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Avó Angelina, mãe Alice

Com oito anos saí de casa para ir viver com os meus pais. Dito isto, assim, deste modo, poderá parecer, à primeira vista, algo paradoxal, mas não o é. Há aqui um facto verosímil que explica esta aparente contradição: a minha casa, de facto, sempre foi a casa da minha avó Angelina, onde vivi os meus primeiros oito anos e muitos dos anos (posteriores), que seriam indesmentíveis para a minha formação. Pouco depois de eu nascer, a minha mãe engravidou e a minha avó levou-me consigo. Quando o meu irmão, que me segue, nasceu, eu tinha treze meses. Vivi, entre 1967 e 1974, com a avó Angelina (Xinguavilana) no Bairro Indígena, vulgo Xitala Mati. Em finais de 1975, embarquei com os meus irmãos (Dulce, Flávio, Hélder – o Paulino nasceria depois), acompanhados da nossa mãe, ao encontro do pai, que fora transferido (foi a primeira vez que ouvi esse vocábulo na minha vida, que então me parecia luminoso) para o Porto de Nacala.

Deixei, compungido, a minha avó e os meus amigos, com quem jogava futebol – a bola era de trapo – à frente da loja do Muchina; ficaram os meus companheiros da Escola Primária do Bairro Indígena, onde comecei a estudar; deixei os amigos com quem ia ao mercado do Xipamanine, ou ia aos campos de Muhafil Issilamo ou arredores. Não mais iria espreitar o outro lado da Avenida de Angola, nem tentar alcançar a Circunvalação. Também dera costas à Igreja Wesleyana, cuja cor nunca me sairia da cabeça, e deixara de fazer parte do meu quotidiano. Deixei de brincar no prédio que sobrevive ainda hoje, pese embora decrépito, na Rua do Zambeze. Também não mais iria espreitar os seios que despontavam nas blusas protuberantes das meninas que vendiam badjias e matoritoris na varanda da loja do Muchina. Nem vislumbraria o fémur delas a espreitar das capulanas desobedientes ou dos irreverentes vestidos de chita que vestiam.

Redijo este texto confessional – uma espécie de um atlas confidencial – no dia em que a minha mãe faz 80 anos e a minha avó faria 99 anos. As duas nasceram a 16 de Outubro: uma em 1919, outra em 1938. Minha mãe nasceu ali no Khovo – que era então a maternidade para os africanos, sendo que na altura os portugueses pariam os seus pósteros na maternidade do Hospital Central Miguel Bombarda. Isso depois mudaria. A descendência autóctone ganhou estatuto e direito a sóbole numa maternidade menos inditosa. Ficou registada: Alice Cumbula. Era provinda de David Machapo Cumbula e de Angelina Sitoi. Os Cumbula eram oriundos do outro lado da baía, da Katembe. Meu avô David começara a vida profissional como ardina no vetusto Notícias, antes de ingressar nos Caminhos-de-ferro, onde permaneceu até se reformar. Os filhos seguiram-lhe as peugadas: o meu tio Alberto, nascido do mesmo útero, ou o tio Carlos, filho da minha avó Daína, com quem o meu avô David haveria de praticar as suas mais longas núpcias, ulteriores à minha avó Angelina.    

Foi em Ressano Garcia, onde Joe Mathada e Sofia Mpfumo fundaram a sua prole – na qual avultavam os meus avós Angelina, Manuesse (pai da minha tia Sofia, mãe dos meus irmãos Alice e Carmo, que são ao mesmo tempo meus primos – mas essa história não cabe aqui hoje), Felicidade, Xavier, Henrique, Maria, Laura, Hilário (mais conhecido por Fanyana, era o mais novo e morreu muito cedo), e basearam a família, onde meu avô David interpelou aquela belíssima donzela Angelina, filha mais velha do funcionário da Alfândega, que viera de Mambone e que ocultara o seu verdadeiro apelido. A minha avó tinha um génio dificílimo e fazia questão de afirmar as suas origens ndau. O meu imaginário está habitado dessa paisagem onírica e dos duendes que sempre me haveriam de assombrar. Todos os irmãos da minha avó ou viviam em Ressano Garcia ou do outro lado da fronteira. Eu ia miúdo para Ressano e tenho recordações impressivas dessas viagens de comboio. Quando ela morreu, pediu para ser enterrada ali: o meu neto quando for à África do Sul, vai passar e visitar a minha campa – sentenciou ela. Escusado será dizer que sempre que eu empreendo viagem e por ali passo vou ao cemitério saudá-la, deixar uma flor e pedir sorte e protecção.

