesmo instante, uma chamada correu pelo telefone do tio Djampirito:

Aló, é o senhor Djampirito Sufo Muriparipa? Aqui, agente Birihate do SENVINCER – Serviço de Investigação de Celulares Roubados. Penso que se lembra de mim. Trago-lhe novidades: aquele caso, conforme o seu pedido, já foi transferido.

 

*Texto inspirado numa história real

 

 

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