No entanto, outro dia fomos, de propósito, a Ressano Garcia: pôr flores na campa da avó Angelina e visitar a avó Laura. Dos irmãos, é a única sobrevivente. Avó Laura é uma das mais novas irmãs da avó Angelina. Liga-nos o nome tradicional: ela é Tchone, nome da mulher de Marimbique. Eu sou Marimbique, que era o nome do avô de Joe, o pai delas. Nas libações, a avó Angelina pedia sempre protecção a Marimbique. Testemunhei tantas vezes as suas invocações aos antepassados onde o nome do meu xará Marimbique assumia um protagonismo incontestado. Mambone, Marimbique, Ressano Garcia, Joe Mathada, Sofia Mpfumo eram e são uma espécie da minha cartografia, os meus numes, as minhas divindades.

Ressano Garcia é, por conseguinte, um lugar mágico para mim. Ia com a minha avó, de comboio, visitar a mãe dela, minha bisavó Sofia. Num dos registos, reconheço o avô Carlos, marido da avó Maria, uma das irmãs da avó Angelina. Na fotografia julgo reconhecer a minha tia Hortência, que viveu comigo em casa da avó Angelina e que era uma estampa. Viveriam muitas outras sobrinhas dela, quando vinham estudar para a capital. A minha mãe contou-me, a seguir a esta romaria, que Hortência já não habita este reino e isso surpreendeu-me e entristeceu-me. Um destes dias eu assentara em versos as impressões que aquele lugar causara e causava em mim:

Ressano Garcia: O rio Incomati demora lesto nas margens / da minha infância sobre a paisagem de pedra/ inclinada nos dias de visita à casa da bisavó Sofia/ em Ressano Garcia onde avultavam  duendes, histórias de mortos-vivos/ e o mito dos crocodilos que devoravam os incautos.// Passados estes anos retorno a Ressano Garcia/ curvo-me diante da lápide/ com nome da minha avó Angelina/ sepultada na tumba do pai Joe Mathada/ no cemitério que margina a estrada/ e anuncia a fronteira, a alfândega, os viajantes, os vendedores de tudo -/os flibusteiros.// Nas fotografias em sépia que sobrevivem/ à corrosão do tempo/ os delidos rostos da minha família materna/ reunida no quintal da casa dos pais da minha avó/ onde me surpreendo de calções, peúgas altas e sapatos/ sentado entre adultos e alguns jovens de então/ a olhar fissurado para uma das minhas tias.”

Naquele dia, ali, naquela casa, a seguir ao cemitério, fitando a encosta inclinada, a areia vermelha, o chão empedrado, o calor impenitente, conversando, docemente, com a avó Laura, olhava para ela sem nunca disfarçar o meu espanto: a semelhança com a avó Angelina. A avó Angelina era uma mulher muito bonita e vaidosíssima. Tinha uma personalidade fortíssima e era inabalável. Tenho lembranças incólumes dela: deitava-se à porta de casa, pedindo-me para lhe fazer uma massagem. Essa é uma das lembranças mais ternas que tenho dela. À noite tirava os dentes postiços e colocava-os num copo de água. Cozinhava esplendorosamente. O seu arroz de cabidela era absolutamente indescritível. Era uma conversadora exemplar. Falava-me nas duas línguas: ronga e português.

Em Novembro de 1975 parti para Nacala. Para trás deixei a melancólica litania dos dias de chuva naquela minha casa de sempre. A chuva a embalar-me sobre o zinco e a memória remotíssima das cheias, dos barcos a resgatar as pessoas, das galochas nos pés de muito poucos, das brincadeiras à chuva, do drama que eu não entendia ainda e que estava na origem daquele milagre da minha infância: a chuva a bater no tecto de zinco. Parti alegre porque ia viajar, ia num avião, ia para o Norte. Lá onde estava o meu pai e lá para onde se dirigia a família: Nacala. E foi lá, primeiro em casa da tia Amélia e do tio Américo, que nos acoitaram, enquanto o apartamento do bairro Ferroviário ficava pronto, onde vivi, com a minha família nuclear, pela primeira vez, aos 8 anos. Eu era então o Nelsinho, o mano Chinho, o estrangeiro. Creio que sempre fui uma espécie de estrangeiro entre os meus irmãos. Não tinha vivido com eles no Infulene e não vivera na Liberdade. Ia à casa dos meus pais em visita, algumas das poucas lembranças que tenho, ou pelo menos as duas mais marcantes, são lancinantes: a do dia em que fui circuncisado e quando me foram buscar para o funeral da minha irmã Angelina, que tinha justamente o nome da nossa avó. Do Sérgio, outro irmão que morreu muito pequeno, não tenho lembrança firme. Da Angelina, lembro sobretudo os ciprestes, as lágrimas na face do meu pai, enquanto a procissão fúnebre vogava por um cemitério de Lhanguene que ainda guardava, entre aquelas campas, alguma dignidade.

Nacala deu-me o convívio com a minha mãe biológica e com os irmãos, que nunca tivera até então, sem eu, no entanto, enjeitar, de alguma forma, a minha avó Angelina, que na verdade foi a figura materna predominante na minha vida. Aliás, quando retornei de Nacala, quis e fui viver de novo com ela. Fomos para Xiquelene, um novo bairro, onde ela construíra a sua nova casa, desta feita de alvenaria. A minha avó era uma vendedora de mercado – lembro-me que ela foi pioneira no Mercado Janet, onde cheguei a ajudá-la, da fase do mercado da Baixa não tenho memória – que, com as suas poupanças, conseguiu construir duas casas de madeira e zinco, ali no Bairro Indígena. Uma delas haveria de perder quando das nacionalizações. Viveria toda a vida vituperando o regime que lha tinha espoliado.

Não ficámos muito tempo em casa dos tios Amélia e Américo e logo tivemos a nossa casa. Aqueles cinco anos passaram-se tão depressa que ainda hoje tenho nostalgia daquela pequena cidade portuária, com encostas lambidas pela erosão, com ruas de amendoeiras, o calor obsidiante e um impressivo mar azul. O mar de Nacala ainda povoa o meu imaginário. Aquele mar que invadiu as janelas da automotora na noite em que chegámos. O mar que eu haveria de descobrir na Maiaia, ou ao largo do porto, ou diante de um daqueles baldios onde íamos fisgar passarinhos, ou na casa do Director do Porto, onde subíamos à árvore para roubar jambalau. A minha mãe é sobretudo esse tempo de Nacala. E recordo-me, quando atingi os 10 anos, e fiz uma reivindicação: sou Nelson, não Nelsinho nem Chinho. Ali, na amurada do prédio, tentando perscrutar alguma nesga de mar, de peito cheio. Hoje, com mais de 50 anos, eu quereria ser outra vez Nelsinho, ou mano Chinho, como me chamavam.

Em 1980 desembarcámos em Maputo. Fomos ali para a Rua Simões da Silva. Ainda hoje se chama assim, defronte do Arcebispado. Era um apartamento da avó Angelina, que haveria de passar para os meus pais. Ali vivi uns anos, ali a nossa mãe revelou-se uma heroína para nós, sobretudo para mim, como todas aquelas mães, que tinham de inventar comida e futuro, num tempo e num contexto bastante adverso. Eram os tempos da escassez de tudo, eram os anos da crise, os anos de todas as carências, os anos da falta de tudo: luz, água, comida. Tudo. Absolutamente tudo. A minha mãe é sobretudo a heroína desses anos que tudo fez para que pudéssemos ir à escola e que víssemos ali a frincha por onde enxergar a esperança.

Íamos ao Tunduru acartar a água. Comíamos repolho com repolho. Por vezes, carapau de Angola. Não havia pão. Fazíamos bicha às 4 da manhã no talho na esperança desesperada de comprar a carne do Botswana. Íamos para o liceu, muitas vezes, com o estômago vazio. O queijo do tio Reagan e as maçãs do tio Botha, anos depois, fariam milagres no intervalo das 10 horas, da Josina Machel. Guardo desse tempo a admiração pelo papel intrémulo da minha mãe. Bem sei que muitas mães eram tão briosas, mas naqueles anos desalegres ela foi intrépida. A audácia, o arrojo, o denodo, o desassombro, a obstinação, ou a firmeza da minha avó são factos inequívocos.

Sairia, no entanto, de casa. Da casa da minha avó e da casa dos meus pais. Debutara, precoce, aos dezasseis anos, na profissão. Antes dos 20 um colega de meu pai deixar-me-ia a sua casa. Aos domingos, quando vou ao Infulene fazer a minha visita sacramental, muitas vezes, escolho o caminho que me faz passar ao largo da rua do Zambeze, pela avenida de Angola, onde a minha avó vivia – ela haveria de voltar, entretanto, ao antigo Bairro Indígena. Sobressalto-me com a memória vívida da avó Angelina. Passam muitos anos, mas ainda me revejo nela. Redijo este enternecido encómio diante de duas vetustas fotografias delas. Dou-me conta do olhar resoluto de ambas. Minha mãe não foi tão perseverante, no entanto. Chega combalida aos 80, mas chega e isso é uma bênção. A mãe dela era ainda uma fortaleza quando, pouco antes de morrer, se lhe revelou o óbice da idade. A Avó Angelina faria hoje 99 anos, abandonou este reino aos 89, meses antes de fazer 90 anos. A minha mãe Alice celebra hoje 80 anos. É um prodígio, é uma graça, e é uma dádiva, aos quais não me furto de celebrar, comovidamente, nestas páginas. 

 

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